terça-feira, 24 de março de 2020

Artigo publicado em evento: MAIA, J. C.; FRANCO, J. L. A. Rachel Carson e o Oceano

Universidade de Brasília - UnB
Centro de Desenvolvimento Sustentável - CDS

Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável
Doutorado
Artigo: MAIA, Juliana Capra; FRANCO, José Luiz de Andrade. Rachel Carson e o Oceano. Anais do IX Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade - ANPPAS, Brasília/DF, 08 a 11 de Outubro de 2019, GT 19: Mídia e Ambiente.  


Rachel Carson e o Oceano





RESUMO 

Esta publicação apresenta contexto, conteúdo e recursos estilísticos dos três livros de Rachel Carson a respeito do oceano: Sob o mar-vento, O mar que nos cerca e Beira mar. Referidas obras foram sucessos editoriais e consagraram Carson como autora divulgadora de ciência nos Estados Unidos. Ademais, os livros acerca do oceano lhe outorgaram independência intelectual e financeira. Sem elas, dificilmente a autora teria escrito, editado e publicado o seu clássico e campeão de vendas, Primavera Silenciosa, uma dura denúncia sobre o uso indiscriminado de pesticidas ao longo das décadas de 1940 e 1950, considerado obra precursora do ambientalismo contemporâneo. O artigo também explica como estratégias, recursos midiáticos e a excelente prosa de Rachel Carson transformaram temas áridos da ciência em matéria acessível ao público leigo. Ao longo da década de 1960, essa apropriação bem-sucedida do saber científico mostrou-se peça-chave da eclosão do movimento ambientalista no Ocidente. 

Palavras-chave: Rachel Carson, Divulgação Científica, Ambientalismo. 



ABSTRACT 

This publication presents the context, the content and the stylistic features of Rachel Carson's three books on the ocean: Under the Sea-Wind, The Sea Around Us, and The Edge of the Sea. Such works have been editorial successes and have consecrated Carson as a respectful author of science in the United States. In addition, such books about the ocean gave her intellectual and financial independence. Without them, the author would hardly have written, edited, and published her classic best-seller Silent Spring, a harsh denunciation of the indiscriminate use of pesticides throughout the 1940s and 1950s, considered a precursor to contemporary environmentalism. The article also explains how strategies, media resources and the excellent writing of Rachel Carson turned arid themes of science into matter accessible to the lay public. During the 1960s, this successful appropriation of scientific knowledge was a key to the emergence of the environmental movement in the West. 

Keywords: Rachel Carson, Scientific divulgation, Environmentalism. 




Introdução 

Rachel Louise Carson, zoóloga marinha formada pela Johns Hopkins University e escritora estadunidense, nasceu a 27 de maio de 1907, em Springdale / Pensilvânia, uma pequena cidade estadunidense economicamente dependente da mineração de carvão. Mundialmente conhecida como ícone do ambientalismo contemporâneo (MCCORMICK, 1992), Carson é autora do clássico e campeão de vendas Silent Spring, traduzido para a língua portuguesa sob o título Primavera Silenciosa (CARSON, 1962). A obra foi publicada em 1962, no auge da Revolução Verde, da Guerra Fria, da crise nuclear e da descoberta dos efeitos teratogênicos da talidomida, contexto que parece ter favorecido o seu impacto sobre as massas (BEYL, 1992; LEAR, 1993; MOORE, 1997; LYTLE, 2007; BONZI, 2013; DAVIS, 2013; MUSIL, 2014). 

Apesar da enorme repercussão internacional de Primavera Silenciosa e da “controvérsia dos pesticidas”, nele abordada, foram bastante diversos os escritos e os assuntos que trouxeram reconhecimento público, independência intelectual e estabilidade financeira a Rachel Carson. Ela os obtivera anos antes, por meio da publicação de três belos livros a respeito do oceano (BEYL, 1992; LEAR, 1993; MOORE, 1997; LYTLE, 2007): Under the Sea-wind, The Sea Around Us e The Edge of the Sea. Referidas obras foram respectivamente traduzidas para a língua portuguesa sob os títulos: Sob o mar-vento, O mar que nos cerca e Beira-mar (CARSON, 2011; 1956; 1955). 

Este artigo tem como propósito apresentar o contexto, o conteúdo e os recursos estilísticos das três publicações de Rachel Carson a respeito do oceano. Também pretende explicar o motivo desses trabalhos em ecologia marinha terem se convertido em sucessos editoriais. Por derradeiro, ilustra como, nos anos 1960, as estratégias e os recursos midiáticos permitiram que Rachel Carson passasse a ser considerada uma porta-voz da ciência, capital que lhe rendeu respeito na esfera pública dos Estados Unidos da América – EUA. Observe-se que, não fosse Rachel Carson considerada uma crítica legítima dos novos agroquímicos, dificilmente Primavera Silenciosa teria logrado impactar tão profundamente o mundo ocidental. 



Sob o mar-vento 

Under the Sea-wind, o primeiro livro de Rachel Carson, foi publicado em 1941 (CARSON, 2011). O trabalho resultou da revisão, da ampliação e da adaptação do artigo Undersea, também de autoria de Carson, veiculado pelo The Atlantic Montlhy em 1937 (MOORE, 1997). Undersea e Under the Sea-wind foram alimentados por dados e pesquisas disponibilizados a Rachel Carson em consequência de sua formação acadêmica e do cargo público que ocupava no US Bureau of Fisheries, convertido, no ano de 1940, em uma das principais agências ambientais estadunidenses, o US Fish and Wildlife Service (LEAR, 1993; LYTLE, 2007). 

O primeiro livro de Carson vendeu pouco, não obstante as críticas favoráveis que recebera. Biógrafos da autora sugerem que, na época, o público estadunidense estava apreensivo com as consequências políticas do ataque japonês à base de Pearl-Harbor/Havaí. O evento, ocorrido em dezembro de 1941, isto é, apenas dois meses depois do lançamento do Under the Sea-wind, motivou os EUA a declararem guerra contra o Japão. Em sequência, Alemanha e Itália declararam guerra contra os EUA, globalizando o conflito até então restrito ao território europeu. Assim, para a infelicidade de Carson, o clima não era o mais favorável à divulgação da história natural (BEYL, 1992; LEAR, 1993; MOORE, 1997; LYTLE, 2007). 

