terça-feira, 28 de novembro de 2017

Esquema de Leitura: Além do bem e do mal, F. Nietzsche

Universidade de Brasília - UnB
Instituto de Ciências Sociais - ICS
Departamento de Sociologia - SOL
Ciclo de palestras: "As consequências do pensamento radical"
Professor Luiz de Gusmão
Aluna: Juliana Capra Maia
Esquema de Leitura: NIETZSCHE, F. W. Além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do futuro. Tradução de Márcio Pugliesi/ USP, Hemus S.A, 2001, prefácio, partes 01, 02, 03, 04 e 05.



Prefácio


** Objetivo declarado de, uma vez concluída a etapa "afirmativa" do seu trabalho, desconstruir valores e estruturas da sociedade ocidental moderna. "Além do bem e do Mal" seria um livro escrito visando à desconstrução.  
As minhas finalidades para os anos seguintes estavam fixadas com a máxima precisão. Terminada a parte afirmativa de meu objetivo, surgia agora a meta negativa, quer na palavra, quer na ação: a inversão de todos os valores que tiveram curso e vez nesse período, a guerra suprema, a evocação de um dia decisivo. Neste período efetiva-se a busca de caracteres semelhantes ao meu, pesquisa lenta e demorada, de individualidades transbordantes de energia que pudessem ajudar-me no mister de destruição. (p. 4, apud "Ecce Homo"; parte III, "Porque escrevo bons livros"). 

** Ruptura com a filosofia do seu tempo, a metafísica dogmática. Crítica ao platonismo do Ocidente e aos Vedas, na Ásia. Nietzsche os compara à astrologia, "a serviço da qual foram dispendidos mais dinheiro, trabalho, perspicácia e paciência de que até agora já se dispendeu com uma ciência positiva qualquer" (p. 7). 
[...] há um bom motivo para esperar que em filosofia o dogmatizar, ainda que tenha esbanjado frases solenes e aparentemente incontestáveis, tenha sido uma nobre peraltice de diletantes e que está próximo o tempo em que se compreenderá cada vez mais quão mesquinhas são as bases dos edifícios sublimes e aparentemente inabaláveis, erigidos pelos filósofos dogmáticos. (p. 7).

** O "pior, o mais pertinaz e o mais perigoso de todos os erros foi o de um filósofo dogmático e precisamente a invenção platônica do puro espírito e do bom por si mesmo" (p.8). Defender a existência do "bom em si mesmo" demanda desconsiderar a realidade, renegar a perspectiva (que é uma condição fundamental da vida humana). 


** Cristianismo > Platonismo pasteurizado, simplificado, para ser compreendido e absorvido pelas grandes massas. Ou seja, em Nietzsche, a crítica ao platonismo é, também, uma crítica ao cristianismo.
  • A Europa estaria vivendo um momento de tensão contra o clericalismo. Essa tensão foi aliviada, temporariamente, pelo jesuitismo e pela difusão das ideias democráticas. Mas o arco continua teso.



Parte 01: O preconceito dos filósofos


** Nietzsche sintetiza o preconceito dos filósofos metafísicos na seguinte ideia: "De uma coisa ruim, não pode brotar uma coisa boa. Por isso, para que exista uma coisa boa, ela deve ter derivado do Supremo Bem". 


** Desconfiança em relação à racionalidade humana. Ela seria mais uma característica entre tantas outras. Teria o mesmo peso que os instintos. Aliás, seria, ela mesma, um mero fruto dos instintos humanos ("o consciente jamais se opõe de modo decisivo ao instintivo"). Leia-se:
Terminei por acreditar que a maior parte do pensamento consciente deve incluir-se entre as atividades instintivas sem se excetuar a pensamento filosófico. Cheguei a essa idéia depois de examinar detidamente o pensamento dos filósofos e de ler as suas entrelinhas. [...]A maior parte do pensamento consciente de um filósofo está governada por seus instintos e forçosamente conduzido por vias definidas. Atrás de toda lógica e da aparente liberdade de seus movimentos, há valorações, ou melhor, exigências fisiológicas impostas pela necessidade de manter um determinado gênero de vida. (p. 13).

** O apego dos filósofos a conceitos metafísicos falsos tais como os "juízos sintéticos a priori" serve para conservar a espécie, para acelerar, enriquecer e manter a vida humana. Por isso, Nietzsche afirma que, apesar de serem concepções falsas, elas não devem ser rechaçadas. Aqui, o "não-verdadeiro" seria condição da sobrevivência humana.



Admitir que o não-verdadeiro é a condição da vida, é opor-se audazmente ao sentimento que se tem habitualmente dos valores. P. 13.



** A metafísica não seria mais que um punhado de preconceitos dos filósofos ("afirmação arbitrária, de um capricho, de uma intuição ou de um desejo intimo e abstrato", p. 13), defendidos com argumentos rebuscados e veementes, ao ponto de serem denominados "verdades". Embora não o confessem, os filósofos são, na verdade, advogados. Isso quer dizer que, para Nietzsche, todo filósofo é um sofista? O argumento incluiria a si mesmo?



Em toda filosofia as intenções morais (ou imorais) constituem a semente donde nasce a planta completa. p. 15.



** Doutrinas metafísicas sempre seriam teleológicas, isto é, teriam como premissa um objetivo / uma agenda secreta determinada pelo filósofo. 


** Crítica ao estoicismo. Falácia do imperativo estoico: "viver de acordo com a natureza". Nietzsche argumenta que:
Viver é querer ser diferente da Natureza, formar juízos de valor, preferir, ser injusto, limitado, querer ser diferente! Admitindo que o lema "de acordo com a Natureza" signifique no fundo "de acordo com a vida" seria possível que atuásseis de outra forma? [...]. Tudo isso, entretanto, é uma velha e eterna história, a filosofia, no fundo da Natureza, e seu contexto visível, é apenas esse instinto tirânico: a vontade de potência em seu aspecto mais intelectual, a vontade de "criar o mundo" e implantar nele a causa primeira. p. 17 e 18.


