quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Esquema de Leitura: Algumas Considerações em torno do Conteúdo, Eficácia e Efetividade do Direito à Saúde na CF/88, por Ingo W. Sarlet

Uniceub – Centro Universitário de Brasília
Pós-Graduação em Direitos Sociais, Direito Ambiental e do Consumidor
Grupo de Pesquisa Direito e Saúde
Professora: Larissa Castro
Aluna: Juliana Capra Maia

Ficha de Leitura:
SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do Direito à Saúde na Constituição de 1988. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador/BA, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 11, setembro/outubro/novembro de 2007. Disponível na internet: http://direitodoestado.com.br/rere. Acesso em 25/10/2012.


A saúde como direito e dever fundamental na Constituição Federal de 1988

O direito à saúde e sua fundamentalidade formal e material
 
** A CF/1988 consagrou o Direito à Saúde como Direito Fundamental à Pessoa Humana.  Isso quer dizer que Direito à Saúde é objeto de proteção jurídica diferenciada no âmbito do Ordenamento Jurídico Brasileiro.
 
** A inclusão dos Direitos Sociais (saúde, educação, assistência social) entre os Direitos Fundamentais foi bastante criticada, ao argumento de que o excesso de direitos provocaria a ingovernabilidade do Brasil (aumentando os gastos do Poder Público). Mas o fato é que a CF/88 contemplou os Direitos Sociais, de modo que:
(a) Os Direitos Sociais encontram-se no ápice hierárquico do Ordenamento Jurídico Brasileiro;
(b) Os Direitos Sociais, como Direitos Fundamentais, estão submetidos aos limites formais e materiais instituídos para as reformas constitucionais;
(c) Como os demais Direitos Fundamentais, os Direitos Sociais (e entre eles o Direito à Saúde) constituem normas auto aplicáveis e vinculam o Poder Público.
 
** O Direito à Saúde é verdadeiro complemento dos Direitos à Vida e à Integridade Física e Corporal. Sem ele, esses dois últimos direitos se esvaziam, perdem conteúdo.
 
"Na verdade, parece elementar que uma ordem jurídica constitucional que protege o direito à vida e assegura o direito à integridade física e corporal, evidentemente, também protege a saúde, já que onde esta não existe e não é assegurada, resta esvaziada a proteção para a vida e integridade física". PP. 03 


Breves notas sobre a positivação de um direito fundamental à saúde no plano internacional e no direito constitucional comparado
 
** Direito Internacional >>> Previsão expressa do Direito à Saúde no rol de Direitos Fundamentais pela Organização das Nações Unidas, em 1948 (artigos 22 e 25).
 
** O Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966, ratificado pelo Brasil, dispõe, no seu artigo 12, sobre o direito de a pessoa "desfrutar do mais alto grau de saúde física e mental".
 
** Outros Instrumentos internacionais que fazem referência ao Direito à Saúde >>> Convenção dos Direitos da Criança e Convenção Americana dos Direitos Humanos.
 
** Estados que arrolam o Direito à Saúde entre os Direitos Fundamentais >>> Argentina, Paraguai, Uruguai, Grécia, Itália, França, Portugal, Espanha e Holanda, entre outros.



A saúde e sua positivação na Ordem Constitucional Brasileira como direito de todos e dever do Estado e da Sociedade

** A Constituição Federal de 1988 é a primeira Constituição Brasileira a reconhecer a Saúde como Direito Fundamental.
 
** O preceito em questão consta do Artigo 6º (que trata dos direitos sociais), bem assim dos Artigos 196 a 200 da CF/88.
>>> Observação: Como a CF/88 abraçou, em matéria de direitos humanos, tantos os explícitos (artigos 1º a 6º), como os implícitos (diluídos no texto da CF/1988), também os Artigos 196 a 200 da CF/1988 podem se revestir do caráter de Direitos Fundamentais.
 
** Para além de Direito, a Saúde também é Dever: Art. 196 da CF/1988: "a saúde é direito de todos e dever do Estado". Esse dever, para além da letra fria do Artigo 196 da CF/1988, não obriga apenas o Estado, mas toda a sociedade:
(1) Até porque ofender a integridade física de outrem é conduta passível de persecução criminal; 
(2) Obrigando cada indivíduo, de modo que não se pode alienar a própria saúde (exemplos: proibição de determinados procedimentos médicos, não obstante a vontade do paciente; arremesso de anões; transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová).
 