Under the Sea-wind tinha como finalidade familiarizar os leitores com a vida marinha, uma realidade ainda bastante desconhecida do público leigo nos anos 1940 (CARSON, 2011). O oceano, “soberano sobre a vida e a morte de cada uma de suas criaturas” (CARSON, 2011, p. 23), é o seu personagem central. A autora o aborda como uma grande teia ecológica, valendo-se, para tanto, de uma narrativa jornalística a respeito da vida cotidiana dos animais marinhos. Para tanto, secciona Under the Sea-wind em três: Livro 01: Beira Mar; Livro 02: O caminho da gaivota e Livro 03: Rio e mar

O Livro 01: Beira-mar, é dedicado à vida costeira e Carson a retrata a partir do comportamento de aves marinhas, nominalmente a gaivota, o talha-mar, o mergulhão, o maçarico-branco, o maçarico-das-rochas, o maçarico-real, o maçarico-de-perna-amarela, o maçarico-pernilongo, o maçarico-de-bico-fino, a andorinha-do-mar, o zarro, o cisne, a marreca-de-asa-azul, a bernaca, a garça, a tarambola, a gaivota-argêntea, a gaivota-alegre, o vira-pedras, o sabiá, a ptármiga, a escrevedeira-das-neves, a coruja-da-neve e o tentilhão (CARSON, 2011). Essas aves são as predadoras da zona costeira: elas se alimentam de peixes, mexilhões, insetos, caranguejos, roedores. Além dos hábitos alimentares, Carson aproveita para salientar curiosidades sobre a avifauna costeira, tais como o comportamento “pirata” da águia-calva, que rouba os peixes capturados pelas águias-pescadoras; e a capacidade, de algumas espécies, de migrarem por mais de 14 mil quilômetros ao ano, desde a Patagônia até o Ártico (CARSON, 2011). 

O Livro 02: O caminho da gaivota, é dedicado à vida no mar aberto e Carson (2011) a retrata a partir dos hábitos da cavala (Scomberomorus cavalla), espécie de peixe, no Brasil, conhecida como “cavala-branca” (BARBOSA; NASCIMENTO, 2008). A cavala, peixe de características migratórias que pode ultrapassar 1,5 metro de comprimento e 30 kg de massa corporal, tem grande relevância para a pesca esportiva e profissional. Com dentes afiados, escamas minúsculas e formas aerodinâmicas, as cavalas alimentam-se de peixes menores e de moluscos, o que as qualifica como predadores de topo de cadeia. 

Contudo, até alcançar o topo da sua cadeia alimentar, o que somente ocorre em sua fase adulta, a cavala passa por estágios nos quais é apenas mais um item no cardápio de um sem-número de animais marinhos. Poucos filhotes de cavala – talvez um em cada mil – escapam dos incontáveis perigos oferecidos pelo oceano, alcançando a maturidade (CARSON, 2011). Ovas de cavala são predadas por ctenóforos, por medusas, por larvas de peixes, de mariscos, de crustáceos e de vermes, bem como por peixes, mariscos, crustáceos e vermes adultos. Cavalas jovens, por sua vez, são predadas por anchovas, trutas e lulas (CARSON, 2011). 

Carson (2011) descreve a vida marinha em geral (e a da cavala, em particular) como uma grande aventura. No oceano, todos os lugares, fenômenos e criaturas representam perigo em potencial para a vida das cavalas: redes de pesca, cavernas, fissuras em rochas, aves marinhas, moluscos, cetáceos, peixes maiores, tempestades e o próprio movimento das marés. Desse modo, a calmaria do oceano seria apenas aparente. Tal como ocorre nos habitats terrestres, no mar, a luta pela sobrevivência é diuturna. 

O Livro 03: Rio e mar, é dedicado à vida no mar profundo, isto é, na plataforma continental, nos taludes e na região abissal. Carson a retrata a partir dos hábitos da enguia, um peixe de formato alongado e cilíndrico que, tal como as trutas, divide o seu tempo de vida entre águas doces e salgadas. Embora nasçam em águas doces, ao alcançarem a idade reprodutiva, as enguias deixam a calmaria das lagoas, córregos e charcos a fim de migrarem para as águas salgadas. No oceano, só param de migrar ao alcançarem as margens da plataforma continental, o limite do abismo (CARSON, 2011). 

Nas profundezas do mar, as enguias da América e da Europa se encontram e se reproduzem. As suas larvas, em formato de folha, são levadas pelas correntes e ficam à deriva por cerca de 02 anos até tomarem a forma de enguia adulta. Nessa etapa, essas criaturas das regiões oceânicas abissais retornariam ao continente, repetindo a trajetória dos seus pais. Para tanto, adotariam um formato cilíndrico e alongado, mais adequado à viagem rio acima (CARSON, 2011). E, aqui, a imagem invocada pela autora é poderosa. Como migrariam em grandes grupos, juntas, “em fileiras com vários quilômetros de extensão [...], cada uma muito próxima da cauda da companheira que ia à sua frente”, o conjunto de enguias transmitiria, ao observador externo, a impressão de formar uma “serpente de extensão gigantesca” (CARSON, 2011, p. 164). 



O mar que nos cerca 

The Sea Around Us, datilografado pela mãe de Rachel, Maria Carson e publicado em 1951, seria comercialmente muito mais bem-sucedido que Under the Sea-wind (CARSON, 1956; MOORE, 1997). Com ele, Carson e seus editores da Oxford University Press inauguraram a estratégia de divulgar excertos selecionados em revistas de grande circulação antes da publicação do livro propriamente dito. Uma década mais tarde, essa estratégia também foi utilizada no marketing de Primavera Silenciosa. E seja pela propaganda, seja pelo conteúdo dos livros, ambos foram completos sucessos comerciais. Em dezembro de 1951, The Sea Around Us vendia mais de 4 mil cópias por dia; em um único ano, foi reimpresso 11 vezes. O livro, logo traduzido para 33 idiomas, recebeu o National Book Award e a Medalha John Burroughs para composições em história natural (BEYL, 1992; MOORE, 1997; LYTLE, 2007). 