** Crítica a Kant e à filosofia alemã. Invenção de faculdades humanas, tais como a capacidade de formular juízos sintéticos a priori (Kant) e a intuição intelectual (Schelling). Como existiriam? Respostas dos filósofos: "por uma faculdade". Mas essa é uma resposta tautológica, não explicativa, tal como aquela fornecida pelo médico de Molière.
  • Ao invés de perguntar como juízos sintéticos a priori são possíveis, sugere Nietzsche que nos perguntemos "por que precisamos deles". E precisamos deles porque, verdadeiros ou falsos, naturais ou criados, são indispensáveis à sobrevivência da nossa espécie. São indispensáveis à sociabilidade: é isso?  

** Teorias heliocêntricas (Copérnico) e teorias atômicas constituem triunfo da fé na ciência sobre as evidências dos sentidos. O mesmo se aplica à crença na "alma", que seria uma espécie de atomismo aplicado à psique.




** Instinto motor do ser orgânico: vontade de potência (e não instinto de autopreservação, que é uma mera consequência da vontade de potência).



** Física >> Saber proletário, plebeu, que encanta pelo sensualismo. Seria uma explicação do universo para os homens, e não uma descrição do universo tal e qual.



** Filosofia << >> Linguagem. Linguagens aparentadas resultam em filosofias com conclusões semelhantes.
A estranha similaridade que guardam entre si todas as filosofias indianas, gregas e alemãs, tem uma explicação simples. Efetivamente, quando há parentesco lingüística é inevitável que em virtude de uma filosofia gramatical, exercendo no inconsciente as mesmas funções gramaticais em domínio e direção, tudo se encontra preparado para um desenvolvimento análogo aos sistemas filosóficos, enquanto que o caminho parece fechado para quaisquer outras possibilidades de interpretação do universo. As filosofias do grupo lingüística uro-altaico (nas quais a noção de sujeito está pouco desenvolvida) provavelmente observaram e interpretaram o mundo com outros olhos e seguiram por caminhos diferentes dos indo-europeus ou muçulmanos. P. 29/30.
  
** Livre arbítrio. O império da vontade é uma ficção (mito) criada pelos homens para sentirem que possuem algum poder sobre si mesmos e sobre outros homens ao seu redor. Quando utilizado de forma determinista, resultará em dois grupos:

  • O primeiro grupo, formado por aqueles que se recusam a dividir a "responsabilidade" de sua crença em si mesmo, o seu direito pessoal, o produto de seu próprio mérito e da sua própria ação. Castas vaidosas.
  • O segundo grupo, formado por aqueles que, recusando toda responsabilidade, impulsionados pelo desprezo de si mesmos e ansiosos de livrar-se sem considerar sobre quem ou onde caia a pesada carga de seu eu. Quando estes escrevem livros tendem a empreender a defesa dos malfeitores, seu disfarce mais sutil é simular uma espécie de socialismo da piedade e, natural e efetivamente, o fatalismo dos fracos de vontade é maravilhosamente embelezado quando consegue apresentar-se como "religion de la souffrance humaine". p. 31.

** Crítica à ciência e às pretensas leis da natureza. "Leis da natureza" não são texto (dado), mas interpretações (construído). Fruto do plebeísmo da ciência e do apego da alma moderna à democracia: "Em todas as partes, todos são iguais segundo a natureza", ou seja, "mestres e plebe estão igualmente submetidos às leis naturais". Explicação alternativa às "leis naturais": vontade de potência. "Leis naturais" não são mais do que o resultado brutal e desapiedado de vontades tirânicas. Como seres inanimados, tais como o núcleo do planeta (que interfere diretamente no eletromagnetismo), podem ter "vontade" de qualquer coisa? Mesmo se considerarmos "vontade" como uma realidade que não se limita à razão, aqui, a relação causa > consequência utilizada na formulação das leis naturais é uma explicação bem mais convincente... Chamar toda e qualquer energia de "vontade" não é forçado? "Vontade" implica "intenção"?  



** A psicologia é governada por moralismos. Não de aceita que frutos "bons" possam ter germinado em "árvores ruins". O autor a concebe, por sua vez, como uma morfologia e como fruto da vontade de potência. Assim, ódio, inveja, cobiça, comando constituiriam elementos fundamentais à vida. 





Parte 02: O espírito livre



** O homem de alta estirpe e refinamento espiritual procura automaticamente o isolamento, a libertação em relação à plebe ignara, à massa. Mas para adquirir conhecimento, é indispensável misturar-se às "más companhias".



** Se tiver sorte, encontrará pelo caminho os cínicos, já que o cinismo é "a única força sob a qual as almas vulgares roçam o que se chama sinceridade" p. 39.



** Para ser um espírito livre, ou seja, para ser um homem independente, há necessidade de força e de audácia. Os homens independentes são tão diferentes que não despertam a compaixão dos demais. Devem, pois, acostumar-se ao fato de estarem sozinhos. 

  • O que alimenta o espírito livre é geralmente o que envenena a plebe ignara. Por sua vez, transferidas a um filósofo, as virtudes dos homem ordinários lhe viciarão, lhe debilitarão, lhe degenerarão. 

** # 32. Ao longo de toda a Pré-História (período mais longo em que viveu a humanidade) e mesmo em sociedades como a chinesa, um ato é valorado de acordo com as suas consequências. O ato em si e a intenção por trás do ato eram de todo irrelevante. Hoje ocorre uma inversão: julga-se o ato pela intenção de quem agiu. Ora, mas a "intenção declarada", tal como a epiderme, mais esconde do que mostra. Ou seja, a intenção é apenas mais um signo, mais um sintoma que deve ser interpretado. Sob tal perspectiva, a moral das intenções é apenas um preconceito, um juízo precipitado e provisório, algo que deve ser superado. 



** # 33. Desconfiar de todo o sentimento de dedicação e de sacrifício pelo próximo, de toda a moral da abnegação, de toda "concepção desinteressada". 