** Quem é o titular do Direito à Saúde? Brasileiros e estrangeiros residentes no país ou todos?
>>> Artigo 5º, caput da CF/1988 >>> Interpretação restritiva. Direito à saúde (bem como os demais direitos fundamentais) aplicar-se-iam aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país. 
>>> Doutrina e jurisprudência entendem que os direitos fundamentais se estendem a todos, inclusive aos estrangeiros em trânsito (turistas, por exemplo), em homenagem ào princípio da universalização dos direitos fundamentais.
>>> Artigo 196 da CF/88: "Direito de todos e dever do Estado".
>>> Artigo 4º da CF/88: Prevalência dos Direitos Humanos nas relações internacionais.
>>> Artigo 5º, §2º da CF/88 >>> Internalização dos direitos fundamentais estipulados em Tratados Internacionais.
>>> Como o Direito à Saúde concorre com o Direito à vida e à integridade física e corporal (os quais são direitos de todos), deve, portanto, se estender a todos.
 
 
Eficácia e efetividade do direito à saúde: algumas considerações
 
Caracterização do direito à saúde como direito social de cunho defensivo e prestacional
 
** Direito à saúde >>> Direito Fundamental de Segunda Geração (instalação do Estado Social de Direito, voltado à mitigação das distorções provocadas pela Revolução Industrial) que, ao mesmo tempo, impede ingerências indevidas por parte do Estado ou de terceiros (direito defensivo) e impõe ao Estado a realização de políticas para sua concretização (direito prestacional).


Notas sobre a eficácia e a efetividade do Direito à Saúde
 
Considerações Introdutórias: O princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais 
 
** Artigo 5º, §1º >>> As normas referentes aos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata >>> Não há mais direitos fundamentais na forma da lei, mas lei na forma dos direitos fundamentais. >>> Força cogente dos direitos e garantias fundamentais.
 
** A norma contida no Artigo 5º, §1º da CF/1988 constitui norma-princípio, configurando um mandado de otimização ao Estado. O Poder Público tem a obrigação de imprimir às normas de direitos fundamentais a maior eficácia possível.
 
** Doutrina e jurisprudência entendem que as normas que estatuem dirietos fundamentais não estão mais à disposição e ao alvedrio dos Estados (vinculando-as a normatização posterior), ou tampouco constituem promessas ou declaração das boas intenções do legislador.



A dimensão negativa do direito à saúde (a saúde como direito de defesa)
 
** A saúde, como bem fundamental, não está à disposição das agressões de terceiros. Noutras palavras, o Estado e os demais cidadãos devem se abster de prejudicar a saúde de alguém.



Dimensão positiva do direito à saúde: o direito à saúde como direito a prestações materiais
** 1º problema >>> a CF/1988 não diz o que vem a ser o direito à saúde e limita-se a definições genéricas. Dessa forma, direito à saúde pode significar direito ao acesso a medicamentos de alto custo, direito à internação hospitalar ou direito a aparelhos dentários >>> Cabe ao judiciário e à legislação infraconstitucional federal, estadual ou municipal a definição do direito à saúde.
 
** Como o Estado não tem conseguido atender às demandas da população por saúde, pululam ações no Judiciário para garantir aos seus autores determinadas prestações pelo Poder Público (exemplo: pedido de medicamentos para HIV).
 
** A maioria dos argumentos contrários à concessão do direito subjetivo à saúde (e o mesmo ocorre com o direito à educação, à moradia, etc.) menciona o fato de que a prestação em questão depende de alocação de recursos orçamentários e humanos, recursos que são limitados. Na linha desse raciocínio, o direito à saúde será considerado mera norma programática.
 
Com base nesta premissa e considerando que se cuida de recursos públicos, argumenta-se, ainda, que é apenas o legislador democraticamente legitimado quem possui competência para decidir sobre a afetação desses recursos, falando-se, nesse contexto, de um princípio da reserva parlamentar em matéria orçamentária, diretamente deduzido do princípio democrático e vinculado, por igual, ao princípio da separação dos poderes. PP. 13
 
** Relativização do direito à saúde >>> De fato, há que se considerar a reserva do possível em se tratando de direitos sociais e, portanto, do direito à saúde (limites fáticos, operacionais); bem assim limites jurídicos (reserva parlamentar em matéria legislativa). Não obstante, em havendo fundado receio de perecimento do maior bem jurídico tutelado (vida), sacrificam-se os demais bens jurídicos envolvidos.  
Tal argumento cresce em relevância em se tendo em conta que a nossa ordem constitucional [...] veda expressamente a pena de morte, a tortura e a imposição de penas desumanas e degradantes mesmo aos condenados por crime hediondo, razão pela qual não se poderá sustentar [...] que, com base numa alegada (e mesmo comprovada) insuficiência de recursos se acabe virtualmente condenado à morte pessoa cujo único crime foi o de ser vítima de um dano à saúde e não ter condições de arcar com o custo do tratamento. PP. 13.
 