Entre todas as publicações de Rachel Carson, The Sea Around Us foi a que provocou maiores mudanças na vida pessoal da autora. O livro rendeu reconhecimento público e estabilidade financeira que finalmente lhe permitiram, em 1952, depois de 15 (quinze) anos como servidora pública, deixar o US Fish and Wildfile Service. O sucesso do The Sea Around Us também permitiu que Carson adquirisse um chalé em West Southport, na costa do Maine e que se dedicasse exclusivamente às suas atividades de escritora. Ademais, o livro valorizou a opinião de Rachel Carson, a partir de então, reconhecida como uma voz respeitável em assuntos científicos (MOORE, 1997; LYTLE, 2007). 

The Sea Around Us, de 1951, o segundo livro de Rachel Carson, está dividido em três grandes seções, respectivamente intituladas O mar, nosso pai, com oito capítulos; O mar inquieto, com três capítulos; e O homem e o mar que o cerca, com três capítulos. Ao longo de todo o texto, a autora apresenta e endossa informações calcadas nos estudos oceanográficos, geológicos e biológicos então disponíveis (CARSON, 1956). 

Na primeira seção, O mar, nosso pai, a autora trata dos achados e especulações científicos a respeito da origem, forma e composição dos oceanos (CARSON, 1956). Aqui, são discutidos, entre outros aspectos: a) a formação geológica dos oceanos, inclusive a hipótese de a Lua ter sido formada mediante projeção, para a órbita da Terra, de grande massa rochosa oriunda da área atualmente conhecida como Oceano Pacífico; b) a diversidade de habitats no oceano; c) a existência e as características da vida nas profundezas abissais, onde não há incidência de luz solar; d) animais oceânicos fosforescentes, gigantes e algas marinhas venenosas; e) as correntes oceânicas que influenciam a diversidade e a quantidade de peixes em águas geladas e em águas tropicais; f) a formação do temido “mar de sargaço”, situado no Atlântico Norte; g) os mistérios da topografia submarina, que teriam desautorizado mitos sobre continentes perdidos, tais como a Lemúria ou a Atlântida; h) os sons produzidos pelos animais marinhos; i) o surgimento e o desaparecimento das ilhas vulcânicas, tais como a Ilha da Trindade (Brasil), a Falcon Island (Austrália) e a famosa Krakatoa (Indonésia); j) o surgimento de espécies endêmicas em ilhas, tais como a tartaruga gigante de Galápagos, o famoso dodô das Ilhas Maurício e a moa da Nova Zelândia; k) o desequilíbrio ecológico provocado pelo homem na colonização das diversas ilhas, mediante introdução de espécies exóticas; l) evidências geológicas dos avanços e das retrações no nível dos oceanos em locais bastante diversos, tais como os rochedos da Rússia, o litoral da Flórida, as montanhas da Pensilvânia, as cavernas do Kentucky, as cataratas do Niágara e as montanhas do Himalaia. 

Na segunda seção, O mar inquieto, a autora trata da dinâmica dos oceanos. A água, explica Carson (1956), longe de permanecer estática no leito dos mares, está em constante movimento. Por sua vez, a acomodação das placas tectônicas na crosta terrestre submarina provoca tsunamis. Os escritos humanos, sejam aqueles legados pelas civilizações antigas, sejam os produzidos pelos noticiários modernos “encerram referências frequentes à devastação de povoações costeiras por essas grandes ondas, que se erguem subitamente do mar”, ceifando, repentinamente, milhares de vidas (CARSON, 1956, p. 134). Conforme exemplifica Carson (1956, p. 134): “um dos registros mais antigos se refere a uma onda que se ergueu ao longo das costas do Mediterrâneo no ano 358 de nossa era, transpondo completamente as ilhas e as terras baixas, deixando barcos em cima do telhado das casas de Alexandria e afogando milhares de pessoas”. 

Além dos abalos sísmicos submarinos, fatores tais como o derretimento de geleiras, o aporte de água doce dos rios continentais, o movimento de rotação da Terra, a gravidade exercida pelos corpos celestes (em especial, a Lua e o Sol) e a diferença de temperatura, de salinidade e de pressão das massas de água provocam fenômenos tais como as correntes submarinas e as marés. Ora, correntes submarinas e marés, por definição, são massas de água em movimento. 

A autora argumenta que o conhecimento a respeito das correntes submarinas tem se mostrado particularmente relevante para a navegação e para a pesca (CARSON, 1956). Para a navegação porque, ainda hoje, permite poupar tempo e energia dos navegantes em suas empreitadas pelo mar: 

[...]. As correntes equatoriais, que correm fortemente, eram familiares a gerações e gerações de homens do mar, no tempo dos barcos a vela. Tão resolutamente seguiam tais correntes para o oeste, que os navios que pretendiam passar para o Atlântico Sul não conseguiam fazer progresso algum, a menos que ganhassem a posição leste necessária na região das rotas comerciais de sudeste. Os três navios de Ponce de León, navegando para o sul, do Cabo Canaveral a Tortuga, em 1513, não conseguiam, às vezes, transpor a Corrente do Golfo e, “embora houvesse vento forte, não podiam eles seguir para diante, indo, ao contrário, para trás”. Poucos anos mais tarde, os capitães espanhóis aprenderam a valer-se das correntes, navegando para oeste na Corrente Equatorial, mas regressando à pátria nas águas da Corrente do Golfo [...]. 
Mesmo nesta época de força diesel, a navegação costeira ao largo do sul da Flórida demonstra respeito integral pela Corrente do Golfo. Quase todos os dias [...] poderemos ver os grandes cargueiros e navios tanques movendo-se para o sul num curso que parece surpreendentemente próximo dos Keys. Na direção de terra, erguem-se muralhas quase ininterruptas de recifes submersos, onde os grandes corais [...] levantam os seus sólidos vultos uma ou duas braças acima da superfície. Na direção do mar, há a Corrente do Golfo e embora os grandes navios pudessem abrir caminho contra ela, rumo sul, consumiriam, ao fazê-lo, muito tempo e combustível. Portanto, escolhem o seu caminho, com cuidado, entre os recifes e a Corrente (CARSON, 1956, p. 143-145). 