** # 34. A separação entre essência e aparência e entre verdadeiro e falso são meros preconceitos da filosofia. Também é mero preconceito acreditar que a essência (ou a verdade) é melhor que a aparência (falso). A vida não seria possível sem toda uma enorme parafernália de aparências. Ademais, supondo-se que fosse possível, se se suprimisse o "mundo aparente" nada restaria da tão buscada "essência".   



Não bastaria admitir graus de aparência, como quem falasse de matizes e harmonia, mais ou menos claros ou obscuros, valores diferentes para empregar a linguagem dos pintores? P. 47.


** # 36. Não nos é dado, pelo nosso pensamento, alcançar qualquer "verdade" por trás dos nossos instintos, pelo simples fato de que o nosso pensamento não reflete nada além da relação entre esses instintos. 



Energia (em qualquer de suas formas) = Vontade de Potência.


  • Uma "vontade" só pode laborar sobre outra "vontade": sempre que se vislumbram "efeitos", constata-se a predominância de uma vontade sobre outra. 
  • Todo processo mecânico é alimentado por uma força eficiente, ou seja, revela uma "vontade-força". 
  • Ou seja, o mundo seria apenas e tão-somente "vontade de potência".


** #41. Como ser um espírito livre? Grifei:

É importante demonstrar a si mesmo que se está destinado à independência e ao mando, porém é preciso que se o faça a tempo. Não se deve afastar a obrigação de fazer estas provas, mas também não ligar-se a ninguém, porque toda pessoa é uma prisão. E muito menos ligar-se a uma pátria, ainda que seja a mais maltrapilha e mendicante, e não esquecer que é menos difícil desligar-se de uma pátria vitoriosa. Não se deixar prender por um sentimento de compaixão, ainda que seja em favor de homens superiores, cujo martírio e angústia não tivesse defesa. Não se apegar a uma ciência, ainda que nos seduzam as descobertas que parece nos reservar. Não se prender às próprias virtudes e ser vitimado, como um todo, por uma de nossas qualidades particulares, por exemplo, por nossa "hospitalidade"; como o perigo dos perigos nos alunos nobres e ricos que se dissipam prodigamente e quase com indiferença, desenvolvendo mesmo o vicio da virtude da liberalidade! Não nos apegarmos a nossas virtudes, não nos sacrificarmos a uma inclinação particular. Deve-se saber concentrar-se e conservar-se, o que é a melhor prova de independência. P. 53.

** #43. Filósofos do amanhã: pessoas que arriscam, que tentam. Certamente, serão amigos de suas próprias verdades, mas não serão pensadores dogmáticos. "Deve-se renunciar ao mau gosto de querer estar de acordo com um grande número de pessoas". P.53.
  • "Bem comum": contradição em termos. Tudo o que pode ser desfrutado em comum é medíocre e de pouco valor.


Grandes coisas para os grandes; abismos para os profundos; refinamentos aos refinados; raridade para os raros.



** #44. Para o autor, os "Livres pensadores" de sua época, entusiastas das ideias modernas de "igualdade dos direitos" e da "compaixão para com os que sofrem", eram apenas escravos a serviço do gosto democrático, pessoas em busca "do rebanho e da campina verdejante". 



  • Esses autores considerariam que o sofrimento seria algo que deveria ser exterminado. Mas, ressalva Nietzsche, "Em que condições e em que forma a planta humana desenvolveu-se mais vigorosamente até agora? Acreditamos que isto se produziu sempre em condições completamente opostas, que foi necessário que o perigo que acicata a vida humana crescesse até a enormidade. [...] Tudo que existe no homem de animal predador ou de réptil, é da mesma forma que seu oposto, útil para elevar o nível da espécie humana". P. 54.
Nós temos afastado o servilismo implicado pelas honras, dinheiro, cargos públicos ou arrebatação dos sentidos, com certo agradecimento à desgraça e às enfermidades; agradecidos a Deus, ao diabo, à ovelha e ao inseto que se reúnem em nós, com uma curiosidade que raia à enfermidade. Investigamos até à crueldade, dispostos a encher nossas mãos com aquilo que repugna aos estômagos capazes de digerir as coisas mais indigestas. P. 54.



Parte 03: O fenômeno religioso



** Refere-se ao cristianismo como "mania religiosa", "neurose religiosa" e "infecção", mais adequada ao espírito dos povos latinos que ao espírito dos povos germânicos. Excertos:

A fé cristã é, desde seus primórdios, sacrifício, sacrifício de toda liberdade, de toda independência do espírito; ao mesmo tempo, escravização e escárnio de si mesmo, mutilação de si. [...]. É o Oriente, o profundo Oriente, o escravo oriental, que assim se vinga de Roma e de sua tolerância aristocrática e frívola [de sua] indiferença estóica e sorridente contra a seriedade da fé, que suscitou o desdém dos escravos contra seus senhores, que os lançou em rebelião contra esses. P. 58. 
Manter-se céptico diante da dor, que no fundo é uma postura da moral aristocrática, contribuiu grandemente para a grande insurreição dos escravos, começada com a revolução francesa. P. 59 
Onde quer que tenha se manifestado a neurose religiosa, encontramo-la vinculada a três perigosas prescrições: solidão, jejum e castidade. [...].  Entre os sintomas mais comuns que costumam acompanhá-la encontra-se ainda uma imprevista e desenfreada volúpia [...], libidinagem que se converte com a mesma celeridade em fanatismo de contrição, em renegação do mundo e da vontade. P. 59.

** Mesmo os homens mais fortes se admiram dos santos. Santos são enigmas: sujeição de si mesmo e privação voluntária. Mas por que os fascina? Porque os fortes vêem nesses santos algo que eles mesmos possuem: vontade de poder. Domínio da vontade, do eu, sobre a natureza.



** Maior religiosidade implica mais tempo desprendido com orações, ou seja, menor disposição para o trabalho, encarado como atividade aviltante. Maior dedicação ao labor, por sua vez, reduziria os impulsos religiosos. Por isso, a sociedade moderna, intensamente dominada pelo trabalho, é uma sociedade eminentemente ateia. 



