quarta-feira, 2 de maio de 2018

Esquema de Leitura: Biologia, natureza e república no Brasil nos escritos de Mello Leitão, Regina Horta Duarte

Universidade de Brasília - UnB
Centro de Desenvolvimento Sustentável - CDS
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável - PPG/CDS
Doutorado
Elaboração de Trabalho Final - Tese
Orientador: Prof. Dr. José Luiz de Andrade Franco
Aluna: Juliana Capra Maia
Esquema de leitura: DUARTE, Regina Horta. Biologia, natureza e República no Brasil nos escritos de Mello Leitão (1922-1945). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 29, nº 58, p. 317-340 - 2009.
  
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INTRODUÇÃO

** Início do século XX. Instrumentalização política do saber biológico no Brasil.
 
** Cientistas do Museu Nacional do Rio de Janeiro, que defendiam a construção de um Estado forte e centralizado.  

** Destaque do artigo: entomólogo (aracnólogo) Cândido Mello Leitão >>
  • Oriundo de família católica de Campina Grande/PB.
  • Médico pediatra formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
  • Prestigiado zoólogo.
  • "Embaixador cultural” brasileiro.
  • Em sua vida, uniu militância, trabalho fervoroso em prol da divulgação científica e a sistematização de certa visão sobre natureza, harmônica com concepções políticas centralizadoras e autoritárias.
  • Autor de "A vida maravilhosa dos animais", livro dedicado aos leigos a respeito de curiosidades sobre a vida animal. Redigido em linguagem simples, mas carregado de pretensões literárias e poéticas (estratégia para seduzir os leitores), o livro fez sucesso: a sua primeira edição data de 1935 e a segunda, de 1944.
  • Integrou o Conselho Nacional de Geografia e a Academia Brasileira de Ciências (da qual foi presidente entre 1943 e 1945).

** Atuação destacada de Mello Leitão entre 1922 e 1945, período crucial da história brasileira (Revolução de 1930). Estavam abertos os debates sobre a formação do povo e do papel do Estado na condução da sociedade >>
  • Politização explícita da biologia, utilizada como base teórica para um projeto autoritário de Estado.
  • Mello Leitão. Atuante entre os seus contemporâneos. Relacionamentos com a comunidade científica local.
 
 
“Conselhos aos jovens zoólogos”: biologia e política

** A biologia recebeu grande impulso no Brasil desde o início do século XX >>
  • Fundamentos das práticas higienistas em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo;
  • Fundação de laboratórios de pesquisa, como a atual Fundação Oswaldo Cruz (1900) e o atual Instituto Butantã (1901).
  • Pesquisas sobre doenças tropicais, fisiologia, bioquímica e entomologia aplicada. Necessidade do enfrentamento de pragas contra as lavouras.
  • Debates sobre a constituição racial do povo brasileiro, partindo-se dos paradigmas da eugenia e da genética.
** Panorama do Brasil no início do século XX >>
  • Avanço da ocupação do território: construção de ferrovias, instalação de linhas telegráficas, mapeamento das fronteiras.
  • Debates sobre as riquezas naturais (fauna, flora, solo, subsolo).
  • Debate sobre a exaustão da terra por séculos de exploração imediatista.
  • Encontro dos neobrasileiros populações indígenas isoladas.

** A biologia, autoidentificada como disciplina científica que, para além da descrição e classificação das espécies, voltava-se para o estudo aspectos fisiológicos, genéticos e evolutivos dos seres vivos, bem assim das suas relações ecológicas e biogeográficas, era vista como a disciplina que viabilizaria um caminho para que o Brasil alcançasse um futuro próspero
  • Biologia << >> Exploração racional e equilibrada dos recursos naturais visando o bem-estar das gerações presentes e futuras.
  • Disciplina com função normativa, não apenas epistêmica.
  • "Era da Biologia" >> Em vários países -- não somente no Brasil -- os biólogos assumem o papel de interlocutores nos debates sobre a nação, a população e o território. Artífices dos novos projetos nacionais.
** O Museu Nacional/RJ se torna centro intelectual de debates e lugar de formação de projetos de renovação nacional. Predomínio de concepções políticas favoráveis à edificação de um Estado centralizado, "forte, supostamente acima dos interesses e apetites individuais, garantindo a superação da miséria material e espiritual de populações até então abandonadas à própria sorte, à doença, à fome e à ignorância". p 322. 