Por sua vez, também se trata de conhecimento relevante para a pesca porque o local de encontro entre correntes submarinas quentes e frias é rico em diversidade e quantidade de vida marinha. Leiam-se: 

[…]. Sempre que o curso de duas ponderosas correntes diverge, a água deve subir do fundo para preencher o lugar em que as correntes se separam. [...]. Como resultado da agitação que isso produz nas águas do oceano, esfriadas e enriquecidas pela parte inferior, os organismos menores do plâncton proliferam. Ao multiplicar-se, fornecem alimento às criaturas maiores do plâncton, as quais, por sua vez, fornecem alimento aos calamares e aos peixes. Essas águas são prodigiosamente ricas em vida, existindo evidência de que poderão continuar assim durante milhares de anos. Os oceanógrafos suecos descobriram, recentemente, que, sob essas áreas de divergências, a camada de sedimento é excepcionalmente espessa – uma camada composta de todos os restos de bilhões e bilhões de diminutas criaturas que viveram e morreram nesse lugar (CARSON, 1956, p. 153-154). 

Igualmente relevante para a navegação, para a pesca e para a própria ciência é o conhecimento sobre as marés, diretamente influenciadas por forças cósmicas, em particular pelo poder gravitacional exercido pela Lua e pelo Sol. Apesar de toda a tecnologia náutica desenvolvida pelos seres humanos, navegadores que desconsiderem as marés ainda correm o risco de encalhar ou de afundar, alerta Carson (1956). Ciclos de nascimento, morte e reprodução de animais marinhos também estão ajustados aos movimentos das marés. Para além disso, o ritmo das marés também permite prognósticos a respeito dos movimentos da Terra. 

A autora inicia a terceira e última seção, O homem e o mar que o cerca, com o capítulo intitulado O termostato global, discutindo a existência de relação causal entre as correntes oceânicas e o clima terrestre. Juntamente com os ventos, as correntes oceânicas seriam responsáveis por redistribuir o calor do Sol, desigualmente absorvido pelas diversas partes da Terra. Conforme esclarece a autora, “[...] as correntes oceânicas carregam a água quente equatorial rumo aos polos e trazem água fria em direção do equador, mediante fluxos de superfície [...] e, o que é ainda mais importante, mediante correntes profundas” (CARSON, 1956, p. 178). Além de redistribuir as águas quentes e frias, o oceano também afeta diretamente a temperatura atmosférica. Dada a sua enorme massa de água, a maioria das precipitações pluviométricas do globo terrestre teriam origem nos oceanos. 

Em uma discussão bastante atual, Rachel Carson (1956) argumenta que o clima do globo não é estável o que, além de impactos físicos e biológicos, também já provocou diversos impactos políticos e socioeconômicos na história da humanidade. Reforçariam essa tese – enunciada pelo oceanógrafo sueco Otto Pettersson em 1912 – os dados a respeito da alteração da disponibilidade de recursos pesqueiros no Mar Báltico; os registros arqueológicos da colonização nórdica da Groelândia; as informações a respeito de rotas comerciais em direção à Islândia que foram abandonadas por causa do congelamento do mar e registros druidas a respeito das invasões bárbaras na Gália, segundo os quais “os seus ancestrais foram expulsos de suas terras, nas margens distantes do Reno, por tribos inimigas e por uma grande invasão do oceano” (CARSON, 1956, p. 187). 

Segundo a autora, desde 1900, acentuando-se em 1930, teria se tornado claramente perceptível o aquecimento do Ártico. À época da publicação de O mar que nos cerca, as causas desse fenômeno ainda não eram suficientemente claras. Contudo, já eram notáveis ocorrências como o desaparecimento e a diminuição de geleiras, possibilitando a navegação no Ártico; a redução da estação gelada na Islândia; a migração de fauna subtropical para regiões árticas e o derretimento da neve nos topos das montanhas na Noruega e no Alasca. Para além do Ártico, o aquecimento, alerta Carson (1956), parece ser geral. Isso porque as geleiras dos vulcões situados no leste da África, dos Andes, das altas montanhas da Ásia central e dos Alpes europeus estariam reduzindo drasticamente pelo menos desde 1920. 

No capítulo intitulado Riqueza proveniente dos mares salgados, Carson classifica o oceano como “o maior dos depósitos de minerais da Terra” (CARSON, 1956, p. 195), característica adquirida ao longo de milhões de anos, seja em decorrência do carreamento de sedimentos para o mar, por meio das águas das chuvas; seja por meio do lento e constante processo de desgaste das rochas pela força das águas doces, seja pela contribuição direta dos vulcões submarinos. As águas oceânicas seriam ricas em sais, formados pelos mais diversos elementos químicos. Os esforços humanos para extrair riquezas minerais do oceano, no entender da autora, (CARSON, 1956) ainda teriam índices pífios de sucesso, sobretudo quando comparados à eficiência alcançada por outras formas de vida. As lesmas do mar seriam capazes de extrair vanádio das águas oceânicas; os mexilhões, cobalto; as lagostas, cobre; o caracol Murex, bromo; as esponjas, os corais e certas sementes marinhas, grandes quantidades de iodo. 

Carson (1956) salienta que riquezas minerais, tais como os depósitos de sais existentes em Michigan/EUA, Searles Lake/EUA, Alsácia/França, foram legados aos continentes pelos movimentos de avanço e retração dos oceanos. O mesmo se aplicaria ao petróleo, também dependente do acúmulo de sedimentos e “dos desdobramentos, para cima e para baixo, da crosta da Terra”. Nas palavras da autora: “onde quer que sejam encontrados grandes campos de petróleo, estão eles relacionados com mares antigos ou presentes. Isto é tão verdadeiro quanto ao que diz respeito aos campos de petróleo internos, como aos que se acham atualmente situados junto às costas marítimas” (CARSON, 1956, p. 204). A autora observou que a conexão entre os mares e o petróleo seria tão clara e tão promissora que a geologia estaria investindo os seus esforços no que, à época, era uma nova frente de pesquisa: a exploração petrolífera do fundo do mar, sob os grandes depósitos submarinos de sal (denominada “camada pré-sal”). 

No derradeiro capítulo, intitulado O mar que nos cerca, a autora faz uma digressão a respeito da lenta conquista humana sobre os oceanos. Cita as viagens comerciais empreendidas pelos fenícios, as aventuras dos polinésios pelo Oceano Pacífico, as conquistas dos vikings nos territórios norte-americanos, a representação do oceano, na Idade Média, como o temível “Mar das Trevas”, a Era das Grandes Navegações, marcada por nomes como Cristóvão Colombo e Fernão de Magalhães, as expedições marítimas do Capitão Cook, a descoberta da Antártica, o mítico “Continente Sul” temido pelos antigos geógrafos e a descoberta de rotas marítimas pelo Oceano Ártico. 