  • Nietzsche ressalta que não se trata, aqui, de um ateísmo militante. Se determinados rituais religiosos forem exigidos, eles serão performados. A sociedade moderna não é "contra-religiosa". Ela é apenas indiferente à religião.
A estes indiferentes pertence atualmente o grande número de protestantes da classe média, particularmente nos grandes centros obreiros do comércio e da indústria bem como a maioria dos doutores laboriosos e tudo que vive na ou da universidade. P. 68.


** Os filósofos de espírito livre, utilizar-se-ão da religião como um meio de elevação e educação. A educação religiosa, contudo, teria papel diferente entre os fortes e os fracos. 

  • Para os fortes, a educação religiosa é instrumento de poder sobre os demais e sobre si mesmo. Deve ser meio, não finalidade.
"Para os fortes, para os independentes, preparados e predestinados a dominar, nos quais se personificam o intelecto e a arte de uma raça dominante, a religião é um meio a mais para suprimir os obstáculos, para poder reinar: é um vinculo que conjuga dominadores e súditos, que revela e presentifica aos dominadores a consciência dos súditos, naquilo que esta tem de mais abscôndito, mais íntimo, aquilo precisamente desejaria escapar à obediência [...]. ". P.71.  
"[...] a religião proporciona condições a alguns indivíduos para preparar-se a uma futura dominação, àquelas classes fortes que avançam lentamente e nas quais graças à vida regrada, a força e o desejo da vontade, a vontade da dominação de si mesmo, mantém-se num crescendo contínuo: àqueles a religião oferece ocasiões e tentações suficientes para a adesão a uma intelectualidade mais elevada, de provar o seu grande auto-domínio, o silêncio e a solidão". P. 71.  
  • Para os fracos, que são a maioria, a educação religiosa "tem a inestimável vantagem de torná-los satisfeitos da própria posição, proporcionar-lhes paz ao coração, enobrecer a sua obediência, confortá-los e induzi-los a dividir com seus pares as alegrias e as dores, de contribuir para transfigurar de certo modo a sua monótona existência, a baixeza, a miséria na sua alma semibestial". P. 71/72.


** Risco: que as religiões não sejam empregadas como meio de educação, mas como fins e si mesmos. As religiões [ascéticas?] tendem a se constituir como o consolo dos sofredores, dos fracos, dos degenerados, contribuindo, assim, para a decadência da raça humana. Exaltam o homem-fora-do-mundo como o homem superior. 
"Enfraquecer os fortes, diminuir as grandes esperanças, tornar suspeita a felicidade que reside na beleza, transmutar tudo aquilo que há de independente, de viril, de conquistador, de dominador no homem, todos os instintos que no homem, o tipo mais elevado e melhor sucedido, estão incertos, aviltação, destruição de si mesmos. Transmutar o amor pelas coisas terrenas e pela dominação das mesmas em ódio contra a terra e tudo aquilo que é terreno — eis o objetivo da Igreja". P. 73/74.


"[...] não é incrível que durante dezoito séculos apenas um ideal e uma vontade tivessem dominado a Europa — aqueles de fazer do homem um aborto sublime?" P. 74


  • Crítica ao cristianismo e espírito democrático, como causadores da degeneração humana. "O Cristianismo foi a espécie mais nefasta das presunções [...]. Homens com seu intento de "igualdade diante de Deus" dirigiram até agora os destinos da Europa, e até se formou uma espécie de homem diminuído, uma variedade quase ridícula, um animal de rebanho, afável, amolecido, medíocre". P. 74.




Parte 04: Aforismos e interlúdios



** Aforismos selecionados >> 

#67, p. 76. O amor por um único ser é uma barbárie: porque acontece em detrimento de todos os outros seres. Mesmo o amor de Deus. 
# 73-a, p. 77. Eis pavões que escondem zelosamente sua cauda e nisso colocam sua soberba.  
# 76, p. 78. Em condições de paz o homem belicoso engalfinha-se consigo mesmo.   
# 81, p. 79. É uma coisa terrível morrer de sede em meio ao mar. É realmente necessário que se ponha tanto sal na vossa verdade a ponto de torná-la incapaz de satisfazer a sede?  
# 82, p. 79. "Piedade para todos" — seria dureza e tirania contra ti mesmo, meu Caro!  
# 92, p. 81. Quem ainda não se sacrificou pelo menos uma vez pela sua própria reputação?   
# 108, p. 83. Não existem fenômenos morais, mas uma interpretação moral dos fenômenos.  
# 116, p. 84. As grandes épocas de nossa vida ocorrem quando sentimos a coragem de rebatizar o mal que em nós existe como o melhor de nós mesmos.  
#123, p. 85. Também o concubinato sofreu uma corrupção graças ao matrimônio.  
#132, p. 87. É-se punido principalmente pela própria virtude.   
#135, p. 87. O farisaísmo do homem bom não é uma degeneração; é, pelo contrário, em grande parte, uma condição para ser bom. 
#146, p. 89. Quem deve enfrentar monstros deve permanecer atento para não se tornar também um monstro. Se olhares demasiado tempo dentro de um abismo, o abismo acabará por olhar dentro de ti. 
#153. p. 91. Aquilo que se faz por amor sempre se faz além dos limites do bem e do mal. 
#156. p. 91. A loucura é muito rara em indivíduos — nos grupos, nos partidos, nos povos, na época — essa é a regra. 
#168. p. 93. O cristianismo perverteu a Eros, este não morreu, mas degenerou-se: tornou-se vício. 
#173. p. 94. Não se odeia àquele que se despreza, mas se odeia apenas àquele que acreditamos igual ou superior a nós. 
#175, p. 94. Acabamos por amar nosso próprio desejo, em lugar do objeto desejado.  
#179, p. 95. As conseqüências de nossas ações nos agarram pelo pescoço, sem perguntar se no entretempo melhoramos.  
#185, p. 96. "Ele não me agrada". "Por quê?". "Porque não me sinto à sua altura". Algum homem já respondeu de tal forma?



Parte 05: Pela História Natural da moral



** Crítica à filosofia moral que, ao invés de buscar descrever os diversos padrões de moralidade, fixava-se em um único padrão moral (nacional, cultural, religioso, etc.), dissecando-o para depois universalizar as conclusões. 