** Solução >>> Em cada caso concreto, promover uma compatibilização e harmonização dos bens em jogo, fazendo prevalecer os bens mais relevantes e observando o princípio da proporcionalidade >>> Implica reconhecimento do direito público subjetivo à saúde.
 
** Normalmente, a demanda judicial envolvendo direito à saúde trata de questão emergencial, impondo-se a concessão de medida liminar. Embora haja proibição legal de concessão de antecipação de tutela contra o Poder Público, o Judiciário (sobretudo, mas não somente as instâncias inferiores) tem concedido liminares observando a preservação da saúde e da vida dos postulantes >>> STF não fechou as portas do Judiciário para os postulantes.
 
 
 
Considerações finais 
 

** O direito à saúde normalmente invoca casos de situação limítrofe entre Direito e Política: o direito à saúde não se concretiza apenas com a mera vigência das normas.
 
** A efetivação do direito à saúde demanda conjunção de esforços entre os diversos entes públicos.
 
** Os direitos fundamentais encerram, em si mesmos, um projeto emancipatório. Para alcançá-lo, fazem-se necessárias políticas públicas voltadas à sua concretização nos campos econômico, político e social (para além, portanto, do campo institucional).


quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Esquema de Leitura: Legisladores e Intérpretes, de Zygmunt Bauman

Centro Universitário de Brasília - Uniceub
Pós graduação em Direito Urbanístico e Ambiental
Professor Carlos Divino Rodrigues
Aluna: Juliana Capra Maia
Ficha de Leitura

Legisladores e Intérpretes 
- Sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais -



Pós-modernidade e modernidade líquida
  • O livro Legisladores e Intérpretes foi publicado em português após o Modernidade Líquida >>> Obra traduzida em ordem cronológica inversa.
  • O livro Legisladores e Intérpretes menciona o conceito de "pós-modernidade", conceito rejeitado pelo autor no Modernidade Líquida, obra mais madura. Em Legisladores e Intérpretes, Bauman não associa Pós-modernidade à idéia de uma sociedade pós-capitalista ou pós-industrial.
  • Quando escreveu Legisladores e Intérpretes, Bauman já percebia a dificuldade de enquadrar os fenômenos sociais observados no conceito de modernidade. Não obstante, ainda não tinha idéia clara do que exatamente seria a nova realidade que observava.
  • O conceito de "pós-modernidade", utilizado de maneira provisória pelo autor no Legisladores e Intérpretes, é pouco explicativo. Trata-se de um conceito negativo, que apenas denota ter sido ultrapassada a modernidade. 
Em suma, o principal significado da idéia de pós-modernidade é que ela é algo diferente da modernidade. Ela indica, portanto, que a modernidade já não é a nossa forma de vida, que a Era Moderna está encerrada, que ingressamos hoje em outra forma de viver. Mas essa idéia ofereceu pouca orientação sobre a identidade desta "outra forma", de suas regras próprias, de sua lógica própria e de suas características definidoras. Em razão dessas três deficiências (o caráter "negativo", a indicação de um fim da modernidade e a escassez de informações que apresenta a respeito dos atributos próprios dessa nova forma de vida), a idéia de "pós-modernidade" pareceu-me desde o início uma solução provisória para o dilema. Pp. 11.
  • Modernização compulsivo-obsessiva >>> Mais profunda essência da modernidade. E nesse sentido ainda éramos (como somos) extremamente modernizantes. A única diferença é a perda do sentido da história, a perda do horizonte final, da utopia de uma sociedade estável, solidamente enraizada na qual os desvios acentuados representariam mudanças para pior. (pp. 12) 
[...] O que a modernidade em sua versão antiga enxergava como o iminente ponto final de sua tarefa, como o início do tempo de descanso e de ininterrupto e purificado regojizo das realizações passadas, agora tratamos como uma fata morgana, uma miragem: em nossa perspectiva , não havia no final do caminho qualquer linha de chegada, qualquer sociedade perfeita, totalmente boa, "sem melhoramento a contemplar". A mudança perpétua seria o único aspecto permanente (estável, "sólido", se se quiser assim dizer) de nossa forma de viver. A pós-modernidade, como ela se apresentava naquele momento, era a modernidade despojada de suas ilusões. Pp. 12.
O único equilíbrio que ainda existe é o do movimento