Também no derradeiro capítulo a autora trata do avanço das tecnologias náuticas, que possibilitaram as conquistas da humanidade sobre o mar: afinal, da observação das constelações e das rotas migratórias de aves marinhas e baleias, os seres humanos passaram a se valer da agulha magnética e da elaboração de detalhadas cartas náuticas (CARSON, 1956). Na década de 1950, quando a autora escreveu O mar que nos cerca, os avanços das tecnologias náuticas basicamente consistiam no desenvolvimento de radares, na constituição de instruções padronizadas de navegação e de guias costeiros. Todavia, mesmo com tantos recursos, não era possível afirmar que a humanidade conquistara ou que algum dia ainda lograria conquistar o oceano (CARSON, 1956). 

Para além de permanecer à nossa volta e de termos de atravessá-lo para comerciar ou visitar novas terras, tal como ele originou todas as formas de vida, no fim, a todas ele consumirá. Como registrou Carson, em sua excelente prosa: “os próprios continentes se dissolvem e passam para o mar, de grão em grão de terra erodida. Assim também as chuvas que dele se erguem voltam de novo para ele em forma de rios”. Desse modo, tudo retornará ao mar “ao Oceanus, o rio oceano, que é, como o eterno fluir do tempo, o começo e o fim” (CARSON, 1956, p. 222-223). 



Beira-mar 

The Edge of the Sea, terceiro livro publicado por Rachel Carson e último da sua trilogia a respeito do mar, foi publicado em 1955 pela Houghton Mifflin Co (CARSON, 1955). Tal como The Sea Around us, o caçula da trilogia de Carson sobre o oceano também foi parcialmente divulgado em revistas de grande circulação, tais como a New Yorker, e também se tornou um sucesso comercial. E apesar do The Edge of the Sea nunca ter chegado às marcas de vendas alcançadas por The Sea Around us, ele consagrou a sua autora como cientista e escritora (BEYL, 1992; LEAR, 1993; MOORE, 1997; LYTLE, 2007; BONZI, 2013). 

The Edge of the Sea está dividido em seis capítulos, além de prefácio, apêndice e índice. Traduzido para a língua portuguesa pelo título Beira Mar, a obra foi inicialmente concebida como um guia prático para identificação de animais costeiros (CARSON, 1955). Todavia, os limites das descrições enciclopédicas não agradaram a autora que acabou por transformá-lo em um livro sobre a ecologia dos litorais. 

Desse modo, Beira-mar versa sobre os ecossistemas litorâneos, mundo em que as águas do mar se encontram com a terra. Foi precisamente nos litorais que, durante o longo processo evolutivo, formas pioneiras de vida emergiram para conquistar os continentes. A autora trabalha o texto a partir da classificação dos ecossistemas litorâneos em três grandes grupos, cada um deles caracterizado por determinado tipo de plantas e animais: os litorais rochosos, as praias de areia e os recifes de corais (CARSON, 1955). 

O primeiro capítulo, intitulado The Marginal World, apresenta ao leitor os aspectos curiosos e encantadores das costas litorâneas, aos olhos de Rachel Carson. Para além das belas paisagens, os litorais são habitats sujeitos a permanentes mudanças: ora calor escaldante, ora inundação parcial, ora inundação total. Contudo, mesmo hostil, esse ambiente de encontro entre água e terra é cheio de diferentes formas de vida plenamente adaptadas (CARSON, 1955): algas, cracas, caranguejos, esponjas, baratas do mar, caramujos, estrelas do mar, ouriços, vermes, mexilhões, ostras. 

Ademais, em abordagem bastante harmônica com as ideias românticas oitocentistas acerca da wilderness (NASH, 1982), para Carson (1955), a contemplação das costas litorâneas permitiria aos humanos uma certa compreensão transcendental acerca da vida na Terra e, portanto, da sua própria vida. Afinal, embora dificilmente nos recordemos disso, nas praias, as primeiras formas de vida encenaram momentos dramáticos do processo evolutivo, avançando lentamente para a terra firme, um mundo até então totalmente novo e desconhecido. Incontáveis movimentos como esse, em direção ao diferente e ao desconhecido, alteraram e continuam perpetuamente alterando as diversas as formas de vida (CARSON, 1955). 

No segundo capítulo, intitulado Patterns of Shore Life, Carson (1955; 2010) descreve brevemente os padrões dos habitats costeiros (costas rochosas escarpadas, planícies de areia ou recifes de corais) e as formas de vida que, ao longo de milhares de anos, se adaptaram a cada um desses padrões. A autora ressalta que, para além das características geológicas do litoral, o processo de especiação nos habitats costeiros também varia em função das correntes marinhas, da profundidade, da temperatura das águas e da força das arrebentações. De acordo com a autora, “the shore, with its difficult and changing conditions, has been a testing ground in which the precise and perfect adaptation to environment is an indispensable condition of survival” (CARSON, 1955, p. 11). 

Dentre os três tipos de habitats costeiros, as praias de areia tenderiam a ser as mais hostis à vida. Instáveis, sujeitas à arrebentação, elas dificultariam a fixação dos animais e dos vegetais. As costas rochosas escarpadas, por sua vez, também estariam sujeitas à arrebentação, mas a estabilidade do terreno permitiria a fixação de animais e vegetais (cracas, lapas, ouriços-do-mar, mexilhões), o que as tornaria mais biodiversas do que as praias de areia. Finalmente, os recifes de corais de águas mornas seriam os habitats costeiros mais favoráveis à proliferação e à diversificação da vida. 

A costa atlântica dos EUA, marcada pelas correntes do Golfo (quente) e do Labrador (gelada), permitiria contemplar os três grandes tipos de habitats. Ao Norte, constata-se a predominância de rochas escarpadas, tanto submersas quanto aparentes, além da maior proximidade das águas profundas e frias em relação ao continente. Diante das enormes semelhanças físicas e do livre trânsito de espécies carreadas pelas correntes marinhas, aqui, a distribuição florística e faunística seria bastante parecida com aquela constatada na costa atlântica da Grã-Bretanha (CARSON, 1955). 