** Curiosidade: por que Nietzsche não foi considerado precursor das ciências sociais? O capítulo é Durkheim puro! Veja-se: 

  • Compreensão de que o fenômeno moral é um fenômeno social, culturalmente construído (e não imanente ao homem). 
  • Compreensão de que a moralidade impõe obediência, a qual, por sua vez, é indispensável para a constituição de tudo o que é essencial "no céu e na terra": arte, música, dança, virtude, etc. A servidão do espírito é constituidora das agremiações sociais.
"Os filósofos [...] não apenas deviam ocupar-se da moral, como ciência, mas desejavam estabelecer os fundamentos da moral, e todos acreditaram firmemente tê-lo conseguido, mas a moral era encarada por eles como coisa "dada". Quão distante de seu orgulho canhestro se encontrava a tarefa, aparentemente insignificante e inconcludente, de uma simples descrição, já que uma tal incumbência requer mãos e sentidos inefavelmente delicados". P. 98. 
"[...] estavam mal informados e pouco lhes importava estar bem informados acerca das nações, das épocas, da história dos tempos passados; jamais estiveram face a face com os verdadeiros problemas da moral que se apresentam apenas quando se verifica o confronto de muitas morais". P.99. 
"Toda moral é. em oposição ao laisser aller, uma espécie de tirania contra a "natureza" e também contra a "razão". P. 100. 
"O mérito essencial de toda moral é o de exercer uma longa coação" P. 100. 
"Mas o fato curioso reside em que tudo aquilo que há de livre sobre a terra, tudo aquilo que existe de fino, de ousado, a dança, a maestria segura tanto no pensar, no governar, do perdoar ou do persuadir, seja na arte ou nos costumes, desenvolveu-se precisamente em função da "tirania" de tais "leis arbitrárias", e, falando seriamente, há muita probabilidade de sustentar que precisamente nisto consista a “natureza” e o “natural”, antes que no "laisser aller". P. 101. 
"A longa servidão do espírito [...] mostrou ser o meio pelo qual ao espírito europeu foi dada a sua força, a sua curiosidade ilimitada, a sua fina mobilidade, ainda que com isso se tenha perdido uma quantidade irreparável de força e espírito (uma vez que ai sempre a natureza se manifesta por aquilo que é de uma grandiosidade pródiga e indiferente, desdenhosa e aristocrática)". P.101 e 102. 
"Deste ponto de vista é preciso considerar a toda moral [...] aquela que em si toma odioso o laisser aller, a excessiva liberdade e cria a necessidade de horizontes acanhados, de deveres abafantes, que restringe a perspectiva e de certo modo ensina que a ignorância é uma condição necessária da vida e de seu desenvolvimento". P.102.  
  • "Laisser aller": conduta autoindulgente dos espíritos aristocráticos. Tendência à desagregação social.

** A defesa da criação de uma "história natural da moral" não é precisamente da defesa da criação das ciências sociais? 



** Profetas judeus: inversão dos valores. Fundiram “rico”, “ímpio”, “violento”, “sensual” e pela primeira vez colocaram a pecha da infâmia à palavra “mundo”. Fizeram da palavra “pobre” sinônimo de “santo” e de “amigo”. 






Segundo parece os moralistas sentem um ódio poderoso contra as florestas virgens e contra os trópicos! P.109.



"Ainda que tenha existido em outras épocas uma prática limitada e constante da compaixão, da igualdade, da ajuda recíproca, estavam entretanto à margem da moral. Em resumo, o "amor ao próximo" é quase sempre coisa secundária, convencional por um lado, e arbitrária por outro, se comparado com o medo ao próximo". P. 113. 
"Os instintos mais elevados e fortes levam o indivíduo além e mais alto que a mediocridade e da baixeza do instinto gregário, indicam a morte do amor próprio da coletividade, extirpam sua fé em si mesma, quebrantam-na de certo modo e -- a reação é caluniar esses instintos. A decisão de estar só parece perigosa e tudo que separa o indivíduo do rebanho, tudo aquilo que assusta ao próximo, será designado como o mal. Por outro lado, o espírito tolerante, humilde, submisso, respeitoso com a igualdade, com a mediocridade dos desejos colhe epítetos e honras morais". P. 114. 

** Moral gregária << >> moral do medo.



A moral na Europa é atualmente uma moral de rebanho. P.203.


** Movimento democrático >> herdeiro direto do movimento cristão. Decadência da organização política e aviltamento do Homo sapiens.
"Assim, por imperativo e ajuda de uma religião que se mostrou complacente com os desejos do rebanho, chegamos a encontrar a moral até nas instituições políticas e sociais; de tal modo que cada vez é mais evidente que para esta moral o movimento democrático é o herdeiro do movimento cristão". P. 115. 
"A degeneração universal do homem rumo a isto a que aos socialistas — aos cabeças de abóbora se apresenta como o "homem do futuro" — como o seu ideal esta degeneração, esta diminuição do homem até torná-lo um homem de rebanho perfeito (ou ainda, como dizem, o homem da "sociedade livre"), um embrutecimento do homem ao nível dos direitos iguais e deveres é possível, não há dúvida! Quem meditou até às últimas conseqüências sobre essa possibilidade, chegou a conhecer uma nova espécie de náusea — e também um novo dever!". P.117.

Esquema de leitura: Why ecocentrism is the key pathway to sustainability, Washington, H. et al.

Universidade de Brasília – UnB
Centro de Desenvolvimento Sustentável – CDS
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável
Doutorado
Professor José Luiz de Andrade Franco
Aluna: Juliana Capra Maia
Esquema de Leitura: WASHINGTON, H.; TAYLOR, B.; KOPNINA, H., CRYER, P. and PICCOLO, JJ. Why ecocentrism is the key pathway to sustainability. The Ecological Citizen. Vol 1 n. 1, 2017, Y–Z.