  • Modernidade Líquida >>> Todas as instituições, fundamentos, padrões e rotinas que produzimos continuarão a ser tal e qual "até segunda ordem". Noutras palavras, tal como os líquidos, não manterão suas formas por muito tempo.
"Entramos em um modo de viver enraizado no pressuposto de que a contingência, a incerteza e a imprevisibilidade estão aqui para ficar". pp. 13
  • 1º momento da modernidade >>> Desconstrução e reconstrução. Fundir e solidificar.
  • 2º momento da modernidade >>> Desconstrução e desconstrução. Estado permanente de liquidez ou perpétua conversão em líquido.
Intelectuais: de legisladores modernos a intérpretes pós-modernos 
  • "Intelectual" >>>
>>> Palavra cunhada nos primeiros anos do século XX.>>> Tentativa de recapturar e reafirmar a centralidade social e as preocupações globais iluministas. Memória coletiva do iluminismo.
>>> aplicada a uma série heterogênea de romancistas, poetas, artistas, jornalistas, cientistas e outras figuras públicas que se sentiam responsáveis por influenciar as mentalidades do povo e dos governantes. 
  • Quem são os intelectuais? Auto-recrutamento e mobilização. Independe da profissão ou da formação do sujeito. 
  • Modernidade e pós-modernidade >>>
a) A visão tipicamente moderna do mundo é a de uma totalidade essencialmente ordenada, com a presença de um padrão desigual de probabilidades que possibilita a explicação dos fatos. Essa explicação é, ao mesmo tempo, ferramenta de predição e de controle. Pressupõe um conhecimento adequado da ordem natural, conhecimento que engloba a enunciação de critérios classificatórios publicamente testáveis e demonstráveis. Pretensão universalizante. Pp. 18 e 19.
b) A visão tipicamente pós-moderna do mundo é a de um número ilimitado de modelos de ordem, cada um gerado por um conjunto autônomo de práticas. A ordem não precede às práticas, não podendo servir como medida externa da sua validade. Cada qual dos muitos modelos de ordem só faz sentido em termos das práticas que os validam (sistemas de conhecimento só podem ser avaliados "de dentro"). Não admitem testes de legitimidade. Ótica relativista, local. O relativismo é um traço duradouro do mundo. Abandono das pretensões universalistas. Pp. 19.
  • Papel dos intelectuais >>>
a) Modernidade >>> Legisladores. Faz afirmações autorizadas e autoritárias. Solucionam controvérsias de opiniões. Autoridade para arbitrar derivada do conhecimento objetivo superior.  
b) Pós-modernidade >>> Intérpretes. Tradução de afirmações feitas no interior de uma tradição baseada em termos comunais, a fim de que sejam entendidas por integrantes de outra tradição. Objetiva facilitar a comunicação entre participantes autônomos (impedindo distorções de significados), e não mais selecionar a melhor ordem social. Não implica a eliminação da estratégia moderna.



Objeto do livro: Modernidade / Pós-modernidade no discurso e na ação dos intelectuais
[...] De modo algum estou afirmando que o mundo pós-moderno constitui um avanço em relação ao moderno, que os dois possam ser arranjados em uma seqüência progressiva em qualquer dos possíveis significados da idéia confusa de "progresso". Além disso, não acredito que a modernidade, como um tipo de modo intelectual, tenha sido substituída de forma conclusiva pelo advento da pós-modernidade, ou que esta última tenha refutado a validade da primeira (se é que é possível refutar alguma coisa adotando uma postura coerentemente pós-moderna). Estou interessado apenas em entender as condições sociais sob as quais o surgimento dos dois modos foi possível; e os fatores responsáveis por seus destinos e suas sortes em transformação. Pp. 22.
  

Sociogênese da Síndrome Poder / Conhecimento

** Pré-modernidade >>>
  • Até século XVI: mundo pequeno, estável e controlado.
  • "Homens de bem" habitavam pequenos povoados, locus de "sociabilidade densa" (Philippe Ariés), marcada por um "jogo complexo de relações humanas" (Robert Muchembled).
  • No entorno dos povoados, viviam os "marginais", os "excluídos". Eram legiões de vagabundos, mendigos, pedintes, boêmios. "Pelas lentes do medo popular, eles apareciam como leprosos, portadores de doenças, ladrões" (pp. 62).
  • "Sociabilidade densa" das comunas >>> Observação contínua e recíproca. Mecanismo de segurança e condição essencial da coabitação humana.
  • As comunas reagiam muito mal à ampliação do espaço social. Seus mecanismos de proteção dependiam da estabilidade do ambiente e da relativa fixidez dos atores. Número muito grande de atores dificilmente poderia permitir a observação recíproca e contínua.
** Modernidade >>>
  • Séculos XVII e XVIII
  • Desarticulação abrupta da vida comunal >>> Explosão demográfica repentina. Migrações descontroladas.
  • Incapacidade de absorção da mão-de-obra excedente, diante das técnicas produtivas então utilizadas.
  • Grande número de "homens livres", isto é, de nômades e pessoas sem-teto. Aumento vertiginoso do número de pessoas perigosas às bases tradicionais da ordem social.
[...] "Homens livres" não faziam parte de qualquer lugar, não tinham superiores que assumissem responsabilidade social por seu comportamento e nenhuma comunidade concreta - aldeia, cidade ou paróquia - a exigir sua obediência em troca de subsistência. PP. 64.
  • Cercamento dos campos >>> Aumento do número dos miseráveis nômades.