** Se há um paralelo entre natureza e sociedade (o que era assumido como verdade, então), a divulgação científica era essencial para engajar os vários tipos de leitores na grande empreitada que era transformar a sociedade.




Desígnios insondáveis”: biologia e catolicismo 

** Relevância política e social da biologia. Os "biólogos se autoatribuíram o papel de sábios capazes de prescrever medidas restauradoras da saúde de organismos sociais doentes". p. 324.
  • Profetas. Envagelistas. Decodificadores aptos a revelar os ensinamentos morais de Deus, extraídos do atento estudo sobre as diferentes formas de vida.
  • Esforço por unir nacionalismo e compreensão da natureza. Extrapolação dos limites da academia para renovar a sociedade.
  • Eugenia. Impulsionava o papel da biologia da constituição dos povos. A herança genética poderia melhorar o povo ou inviabilizá-lo.
**  Antidarwinismo dos meios científicos brasileiros das primeiras décadas do século XX. 


** Biologia de Mello Leitão >>
  • Defensor da conciliação entre razão e fé. Existência de uma “teia da vida”, no âmbito da qual os humanos seriam apenas um dos elos de uma intrincada “cadeia cósmica regida por uma inteligência superior”. 
  • Ciência e religião constituiriam estradas paralelas em direção ao mesmo fim: a Verdade suprema inscrita por Deus no mundo sensível.
  • Defendia a possibilidade de evolução das espécies harmoniosamente conciliada com uma perspectiva religiosa, evolução essa que seria absolutamente independente da seleção natural (cooperação ao invés de competição). Antidarwinismo.
  • Vitalismo.
  • A origem, as transformações e a extinção das espécies seriam mistérios, problemas para os quais ainda não haveria respostas claras.
  • Projeto político eminentemente reacionário. Apostava numa perspectiva da sociedade calcada na harmonia, no entendimento, na cooperação. O conflito e as lutas sociais seriam práticas degeneradas (na esteira, aliás, do sindicalismo promovido pela Igreja Católica, baseado na concepção de harmonia entre capital e trabalho e no respeito à lei e à ordem).
  • Oposição ao materialismo e valorização da perspectiva religiosa da natureza.
  • Conciliação entre religião e razão.
  • Usou estudos genéticos para defender o controle da imigração.
Mediante a divulgação da perspectiva de um mundo natural organizado como uma teia da vida, holística, equilibrada e perfeita, reflexo do mundo das essências e fruto da criação divina, Mello Leitão desejou muito mais que instruir seus contemporâneos acerca das novas descobertas biológicas. p. 327.
  • Deveria ter, sempre que possível, referências à flora, à fauna e ao solo brasileiros.




Erudição versus erros vulgares: biologia e educação

** A aproximação de uma parcela da elite intelectual com o regime pós-Revolução de 1930 pode ser exemplificada pelas práticas dos cientistas do Museu Nacional.
  • A atuação de Mello Leitão foi destacada e estreitamente ligada ao regime de Vargas.
  • Em 1933, Mello Leitão foi nomeado membro de comissão para a elaboração de um anteprojeto de regulamentação das caça e de proteção da fauna silvestre. 
  • Em 1934, é aprovado o primeiro Código de Caça e Pesca brasileiro (Decreto 23.672/1934). O Decreto-lei 24.645/1934 colocou toda a fauna brasileira sob a tutela do Estado.