ABSTRACT

** Conceitos:

  • Ecocentrismo >> É o termo utilizado para designar as ideias que reconhecem valor intrínseco em todas as formas de vida e nos próprios ecossistemas, inclusive com seus componentes abióticos.
  • Antropocentrismo >> Nêmesis do ecocentrismo. Estabelece valores para outras formas de vida e para os ecossistemas conforme sua utilidade para o bem-estar humano, suas preferências e seus interesses.
** Principais aspectos trabalhados no artigo: discussão a respeito das raízes do ecocentrismo, bem como o seu reconhecimento internacional. Refutação da acusação de misantropia. Discussão de como o antropocentrismo não é suficiente para proteger adequadamente o Planeta Terra e os seus habitantes. Em conclusão, os autores defendem que o ecocentrismo é essencial – ética, evolucionária, espiritual e ecologicamente – para solucionar a crise ambiental que atravessamos. Desse modo, a transformação ética em favor do ecocentrismo não é apenas um imperativo ético, mas também um imperativo prático. Por isso, seria necessário apoiar os argumentos e as práticas ecocêntricas.



INTRODUÇÃO
Ecocentrism finds inherent (intrinsic) value in all of nature. It takes a much wider view of the world than does anthropocentrism, which sees individual humans and the human species as more valuable than all other organisms”. P. Y.
** O ecocentrismo vai além do zoocentrismo e do biocentrismo. Enquanto o zoocentrismo atribui valor intrínseco aos animais e o biocentrismo atribui valor intrínseco à vida, o ecocentrismo atribui valor intrínseco inclusive a seres não-vivos e a processos ecológicos.



RAÍZES HISTÓRICAS DO ECOCENTRISMO

** O ecocentrismo não é novidade. Ele remonta às nossas primeiras intepretações sobre a natureza, que foram interpretações mágicas.
  • Essa abordagem já foi chamada de “velha sustentabilidade” (old sustainability) e foi ressuscitada por Aldo Leopold, que defendeu a adoção de uma “Ética da Terra”.
  • Mais tarde, pensando no mesmo tipo de problema, Arne Naess cunhou o termo “Deep Ecology” (Ecologia Profunda). O valor intrínseco da natureza consta como o primeiro princípio dessa vertente filosófica que também é uma plataforma política.
** A solução para a crise ecológica é o ecocentrismo. A grande metáfora não deve ser o homem ou o indivíduo, mas a Terra como grande organismo vivo.



RECONHECIMENTO DO VALOR INTRÍNSECO DA NATUREZA NA POLÍTICA INTERNACIONAL

Tanto a Declaração de Estocolmo (ONU, 1972), quanto a Estratégia de Conservação Global (IUCN, 1980) constituem documentos pautados no antropocentrismo ético. Enfatizam a necessidade de adotar um uso sábio dos recursos naturais, de modo que tais recursos não venham a se extinguir, prejudicando a sobrevivência ou a qualidade de vida das futuras gerações de seres humanos. 

O documento World Charter for Nature (ONU, 1982), por sua vez, enuncia princípios claramente ecocêntricos, estipulando, inclusive, que humanos e cultura são partes da natureza. 

O documento “Nosso futuro comum”, de 1987, abraça princípios ecocêntricos e reconhece o valor intrínseco da natureza. Contudo, na Declaração de Tóquio, que o acompanha, torna a tratar da natureza como fonte de “recursos” para o desenvolvimento econômico, a interesse dos seres humanos.

A Declaração do Rio, de 1992, enuncia em seu primeiro princípio que “os seres humanos são o centro das preocupações do desenvolvimento sustentável”, abraçando uma perspectiva claramente antropocêntrica.

A Carta da Terra, concluída em 2000, avança na adoção de perspectivas ecocêntricas, de reconhecimento de valor intrínseco à natureza. Humanidade e natureza são tratadas como uma totalidade para a qual clama-se justiça. O documento não foi endossado pela Declaração de Johannesburg. Da mesma forma, o documento da Rio + 20 não endossou o reconhecimento de valor intrínseco à natureza, embora tenha mencionado que há países (os autores citam o Equador e a Bolívia) que atribuem direitos à Mãe Terra.  

Vê-se, pois, que apesar do apoio obtido pelas abordagens ecocêntricas, ainda prevalece o antropocentrismo ético como consenso dos governos o que, aliás, reflete o antropocentrismo ético das tradições culturais e religiosas.


Necessidade de os acadêmicos se manifestarem expressamente em prol do ecocentrismo.



VALOR INTRÍNSECO INDEPENDENTE DE QUALQUER VALORAÇÃO HUMANA

A natureza e a vida na Terra possuem valor intrínseco, isto é, são inerentemente boas, independentemente do juízo que delas fazem os humanos. Fruto do longo processo evolutivo, os processos naturais criaram certa integridade.

O valor da natureza e da vida não são criados pelos seres humanos e por suas culturas, mas apenas descobertos por eles. Defensor: Holmes Rolston. 



O ECOCENTRISMO É MISANTROPO? 

O Ecocentrismo não defende que todos os seres tenham valor de existência igual. Também não nega a existência de uma miríade de problemas associados às aglomerações humanas. O Ecocentrismo trata a Ecosfera como um ser que transcende em importância qualquer uma das espécies que a habitam, ainda que essa espécie seja o homem. Os ecocêntricos defendem uma justiça entre humanos, mas também defendem uma justiça entre espécies (ecojustiça).