À parte da explosão demográfica, porém, a reorganização da propriedade da terra e a ineficiência da tecnologia agrícola impediram as comunidades rurais tradicionais de absorver novos braços e encher novos estômagos. Um número crescente de homens e mulheres tornou-se redundante do ponto de vista econômico e, por conseguinte, socialmente sem-teto. PP. 64.

  • Falência dos antigos mecanismos de controle social >>> Modificação de antigos conceitos. Pobres, por exemplo, não são mais vistos como abençoados de Deus. Agora, ser pobre é motivo de "opróbrio moral vinculado à incapacidade de ganhar a vida" (Pp. 65). A caridade cristã sofre grande revisão.
  • O perigo essencial não residia na abominação moral imanente da pobreza ou do desemprego. Residia, antes, no perigo que emanava do estado de desenraizamento do homem. Estar sem trabalho significava estar socialmente invisível.
Repúdio à mendicância
<<< >>> 
Repúdio ao desenraizamento



  • O Poder disciplinar não pode mais ser exercido pela comunidade, por meio dos métodos tradicionais ("eu te observo, você me observa"). Era necessário um agente novo, mais poderoso, capaz de projetar, organizar, gerenciar e acompanhar conscientemente o novo problema criado (legiões de "homens livres" e "classes perigosas"). Esse agente era o Estado.
  • Séculos XVI e XVII na França e na Inglaterra >>> Atividade legislativa febril voltada ao combate contra as "classes perigosas".
  • Quem eram os vagabundos? Em síntese, as leis mencionam homens sem senhor ou propriedade.
[...]. Assim, o decreto de 1531 definia o vagabundo como "qualquer homem ou mulher sadio e vigoroso no corpo e capaz de trabalhar, que não tenha terra, senhor, nem use qualquer mercancia, ofício ou mistério lícitos por meio de que pudesse ganhar seu sustento". Essa definição discriminava um senhor ou uma propriedade como condições de conduta normal, não punível. PP. 67
  • Medidas contra a vagabundagem >>>
(a) Tentar restaurar as raízes dos homens livres, atribuindo-lhes trabalho e senhor.
(b) Aperfeiçoamento dos mecanismos de controle, de modo a reduzir a invisibilidade dos homens livres, tornando-os suscetíveis à vigilância. Métodos: confinamento forçado (vigilância comunal artificialmente criada: prisões, manicômios, casas de correção, asilos para pobres) ou; marcar a fogo (letra "R").


  • Aperfeiçoamento dos mecanismos de controle >>> Confinamento  >>> Pan-óptico, de Jeremy Bentham:

(a) Vigilância unidirecional total  >>> Colocava a maioria dos objetos do poder em permanente posição de "vigiados", sem direito ou qualquer esperança realista de retribuir ou trocar de lugar com os "vigilantes".
(b) Controle total sobre os objetos do poder. Cada mínimo detalhe da sua vida agora podia ser organizado, ajustado, regularizado  >>> A conduta dos vigiados, agora, é independente dos seus motivos, de modo que sua vontade pode ser desconsiderada.
(c) Uniformização completa dos vigiados. São, agora, "espécimes" da mesma categoria  >>> Coisificação dos sujeitos vigiados.
(d) Profissionalização dos vigilantes  >>>  Vigiar torna-se trabalho em tempo integral, uma "ocupação", um meio de vida  >>> Know-how. Nova expertise: engenharia do comportamento humano.    
  • Aperfeiçoamento dos mecanismos de controle >>> Incompletude, imaturidade intrínseca dos seres humanos >>> Estado-Educador, responsável por fazer os seres humanos ascenderem à perfeição exigida pela ordem social, da forma adequada, renomeada agora de "bem comum". Pp. 74/75.
  • Saber e Poder >>> Educação torna-se constituinte irremovível do poder. Os detentores do poder devem saber o que é o bem comum, qual conduta humana melhor se ajusta a ele e como induzir os homens a atuarem de acordo com ele. O poder passa a necessitar como nunca do saber; o saber emprestará legitimidade ao poder.
  • Secularização dos poderes pastoral e proselitista, amplamente praticados na era pré-moderna pela Igreja. As suas técnicas, agora, estavam a serviço do Estado. "O Estado entrou numa guerra contra todas as formas de vida que pudessem ser vistas como bolsões potencias de resistência contra o seu domínio" (pp. 76).