** Mello Leitão atuou em diversas instituições. Mas o Museu Nacional foi central para a sua projeção nacional e internacional. 
  • Museu Nacional >> Prestigiado pelo governo de Getúlio Vargas, já que a instituição abraçou a redescoberta do Brasil, a conquista e o conhecimento do seu território, a valorização de seu solo, do seu povo, da sua hidrografia, da sua fauna e da sua flora.

** Renovação da sociedade por meio da educação >>
  • Aproximação entre o Museu Nacional e o movimento da Escola Nova.
  • Após décadas de debates eugenistas, nos quais predominava a visão pessimista de que o povo brasileiro, em decorrência da miscigenação, estava fatalmente destinado ao fracasso, o Museu Nacional abraçou a ideia de que a sociedade podia ser renovada por meio da educação e de condições mínimas de higiene.
  • Movimento intelectual de mobilização em prol da educação do povo brasileiro como caminho de construção nacional: superadas a ignorância e as doenças provocadas por baixas condições de higiene, o Brasil, que tinha uma natureza rica, se tornaria uma grande Nação.

** Revista Nacional de Educação >>
  • Inauguração de novas relações entre o governo e uma população a ser educada. 01 Estado = 01 povo = 01 nação.
  • Mais assíduos autores: Mello Leitão e Alberto Sampaio.

** Artigos de divulgação científica de Mello Leitão >>
  • Retratam uma natureza harmoniosa, sem conflitos, construída como uma teia de interdependências e colaborações, sincrônica com as perspectivas corporativistas em ascensão nos projetos políticos que se destacariam a partir de 1937.
  • Neutralização ou desconsideração dos conflitos sociais, fossem eles lutas de classes ou diferenças ideológicas. 
  • Exercícios de erudição, afastados da taxonomia classificatória.
  • "Texto temperado com imagens poéticas e sedutoras de um mundo de maravilha, mistério e perfeição, repleto de lendas, fábulas e referências culturais diversas". p.330.
  • Possível comparação entre os textos de Mello Leitão com os de autores de história natural dos séculos XVI e XVII. Narrativas repletas de referências míticas e lendárias colhidas na Antiguidade. Descrever um inseto ou qualquer outro ser vivo era narrar tudo o que se podia dizer sobre ele. [Rachel Carson].
  • Para além da demonstração de erudição, o objetivo de Mello Leitão era constituir uma base cultural para os seus leitores, ligando-os a uma tradição cultural ocidental que remonta à Antiguidade Clássica. Ao mesmo tempo, apresentava-os a elementos de cultura ameríndia, o que deveria formar a peculiaridade do brasileiro frente aos demais países do Ocidente.
Tal erudição tinha, portanto, o propósito pedagógico de elevar o nível cultural dos leitores aos quais Mello Leitão se dirigia e, simultaneamente, valorizar uma cultura apresentada como autenticamente nativa, genuinamente brasileira, que estivesse à altura de um território enaltecido por suas riquezas naturais. p. 331.
  • Defendia claramente que estudar a natureza era uma forma de extrair verdades inquestionáveis a respeito das sociedades humanas. Em outros termos, estudar os animais servia como guia para gerar normas para a ação dos seres humanos.

A autoridade da verdade científica é estendida para as normas disciplinadoras dos comportamentos subjetivos.

Os artigos apresentavam um ponto de observação comum entre o leigo e o cientista para logo desprezarem as concepções populares e correntes, acrescentando, na sequência do texto, uma série de “informações confiáveis”. A experiência do leitor, assim, era evocada tão-somente para ser desvalorizada, predominando a ideia de que o biólogo era um intermediário indispensável entre o homem comum e a natureza ao seu redor, numa perspectiva pedagógica certamente coerente com o autoritarismo de Mello Leitão. Evidenciava-se a ambiguidade entre a ideia geral de que a “cultura nativa” deveria ser valorizada e a concepção de que a população ignorante e supersticiosa deveria ser educada pelas elites intelectuais, combatendo seus “erros vulgares”. P. 333.