FORÇA DO ANTROPOCENTRISMO ÉTICO NA ACADEMIA

O Antropocentrismo ético é dominante entre as maiores sociedades, as maiores religiões, as mais difundidas culturas. Por isso, não surpreende que também seja dominante na academia. Constituem abordagens antropocêntricas comuns a respeito da sustentabilidade:
  • Serviços ecossistêmicos. “Serviço ecossistêmicos”, por definição, constituem “benefícios que as pessoas obtêm dos ecossistemas”. Em outros termos, os serviços prestados pelos ecossistemas são considerados apenas no que são úteis a Humanidade. Ocorre que a natureza fornece serviços a todas as espécies, serviços esses que devem ser preservados.
  • Sustentabilidade forte. Oposta à "sustentabilidade fraca". A partir da abordagem da sustentabilidade fraca, seria possível destruir áreas naturais e reduzir a biodiversidade desde que dinheiro, conhecimento e construções fossem transmitidos às futuras gerações. Os defensores da "sustentabilidade forte" vão adiante e exigem que o estoque de capital natural permaneça constante independentemente do capital construído pelo homem. Trata-se de uma abordagem antropocêntrica por focar somente nos requisitos para a sobrevivência humana.  
  • Educação para o desenvolvimento sustentável. Promovida pela ONU e pela Unesco. O approach da Unesco e da ONU favorece o industrialismo, que é uma visão inconsistente com uma compreensão holística de sustentabilidade.
  • Abordagem da nova conservação. Os defensores da "nova conservação" defendem que o bem estar humano deve estar no centro dos esforços pela conservação. Além disso, eles perseguem o desenvolvimento econômico, a redução da pobreza e a parceria entre corporações como substitutos para os mecanismos atuais da conservação, tais como a constituição de áreas protegidas. Essa abordagem distorceria a ecologia e priorizaria o desenvolvimento capitalista em detrimento da integridade da sociedade e dos ecossistemas.


New conservation is all about human interests, not nature’s



POR QUE O ECOCENTRISMO É A SOLUÇÃO?

O Ecocentrismo, com o reconhecimento das obrigações humanas para com a natureza, seria essencial para a solução da grave crise ambiental atualmente enfrentada.
  • Aspectos éticos. O ecocentrismo expande a comunidade ética ou moral para outros seres que não os humanos. Isso implica respeito por toda forma de vida e mesmo pelos ecossistemas terrestres e aquáticos em si mesmos. O ecocentrismo tem sido um aspecto importante para diversos indivíduos e para muitas culturas ao longo de milênios. Não há justificativa filosófica ou científica para que as preocupações morais não sejam estendidas para toda a ecosfera, com seus componentes bióticos e abióticos. 
  • Aspectos evolucionários. O ecocentrismo reflete o reconhecimento de que o Homo sapiens evoluiu cercado de uma ecosfera rica em diversidade de vida, o que é um legado de 3.5 bilhões de anos. Em outros termos, o ecocentrismo reconhece que somos parte da natureza, não uma espécie à parte. Isso erode as noções de supremacia humana. 
  • Aspectos espirituais. Os valores ecocêntricos eram constituintes de diversas religiões. Atualmente, eles vêm sendo progressivamente fundidos às espiritualidades baseadas na natureza e em vários casos, criando credos completamente novos. Visão da Terra e dos seus ecossistemas como sagrados, dignos de reverência e de cuidado. 
  • Aspectos ecológicos. O ecocentrismo nos lembra que a ecosfera e todas as formas de vida são interdependentes. Também nos lembra que tanto humanos quanto não-humanos são completamente dependentes dos processos ecossistêmicos que a natureza provê. Uma ética antropocêntrica, sozinha, é insuficiente para proteger a biodiversidade. Com a perspectiva ecocêntrica, percebe-se que cada espécie e cada organismo vivo hoje chegou aqui por meio de uma longa e incansável luta pela existência. Além disso, a ecologia nos ensina humildade: nós devemos reconhecer que não sabemos tudo a respeito dos ecossistemas da Terra, o que nos sugere uma aproximação cuidadosa de cada um deles. 



O PAPEL DA CIÊNCIA


A ciência ocidental, em especial pela compreensão e elucidação do processo de evolução das espécies, corrobora a ética ecocêntrica. O evolucionismo nos mostra a nossa herança e a nossa dependência em relação à natureza, além de demonstrar a complexa interconexão entre todos os seres vivos. Desse modo, a visão científica é muito próxima daquela adotada por sociedades indígenas, para as quais o homem era parte de um mundo sagrado.
  • Reconhecimento dos saberes tradicionais. Aproximação entre saberes tradicionais e ciência. Discussões cross-culturais.



CONCLUSÕES


Uma ética ecocêntrica derivaria naturalmente do nosso processo evolutivo, das nossas capacidades empáticas e estéticas que, combinadas com nossas habilidades racionais, nos permitiram aumentar o nosso conhecimento a respeito de nós mesmos e do mundo [Afirmação ousada].

Esse processo nos permitiu perceber que nós somos parte da natureza, que estamos mergulhados em um fascinante mundo vivo: o único lugar do universo em que realmente sabemos existir vida. Se algo merece respeito ou mesmo reverência é a vida no nosso próprio planeta-lar. 


Os autores sustentam que uma transformação por meio de uma ética ecocêntrica é o caminho necessário para o florescimento da vida na Terra, inclusive da vida da nossa própria espécie.  

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Esquema de leitura: Of tigers and humans: the question of democratic deliberation and biodiversity conservation, de Kopnina, Helen.

Universidade de Brasília - UnB
Centro de Desenvolvimento Sustentável - CDS
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável
Doutorado
Professor José Luiz de Andrade Franco
Aluna: Juliana Capra Maia
Esquema de Leitura: KOPNINA, Helen. "Of tigers and humans: the question of democratic deliberation and biodiversity conservation"in WUERTHNER, George; CRIST, Eileen; BUTLER, Tom. Protecting the wild: parks and wilderness, the foundation for conservation. San Francisco: Foundation for Deep Ecology; Washington DC, Island Press; 2015.



** Políticas pró-conservação não estão diretamente relacionadas ao triunfo da democracia. 
  • Criação das áreas protegidas na República Dominicana, por governo autoritário; 
  • Criação das áreas protegidas na África Oriental, mediante editos dos governos coloniais;
  • Proteção da vida selvagem africana mediante autorização para matar caçadores (Richard Leakey);
  • Guerra à caça ilegal e ao contrabando, no Estado Indiano Maharashtra, mediante autorização expressa para atirar em caçadores e traficantes.


** Problema ético: conservar a vida selvagem autoriza violar os direitos fundamentais dos caçadores e traficantes de biodiversidade?


** Por definição, "democracia" é um sistema participativo de tomada de decisões. Mas esse sistema é "participativo" para seres humanos. Seres não-humanos não participam de tais decisões. Como resultado, não há qualquer garantia de que "mais democracia" representará "mais conservação".