"[...] Exigia-se nada menos que a aceitação da expertise do Estado na arte de viver; tinha-se de admitir que o Estado e os especialistas que ele nomeava e legitimava sabiam o que era bom para os súditos, e como eles deviam viver suas vidas e se guardarem de agir em prejuízo de si mesmos. Aos súditos foi negada não só sua capacidade de conseguir chegar a Deus; recusou-se a eles sua capacidade de viver a vida humana sem vigilância, assistência e intervenção corretiva daqueles que tinham conhecimento de causa". Pp. 76/77.


(a) Poder pastoral >>> Não era exercido em interesse próprio, mas pelo bem dos súditos. Pressupõe que a "chave" para o aperfeiçoamento individual está no interior de cada indivíduo (sua consciência). Por isso, o detentor do poder dispôs a rede de recompensas e castigos para moldar os súditos, agora, indivíduos com direitos e responsabilidades.
(b) Poder proselitista >>> Converter os súditos de um modo de vida a outro. Vê a si mesmo como conhecedor iluminado e os súditos como seres incapazes de se elevarem a um nível superior de consciência.
 

"[...] o poder proselitista não objetiva necessariamente remoldar os súditos segundo sua própria imagem, e, assim, dissolver a diferença entre os dois modos de vida. O que ele de fato busca, sem remorsos ou concessões, é o reconhecimento por seus súditos da superioridade da forma de vida que ela representa e da qual ela deriva a sua autoridade. Tal aceitação é o ato supremo das salvações; tendo concordado que os modos pregados pelos detentores de poder são superiores de fato, os súditos atribuem superioridade ao saber que os seus governantes possuem. Pp. 76.






A Ascensão do Intérprete


  • Relativismo (Historicismo) X Absolutismo (Transcendentalismo) >>> Divergência bem marcada no discurso contemporâneo.
  • Pluralismo >>> Existência de múltiplas estruturas de referência, cada qual com os respectivos esquema de compreensão e critérios de racionalidade. Coexistência de posições comparáveis e rivais, irreconciliáveis. É o reconhecimento de que diferentes pessoas e grupos vivem, literalmente, em mundos diferentes. Inexistência de sistema inconteste de definição da realidade.
  • Na Arte, o pluralismo se manifesta com bastante evidência. Após um perído de breve vanguarda heróica, alcançou-se um mundo pluralista, onde tudo, a princípio, é permitido. Hoje, a ausência de regras do jogo torna qualquer inovação impossível e condena a Arte a um presente perpétuo >>> Destruição da possibilidade de postular a validade das normas estéticas
  • Na Arte, a idéia de pós-modernismo como decadência do papel do intelectual-legislador aparece de forma muito clara >>>
-- A Arte Moderna ainda acreditava na Ciência, na Objetividade, na Lógica e poucas vezes rompeu com o espírito desse tempo (Zeitgeist). Por isso, a grade apareceria como uma estrutura recorrente. Ela decodificaria "o trabalho da autoridade moderna manifestando-se ao dividir, classificar, categorizar, arquivar, ordenar e relatar" (pp. 184). Quebra-cabeça que pode ser decodificado. 
-- A Arte Pós-Moderna aparece como um quebra-cabeça sem solução. Os analistas de arte se sentem desconfortáveis em desempenharem as suas funções tradicionais. O próprio fundamento de seu papel social parece ter sido ameaçado. A Arte Pós-Moderna tende para a Anarquia, com uma cumplicidade mais profunda com as coisas que se desintegram.
-- Ao longo de toda a Era Moderna, os Críticos de Arte permaneceram firmes no controle da área do gosto e do juízo artístico. Eles exerciam poder inquestionável (e quase monopolista) no campo da arte. Ela era o seu palácio de marfim. O Crítico de Arte era o responsável por apontar o que seria objeto de bom gosto e o que seria vulgar, ou seja, diferenciar Arte e Não-Arte. 
-- Novo elemento >>> Classe Média >>> Justapôs ao poder do intelecto o poder do dinheiro. Desconsiderou solenemente os juízos e os gostos das elites. Autonomia do juízo artístico. "Vulgar" tornou-se sinônimo de "pequeno burguês". Na modernidade, a hegemonia das elites fez com que os "novos ricos" buscassem se adaptar a esse gosto. Hoje, contudo, é exatamente a autoridade dos gostos das elites educadas que está em xeque.