No Cabo Cod, ocorre a alteração da paisagem e dos habitats costeiros. Ao Sul desse marco avançado mar adentro, a costa passa a ser progressivamente dominada por longas faixas de areia. Além disso, o Cabo Cod recebe as águas mornas oriundas das zonas tropicais e retém as águas frias oriundas das zonas polares, atuando como verdadeiro limite físico para milhares de criaturas (CARSON, 1955). O extremo Sul dos EUA, por fim, é dominado por águas mornas e por grandes bancos de corais. 

Todavia, a autora observa que essa disposição não é um dado fixo. O aquecimento generalizado dos oceanos, constatado pelo menos desde a década de 1930, estaria propiciando, por um lado, o desaparecimento de espécies típicas de águas frias na costa norte dos EUA e, por outro lado, a migração, para o norte, de espécies típicas das águas tropicais. 

Mas para além do aquecimento das águas oceânicas, o mar contemplaria diversos movimentos misteriosos, tais como as marés vermelhas. A explicação dessas ocorrências em particular, observa Carson, parece residir na própria composição química da água marinha, composição sujeita a modificações conforme ocorra a sua colonização por estes ou aqueles seres vivos. Nas palavras da autora: “A própria água é alterada – em sua natureza química e em sua capacidade de influenciar processos vitais – pelo fato de certas espécies viverem nela e para ela transferirem novas substâncias capazes de provocar efeitos a grades distâncias” (CARSON, 2010, p. 48). As marés vermelhas demonstram com nada no mar existe isoladamente: “o presente está ligado ao passado e ao futuro, e cada ser vivo conecta-se com tudo o que está ao seu redor” (CARSON, 2010, p. 48). 

Os terceiro, quarto e quinto capítulos, intitulados, respectivamente, As margens rochosas, A orla arenosa e O mar de corais têm como finalidade apresentar com mais detalhamento a ecologia das costas rochosas escarpadas, das praias de areia e das costas coralinas. Tratam da fauna e da flora, da dinâmica das marés e da relevância de aspectos físicos para as diferentes formas de vida encontradas em cada uma dessas formações costeiras. 

As grandes distinções verificadas na ecologia desses habitats, ressalva Carson no Epílogo, são apenas momentâneas, “determinadas pelo nosso lugar no fluxo do tempo e nos longos ritmos do mar” (CARSON, 2010, p. 228). De fato, quando analisados os litorais sob a perspectiva do tempo geológico, as suas formas e composições acabam ganhando transitoriedade: mudanças na linha costeira submergem praias de areia e eliminam a fauna e a flora que dependia desse habitat; a agitação do mar e a atuação das larvas aos poucos ajudam a erodir as rochas escarpadas. Nas palavras da autora: “[...] essas paisagens costeiras combinam-se e fundem-se num padrão mutante, caleidoscópico, no qual não há finalidade nem realidade fixa definitiva. É a terra tornando-se fluida como o próprio mar” (CARSON, 2010, p. 228). 

Beira-mar possui, ainda, um apêndice em que Carson apresenta brevemente os critérios então vigentes na Biologia para a classificação dos seres vivos (conceito morfológico de espécie). Menciona representantes oceânicos de cada um dos grupos citados e o seu papel na ecologia do mar. O apêndice de Beira-mar é uma aproximação da autora em relação à proposta inicial da editora para o livro: a elaboração de um guia prático, quase enciclopédico, acerca da vida costeira. 



O estilo narrativo de Carson, o documentário e a ficção científica 

O século XXI é pródigo em recursos audiovisuais para a comunicação, os quais ampliaram exponencialmente a potencial divulgação de toda sorte de conteúdos. Atualidades econômicas, acontecimentos políticos, imagens de outros planetas, julgamento de fatos criminosos, achados científicos, humor, terror e pornografia são largamente veiculados por jornais, revistas, livros, rádio, televisão, cinema ou pela internet. Dito de outro modo, vivendo a Terceira Revolução Industrial, impulsionada pelas tecnologias de comunicação e de informação (CASTELLS, 2007), atualmente os seres humanos naturalizaram as sofisticações das produções cinematográficas e televisivas. Por isso, talvez, os mais jovens e as gerações vindouras possam sentir alguma dificuldade em compreender o porquê do enorme sucesso editorial dos livros de Carson a respeito do oceano. Para uma correta perspectiva faz-se necessário certo exercício de relativização histórica. 

A começar, é preciso ter em mente que, quando Carson escreveu e publicou a sua trilogia sobre o mar, TV e rádio já existiam, mas nem de longe tinham a penetração social de que desfrutam nos dias atuais (CULLEN, 2013). Ademais, o número de canais era pequeno e as tecnologias audiovisuais para a realização de programas, bastante limitadas. Por isso, a maior parte das informações científicas ainda chegava ao público por meio de impressos tais como jornais, revistas e livros. 

Circunscrevendo a discussão a apenas à TV e, nesse media, a um único gênero, pode-se afirmar que os últimos 40 (quarenta) anos testemunharam grande difusão e aperfeiçoamento dos documentários. O documentário constitui um dos gêneros televisivos mais adequados à divulgação de descobertas científicas, vez que as processa em linguagem acessível, conjugando imagem, música, som-ambiente e texto, o que facilita a difusão da informação para as grandes massas de telespectadores leigos. Hoje, canais abertos e a cabo tais como TV Cultura, Rede Globo, Futura, National Geographic, Discovery Channel, Discovery Kids e History Channel realizam e difundem documentários a respeito de temáticas afetas às mais diversas disciplinas: astronomia, arqueologia, história brasileira, história mundial, geologia, biologia, sustentabilidade. 