Conservação dos tigres

** Ao longo do século XX, cerca de 97% dos tigres que habitavam a Terra foram mortos. Se antes eles rondavam toda a Ásia, atualmente, há cerca de 3.200 indivíduos, confinados em áreas protegidas. Por quê?
  • Caça ilícita de tigres.
  • Sobre-caça das presas dos tigres.
  • Fragmentação de habitats.
  • Mudança climática, afetando um dos habitats do tigre (uma floresta em Bangladesh).


** Casos mais recentes:
  • Na Índia, em 1972 foi lançado um projeto em prol da conservação dos tigres, com o aval da primeira ministra Indira Gandhi. O sucesso do projeto foi eclipsado pelas acusações de que o governo de Gandhi atuou de forma anti-democrática para alcançar os seus intentos (controle de natalidade de populações humanas; obrigatoriedade de remoção de populações humanas para outras áreas).
  • No extremo leste da Rússia tem se verificado o declínio drástico do número de tigres siberianos. O governo de Vladimir Putin -- que é, no mínimo, polêmico em termos de  respeito à democracia -- decidiu lançar um programa para restaurar a população do tigre siberiano e, mais além, decidiu reintroduzir o leopardo persa no sul do território russo, de onde o felino foi extinto na década de 1970.



Eficácia da conservação

Alguns autores dizem que a democracia é inadequada para as políticas conservacionistas, dado que ela mesma é parte do problema. Isso porque as democracias liberais seriam influenciadas por elites motivadas por lucro no curto prazo, o que é incompatível com os desafios da conservação. 

Outros autores alertam que as políticas conservacionistas autoritárias tendem a colapsar. Isso porque o preço de manter grandes áreas inacessíveis à população se tornaria proibitivo. Ademais, permitir à população acessar áreas protegidas legaria às populações locais certo senso de responsabilidade ambiental.

A autora alerta que a participação das comunidades locais nas políticas conservacionistas não garante a sua eficácia. Casos:
  • Mortandade de golfinhos pela população das Ilhas Solomon, por causa de uma disputa com uma organização não governamental. Os ilhéus acusaram a ONG de não lhes ter pago a contrapartida pela preservação dos animais, como combinado. Por sua vez, a ONG arguiu que os líderes da comunidade se apropriaram do dinheiro que deveria ter sido distribuído entre todos. 
  • Comunidades indígenas que têm as suas terras demarcadas para, depois, vender o direito de explorá-las no grande mercado.



Justiça ambiental

** O que é perseguido pelos que lutam por "Justiça ambiental"? 4 grandes eixos:
  • Reequilíbrio dos benefícios ambientais em favor de grupos desfavorecidos;
  • Alerta para a exposição desigual a riscos ambientais: grupos desfavorecidos estão sujeitos a maiores riscos; grupos favorecidos estão sujeitos a menores riscos.
  • Justiça inter-geracional. Que planeta as gerações futuras herdarão?
  • Justiça entre espécies. 


** Conservacionismo > acusado, pela Antropologia, de ser coisa de gente ocidental, branca, de classe média ou de classe alta. Desse modo, seria uma nova forma de colonialismo imposta às sociedades simples. Crítica:
  • Argumentos que desconsideram o igualitarismo biosférico (aumentando a miopia do antropocentrismo ético); 
  • Argumentos que desconsideram os próprios valores ecocêntricos de determinados grupos humanos que supostamente "defendem"; 
  • Argumentos que desconsideram que comunidades tradicionais estão cada vez mais integradas no "mundo ocidental", adotando atitudes de exploração da natureza típicas do "homem branco".
  • Contradição entre "defender os direitos de exploração dos recursos naturais" (lógica mercadológica) e "defender os direitos de preservação dos recursos naturais" (lógica tradicional) pelas sociedades simples.


** Na inexistência de uma ética universal, as avaliações das políticas conservacionistas acabam dependendo de pontos de vista. 

Debate sobre a (in) existência de valor intrínseco de espécies não-humanas. De acordo com uma perspectiva ecológica rasa, o valor da natureza repousa na satisfação das necessidades (físicas, estéticas ou espirituais) dos homens. 

Essa perspectiva deixa de fora a discussão sobre incontáveis espécies e processos ecológicos considerados "inúteis"; deixa de fora a discussão sobre redução e fragmentação drástica de habitats; deixa de fora a discussão sobre as formas cruéis de criar e de abater animais para o consumo humano; sobre experimentos científicos cruéis com animais. 

Ademais, como a população humana pode sobreviver com grandes monoculturas, a existência de grande parte da biodiversidade se torna "redundante".



Democracia e ética

** Em uma democracia, sem a existência de defensores da natureza legalmente reconhecidos, não há garantias de que espécies não-humanas serão consideradas nos processos decisórios. Ao contrário, a tendência é que não o sejam. 

** Nesse contexto, as políticas conservacionistas "top-down" seriam, sim, eticamente justificáveis. A ética não seria exclusivamente aplicável a seres humanos. Se é assim, formas de vida não-humanas consistem uma minoria. Como tal, devem ser protegidas.
"Ecologically enlightened political leadership might be needed to make "unpopular", in the short term, decisions by sacrificing some aspects of democracy on the altar of abating biodiversity loss. If the deep ecological perspective were to be taken seriously, the voice of the "minority" of advocates would actually be recognized as the voice of the majority of biospheric citizens, and the discrimination against the nonhuman species would come to be seen as a case of grave environmental injustice". P. 70. 


Conclusão

No curto prazo, políticas conservacionistas autoritárias tendem a ser mais bem-sucedidas que as políticas democratizantes. No longo prazo, contudo, elas não se sustentam. Então, como agir? 

Para a autora, a democracia só será um regime adequado à conservação se tomar os seres não humanos como sujeitos éticos, cujos interesses podem ser defendidos por eco-advogados (e "eco-lobistas").

Artigo publicado em periódico. De naturalista a militante: a trajetória de Rachel Carson

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