** Veiculação de palestras e de artigos em programas de rádio [Rachel Carson, too!].




O “Fabre brasileiro”: biologia e poesia em tempos difíceis
** Mello Leitão foi um dos autores mais ativos da Biblioteca Pedagógica. É autor de livro pioneiro sobre a distribuição territorial da fauna brasileira.
 
** "A vida maravilhosa dos animais", 1934.  Livro da autoria de Mello Leitão que foi sucesso de crítica, sendo elogiado nas colunas literárias de vários jornais. Conciliação entre os rigores científicos e o prazeroso conhecimento dos aspectos pitorescos da vida animal.[Similaridade com Rachel Carson!]. 
  • Valorização do mistério da vida.Vitalismo.
  • Interpretação da natureza a partir de pressupostos eminentemente políticos.
  • Uso de argumentos científicos para justificar certas concepções sobre a sociedade.
  • Combate ao darwinismo e a defesa da noção de harmonia e organicidade.
  • Erudição, escrita literária.
  • Combate aos erros vulgares.
  • Recurso às fábulas como meio de agregar valores morais.

** Contexto da publicação do livro: turbulências políticas intensas. Após a promulgação da Constituição de 1934, Vargas foi eleito presidente da República (votação indireta) e promoveu a criação de leis sindicais corporativistas. Ao longo do seu governo, ocorreram várias manifestações e levantes comunistas. Vargas decretou estado de sítio. O acirramento desses conflitos levaria ao golpe de Estado de 1937, com o fechamento do Congresso Nacional e a outorga da "Polaca", a Constituição de 1937. 
  • Regime centralizador, autoritário, de forte apelo anticomunista.
  • Mesclando entre paternalismo e uma postura nacionalista e industrializante.
  • Adesão de grande parcela da população ao regime, diante dos indícios de nova guerra mundial.
Enquanto o governo Vargas estimulava um sindicalismo subserviente e o corporativismo social, Mello Leitão elogiava as aranhas, “obreiras imperturbáveis, em seu manejo paciente”, “modestas e silenciosas”. Apontava a sofisticação dos macacos e suas sociedades baseadas na divisão do trabalho, na solidariedade e no sentimento de compaixão entre os indivíduos e, sobretudo, na “mais cega obediência aos chefes”. Argumentos semelhantes foram utilizados para que o autor discorresse sobre pelicanos, cegonhas, marmotas, cupins, pinguins, pardais e tantos outros animais. P. 335.
 


CONCLUSÃO

** A biologia de Mello Leitão aborda a natureza sob um viés autoritário, predominante nos rumos políticos da nação brasileira daquelas décadas. A ascensão profissional de Mello Leitão foi simbólica em relação ao fortalecimento de um projeto político conservador no qual houve grande destaque à valorização e ao estudo da natureza.
  • O projeto político autoritário buscava na natureza e na ciência fontes inquestionáveis de verdades, as quais deveriam inspirar a própria estruturação da sociedade brasileira.

** A Ditadura Vargas editou vários decretos de proteção à natureza, tais como os de criação dos primeiros parques nacionais (1937 e 1939). Mas esses projetos eram impostos, "de cima para baixo", e deles a sociedade civil estava alijada. 


** Da segunda metade da década de 1940 em diante, uma nova ordem mundial e os interesses industrializantes das elites brasileiras levaram as bandeiras conservacionistas a perderem espaço. 
  • A década de 1950 testemunhou uma verdadeira "febre desenvolvimentista" e o discurso de proteção da natureza apareceu como um obstáculo ao progresso do Brasil.
  • Finda a ditadura Vargas, em 1945, rejeitou-se tudo o que lembrasse a "Era Vargas". O nacionalismo ufanista até então predominante estava muito associado às questões ambientais.

Artigo publicado em periódico. De naturalista a militante: a trajetória de Rachel Carson

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