Pois bem. Na sua festejada trilogia a respeito do oceano, Carson desenvolveu narrativas recheadas de imagens, metáforas e curiosidades que cativam a atenção do leitor. O ritmo dos textos se assemelha àquele dos documentários científicos televisivos a que as novas gerações estão habituadas. Leiam-se os seguintes excertos, ilustrativos do eloquente estilo narrativo adotado pela autora: 

Muito antes que houvesse oceano, já havia marés na Terra recém-nascida. Em resposta aos puxões do Sol, os líquidos derretidos da superfície de toda a Terra erguiam-se em marés que rolavam à solta em torno do globo e que só gradualmente iam reduzindo a sua marcha e diminuindo de volume, à medida que o invólucro terrestre esfriava, congelava-se e endurecia. Aqueles que acreditam que a Lua é filha da Terra dizem que, durante essa primeira fase do desenvolvimento da Terra, aconteceu algo que essa rolante e pegajosa maré adquirisse velocidade e ímpeto, erguendo-se a alturas inimagináveis. Ao que parece, a força que criou as maiores marés que a Terra jamais conheceu foi a força de ressonância, pois nessa época já se aproximava o período das marés solares, do mesmo modo que o período da oscilação livre da terra líquida. E, assim, cada maré produzida pelo Sol aumentava de impulso devido à oscilação da Terra, sendo que cada uma das marés diárias era cada vez maior do que a maré precedente. Os físicos calcularam que, após mais de 500 anos de tais monstruosas e sempre crescentes marés, as do lado do Sol se tornaram demasiado altas para que pudessem estabilizar-se, e uma grande onda se desprendeu e foi lançada no espaço. Mas imediatamente, por certo, o satélite recém-criado se tornou sujeito a leis físicas que o fizeram girar numa órbita própria em torno da Terra (CARSON, 1956, p. 11). 

Na época em que a Terra era jovem, a aproximação da maré deve ter sido um acontecimento estupendo. Se a Lua foi [...] formada pelo desgarramento de uma parte da crosta externa da Terra, deve ter permanecido, durante certo tempo, perto da sua progenitora. Sua posição atual é uma consequência de ter sido ela, durante cerca de 2 bilhões de anos, empurrada cada vez mais para longe. Quando se achava na metade da sua distância atual da Terra, seu poder sobre as marés oceânicas era oito vezes maior do que agora, sendo que a altura das marés pode ter atingido, em certos luares, várias centenas de pés. Mas quando a Terra tinha apenas alguns poucos milhões de anos, presumindo-se que as profundas bacias oceânicas tenham sido então formadas, o alcance das marés deve ter sido uma coisa inteiramente além de toda a nossa compreensão. Duas vezes por dia, a fúria das águas que chegavam inundava todas as margens dos continentes. A altura da ressaca deve ter-se estendido enormemente devido ao alcance das marés, de modo que as ondas atacavam os cimos dos altos rochedos e penetravam terra a dentro, corroendo os continentes pela erosão. A fúria de tais marés teria contribuído bastante para a desolação, o horror e a inabitabilidade da jovem Terra (CARSON, 1956, p. 163). 

[...]. Underlying the beauty of the spectacle there is meaning and significance. It is the elusiveness of that meaning that haunts us, that sends us again and again into the natural world where the key to riddle is hidden. It sends us back to the edge of the sea, where the drama of life played its first scene on earth and perhaps even its prelude; where the forces of evolution are at work today, as they have been since the appearance of what we know as life; and where the spectacle of living creatures faced by the cosmic realities of their world is crystal clear (1) (CARSON, 1955, p. 07). 

Não é mera coincidência que o ritmo dos textos de Rachel Carson se assemelhe tanto ao dos recentes documentários de divulgação científica. Mesmo se deixarmos de lado o fato de que a bióloga já havia se provado uma competente escritora desde a mais tenra idade, as suas primeiras atribuições no US Bureau of Fisheries incluíam precisamente elaborar programas de rádio atinentes à vida marinha. Noutros termos, era seu desafio profissional cotidiano transformar os resultados das investigações oceanográficas e zoológicas em entretenimento para massas leigas. 

Além das peculiaridades do ritmo narrativo de Carson, a leitura dos excertos supratranscritos revela uma peculiaridade da divulgação científica. Em havendo profusão de hipóteses plausíveis, os programas voltados à divulgação científica alcançarão as raias do fantástico. Noutros termos, em temáticas mais especulativas (e tanto mais distantes no tempo e no espaço, mais especulativas), documentário e ficção andarão de mãos dadas. 

Não é acaso que a ficção científica tenha surgido como novidade literária do mundo moderno. O gênero apareceu entre o final do século XIX e o início do século XX diante dos ululantes avanços da ciência sobre os mais variados aspectos da vida cotidiana. Esses avanços estimularam ao infinito a imaginação dos escritores. Apesar dos registros pioneiros entre franceses e britânicos, a pátria-mãe da ficção científica é os EUA, não somente pelos avanços tecnológicos que o país testemunhava, como também pela enorme popularidade do gênero literário, situação que permitia a sua bem-sucedida exploração pelo mercado editorial (CULLEN, 2013). 

Em seus primórdios, a ficção científica dificilmente podia ser traduzida em imagens, motivo pelo qual era preferencialmente divulgada em mídia impressa ou por meio do rádio. São considerados marcos desse gênero narrativo a revista Amazing Histories (a partir de 1929), a transmissão radiofônica de Guerra dos Mundos, em 1938 e a transmissão radiofônica de A máquina do tempo, em 1950 (CULLEN, 2013; SUPPIA, 2006). O apogeu da ficção científica ocorreu a partir da década de 1930, período em que foram publicados Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley e 1984, de George Orwell. 

Também nesse período estrearam no mercado editorial autores como Ray Bradbury, Robert Heinlein, Phillip K. Dick e Isaac Asimov. Esses e outros autores, alguns com formação nas “Hard Sciences”, foram notáveis por anteverem, de forma alegórica e inteligente, acontecimentos tais como o nazi-fascismo, a guerra fria, a guerra nuclear, a clonagem, a manipulação genética ou o holocausto, sempre abordando o futuro que, por excelência, é o espaço temporal desse gênero literário (CULLEN, 2013; SUPPIA, 2006; MACHADO, 2008). 

Professores de ciências exatas e biológicas vêm apontando as vantagens pedagógicas da utilização de filmes de ficção científica para transmitir conceitos básicos. A ficção científica despertaria interesse no aluno — e nos telespectadores, em geral — para temas normalmente áridos e difíceis de abstrair. Em outros termos, a ficção científica, como apelo à imaginação e ao fantástico, funcionaria como “isca” (SUPPIA, 2006; MACHADO, 2008). 

Essa estratégia — jogar “iscas” para captar a atenção do público leigo para assuntos de difícil compreensão — foi explicitamente utilizada em Primavera Silenciosa, por Rachel Carson. O primeiro capítulo do livro, intitulado Uma fábula para o amanhã, é construído com todos os elementos da ficção científica, em especial projeção de futuro e hipótese cientificamente plausível, senão vejamos. 