"[...] em nenhuma outra esfera da vida social a não interferência de autoridades intelectuais foi tão completa e indubitável. Em vez de ser a área mais desprotegida do domínio intelectual, o mundo da alta cultura era sua linha de fortificação interna menos vulnerável - um exemplo brilhante mas inimitável para todos nós, engajados como somos em áreas da prática social que passaram ao controle de outros poderes seculares. [...] O choque da condição pós-moderna foi sentido com maior profundidade lá onde ela causou o efeito mais drástico e explodiu os mitos mais solidamente fortificados". Pp. 193. 
"No interior da comunidade, os filósofos têm o direito e o dever de detelhar as regras que decidem quem são e quem não são os debatedores racionais; seu papel é avaliar a justificativa e a objetividade das opiniões, e suprir os critérios de crítica, que será vinculante por causa desses critérios. Dentro da comunidade, os filósofos podem e devem assegurar a sobrevivência da certeza, o domínio da razão - embora desta vez exclusivamente pela força de seu próprio trabalho" . Pp. 199. 
"Não há um suposto déspota esclarecido buscando conselhos de filósofos. Só há filósofos tentando, de maneira desesperada, criar comunidades e sustentá-las com o poder exclusivo de seus argumentos. Até então, as únicas comunidades que foram criadas e efetivamente sustentadas de tal modo foram as suas próprias". Pp. 202


  • Filosofia e Disciplinas ligadas à Organização Social >>> Ao lado da Arte, também foram fortemente atingidas pelo desafio pós-moderno. Averiguação de legitimidade e realização de prognósticos (legislação) agora consistem instâncias separadas: como argumentar a favor ou contra um tipo de vida? Como argumentar contra ou a favor de uma versão de verdade, quando todas elas são válidas?
  • Novo papel dos intelectuais em um mundo plural >>> Intérpretes. Papel central em um mundo plural, já que deles depende a comunicação entre tradições culturais diversas. Promoção da "arte da conversação civilizada".  Redescoberta da Hermenêutica.
  • Função legislativa dos intelectuais >>> Residual. Atuante "dentro" das comunidades ("entre" comunidades é o espaço privilegiado do intelectual-intérprete).


Referência Bibliográfica
BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e Intérpretes. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2010. Pp. 07/13; 15/22; 62/77 e 176/202.


segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Esquema de Leitura: Bolsa Família - Projeto Social ou Marketing Político?

Gerações de políticas públicas (Augusto de Franco, membro da direção do PT):
·   1ª Geração.
a) Políticas de intervenção centralizada do Estado. b) Década de 80 (embora tenha precursores na década de 70, durante o regime militar).
c) Predominância de atuação clientelista e paternalista de atores políticos populistas ou de setores oligárquicos conservadores.
d) Parte do princípio de que apenas a ação do Estado é suficiente para suprir as carências da sociedade.  
e) Concebe os benefícios repassados pelo Estado à população carente como concessões, e não propriamente direitos.  
f)  Graus insuficientes de accountability.
 
· 2ª Geração. Políticas públicas de oferta governamental descentralizada
a) Década de 90.
b) Oferta governamental descentralizada.
c) Concepção de que o Estado não mais seria suficiente para a implementação das políticas públicas. Mesmo assim, ainda seria praticamente o protagonista da implementação de políticas públicas.
d) Eliminação gradual do clientelismo e do assistencialismo, priorizando-se a preocupação com a eficiência, a eficácia e a efetividade dos programas e das ações do governo.
e) Desvinculação entre a política pública e o partido ou o governante.
f) Monitoramento e avaliação das políticas públicas.
g) Controle social das políticas públicas.
h) Ações direcionadas a públicos-alvo específicos, tais como os envolvidos no trabalho infantil, portadores de deficiência, crianças, gestantes, etc.
i) Programas universais >>> aplicação centralizada. “Oferta massiva e indiferenciada” (Welfare State).
 
· 3ª Geração. Políticas públicas de parceria entre Estado e sociedade para o investimento no desenvolvimento social.

a) Incipiente no Brasil na entrada do século XXI.

b) Políticas multi e intersetoriais de desenvolvimento social e de investimento em ativos (não apenas gasto estatal para satisfazer necessidades setoriais). 
c) Visão: embora o Estado tenha um papel insubstituível na implementação das políticas sociais públicas, sua intervenção não seria suficiente para a implementação de projetos nessa área.  
d) Juntar esforços do Estado, do Mercado e da Sociedade Civil para promover o desenvolvimento.
e) "Políticas Púbicas” e “Políticas Governamentais” não são mais sinônimas. O Estado não possui mais o “monopólio do público”.
f) Promoção do desenvolvimento social não é tarefa periférica. Todo desenvolvimento é desenvolvimento social.
g) Desenvolvimento = investimento em capital humano e capital social para que as pessoas possam alcançar novos papéis.  

O PT nasceu e se firmou como partido político defensor dos pobres. A eleição do presidente petista, Luís Inácio Lula da Silva gerou a enorme expectativa de que, no poder, desenvolveria políticas públicas capazes de satisfazer as demandas sociais.

Lançamento do Programa Fome Zero.
  • Inconsistente como programa social.
  • Programa simpático, popular, de acordo com as pesquisas de opinião. Revela o completo desconhecimento da população acerca dos resultados do programa.
  • Críticas = Paternalismo.
  • Parcos resultados. “Apenas no futuro serão ampliados os números de beneficiários”.
  • Marca. Ideia de marketing, mais que uma estratégia.
  • Indicadores socioeconômicos demonstraram a ineficácia do programa para reduzir as desigualdades sociais.
  • Programa começa a perder aliados e a receber as mais duras críticas.

Esquerdas “perdidas” no poder. Desafio de gerir e reformar o capitalismo, já que a solução socialista não mais existia.


“A preocupação das esquerdas com a democracia e a gestão pública está ausente em todas as vertentes do pensamento socialista, pelo menos até o fim da União Soviética, não obstante as dissidências que se abriram nas esquerdas em relação ao regime implantado na Rússia após 1917. Essas preocupações teóricas por parte de pensadores de esquerda, portanto, são recentíssimas, incipientes e erráticas.
Na mentalidade predominante entre as esquerdas antes da queda do Muro de Berlim, vigorava uma concepção segundo a qual os problemas da sociedade tenderiam a desaparecer com a estatização dos meios de produção; o planejamento central da economia e a decorrente distribuição da riqueza a ser promovida pelo Estado Operário após a implantação do socialismo. Consequentemente, sequer faria sentido pensar no regime socialista sob a vigência da democracia, e com isso, na necessidade da formulação de políticas públicas tal como as de combate à fome, à inflação, ao desemprego, aos problemas da saúde, da educação e da segurança pública”. Fl. 118


Inexistência de um projeto de governo, de conceitos sólidos ou de estratégias coerentes com diretrizes gerais, estas também inexistentes (já que o marxismo não mais se prestava como solução viável).


Reposicionamento da marca “Fome Zero” no mercado.
  • Demissão dos ministros Benedita da Silva e José Graziano.
  • Patrus Ananias = Substituição do Programa Fome Zero pelo Programa Bolsa Família, longe dos holofotes da mídia (que já censurava o Programa Fome Zero).

Lançamento do Programa Bolsa Família.
  • Unificação de todos os programas sociais do governo federal.
  • Ampliação do número de beneficiários para 11,1 milhões.
  • Criação de uma nova marca, com visibilidade nacional.
  • Programa que funciona como eixo integrador dos demais programas federais.
  • Função simbólica = Permitiu difundir a ideia de que o governo do PT fez pelos pobres muito mais do que qualquer outro na história brasileira.
  • Recuperação dos eleitores da classe média (divórcio em 2004/2004).
a) A classe média ficou decepcionada com os escândalos de corrupção;
b) A classe média ficou decepcionada com os custos da política econômica de Palocci implementou na primeira fase do governo. Perda do emprego e da renda.


Problemas no Programa Bolsa Família.
  • Inclusão de beneficiários “às pressas”, com fins eleitoreiros.
  • Distribuição de cotas do dinheiro com a finalidade de obter apoio eleitoral.
  • Falta de investimento em programas sociais que ajudariam seus beneficiários a viver sem ajuda oficial.
  • Criação de dependentes perenes da “esmola oficial”.
  • Projetos de transferência de renda viraram um fim, e não um meio transitório para a emancipação social dos beneficiados.
  • Forma de “organizar a fila da sopa”.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


MOURA, Paulo Gabriel Martins de. Bolsa Família: projeto social ou marketing político?.Revista Ktál. Florianópolis, pp.115-122, jan/jun 2007.


Artigo publicado em periódico. De naturalista a militante: a trajetória de Rachel Carson

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