A fim de despertar o interesse dos seus leitores para a controvérsia dos agrotóxicos, a autora descreve os EUA de um futuro não muito distante sem aves canoras, abelhas ou borboletas; os cidadãos estadunidenses, os seus rebanhos e os seus animais domésticos, acometidos de doenças incompreensíveis aos olhos da medicina. Por sua vez, quando da publicação de Primavera Silenciosa, a mortandade de aves, de insetos benéficos à agricultura e o desenvolvimento de doenças desconhecidas em seres humanos e em rebanhos eram (e ainda são) associados, em pesquisas, ao abuso de pesticidas agrícolas (CARSON, 1962; TENDLER, 2010; FERREIRA, 2011; ABRASCO, 2012; TENDLER, 2014; GUYTON, 2015). 



Conclusão 

Quando escreveu sua trilogia sobre o oceano, Rachel Carson já possuía formação acadêmica em biologia, experiência profissional com meios de comunicação de massas e notável talento literário. Essa combinação a forjou como excelente comunicadora e divulgadora de ciência. Os seus textos, eloquentes, caíram no gosto das pessoas comuns e se tornaram grandes sucessos editoriais e comerciais. 

Articulando descobertas com hipóteses plausíveis, Sob o Mar-Vento, O Mar que nos Cerca e Beira Mar constituem, ao mesmo tempo, divulgação e ficção científica. Esses trabalhos elucidaram mitos, desmistificaram crenças milenares, apresentaram comportamentos pitorescos e pouco conhecidos de animais. Mais que isso, os livros de Carson também estimularam a imaginação do público leigo, apresentando-lhe as grandes hipóteses que intrigavam a química, a física, a geologia, a biologia e a astrofísica de seu tempo. 

Carson deve à trilogia sobre o oceano a independência profissional, intelectual e financeira angariada com as vendas dos seus exemplares. A boa reputação como confiável divulgadora de ciência também lhe foi legada por essas primeiras publicações. Um texto bem escrito e bem fundamentado, uma boa estratégia de marketing (que, como tratado neste artigo, já havia sido testada em O mar que nos cerca e em Beira Mar), a respeitabilidade pública e a independência de sua autora constituíram os ingredientes básicos do enorme sucesso de Primavera Silenciosa, considerado um dos documentos inaugurais do ambientalismo contemporâneo. 

Observe-se que o “poisonous book” (apelido atribuído a Primavera Silenciosa por uma amiga de Carson) trouxe à autora muita fama, mas também lhe valeu inimigos poderosos. Isso porque as denúncias contidas no livro colocaram em xeque a credibilidade da indústria química, das autoridades sanitárias estadunidenses e mesmo a suposta capacidade de os cientistas controlarem os efeitos adversos das suas descobertas. Em síntese, não desfrutasse Rachel Carson da respeitabilidade pública e da independência que lhe foram legadas por sua trilogia acerca do mar, talvez o clássico Primavera Silenciosa jamais tivesse sido escrito. 



REFERÊNCIAS 

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA (ABRASCO). Dossiê ABRASCO – Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Parte 1 - Agrotóxicos, Segurança Alimentar e Nutricional e Saúde. Rio de Janeiro: ABRASCO, 2012. Documento disponível em http://greco.ppgi.ufrj.br/DossieVirtual/. Acesso em: 19 abr. 2015, às 3:20 horas. 

BARBOSA, José Milton; NASCIMENTO, Chirleide Marcelino do. Sistematização de nomes vulgares de peixes comerciais do Brasil: 2. Espécies marinhas. Revista Brasileira de Engenharia de Pesca. São Luís, v. 03, n. 03, 2008, p. 76-90. Disponível em http://ppg.revistas.uema.br/index.php/REPESCA/article/view/100/100. Acesso em 16 set. 2016, às 20:26 horas. 

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_____________. O veneno está na mesa 2: agroecologia para alimentar o mundo com soberania para alimentar os povos [filme-vídeo]. Produção de Ana Rosa Tendler. Direção de Sílvio Tendler. Caliban Cinema e Conteúdo. Campanha permanente contra os agrotóxicos e pela vida, 2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fyvoKljtvG4. Acesso em: 19 abr. 2015, às 02:12. Cor. Som. 1 hora e 10 minutos. Cor. Som. 



NOTAS DE FIM

(1) Em tradução livre: “Nas entrelinhas do espetáculo, há sentido e significado. E é precisamente esse significado fugidio que nos assombra, que nos remente ao mundo natural onde a chave para o mistério está oculta. Ele faz retornar à beira do mar, onde o drama da vida foi primeiramente encenado na terra firme, e talvez, onde a própria vida tenha surgido; onde as forças da evolução ainda atuam, como aliás têm atuado desde o aparecimento daquilo que conhecemos como vida; e onde as realidades cósmicas elucidam claramente o espetáculo das criaturas vivas”.

Resenha: Alexander von Humboldt e a invenção da natureza, por Andrea Wulf

Universidade de Brasília - UnB
Centro de Desenvolvimento Sustentável - CDS
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável - Doutorado
Elaboração de Trabalho Final - Tese
Resenha do livro WULF, Andrea. A invenção da Natureza: a vida e as descobertas de Alexander von Humboldt. São Paulo: Planeta,2016.
Resenha originalmente publicada na Revista de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará - UFC, Fortaleza, v. 51, n. 1, mar. / jun. 2020. Disponível em http://periodicos.ufc.br/revcienso/issue/view/762.




O livro A invenção da Natureza: a vida e as descobertas de Alexander von Humboldt, da autoria de Andrea Wulf é, a um só tempo, biografia de Humboldt, história da ciência do século XIX e análise de uma ampla gama de fontes primárias, tais como jornais, revistas, cartas, diários e livros publicados pelo próprio Humboldt. Considerado um best seller, o trabalho de Wulf recebeu diversos prêmios internacionais por suas qualidades literárias e por sua contribuição à ciência.

Conta-nos Andrea Wulf que Alexander von Humboldt nasceu em 1769 no seio de uma família prussiana aristocrática e que recebeu uma educação esmerada. Fascinado com as diferentes formas de vida, ainda criança, Humboldt aventurava-se ao ar livre para coletar e desenhar plantas, pedras e animais. Era comum voltar para casa com os bolsos cheios de insetos e plantas, razão pela qual a sua família o apelidara de “pequeno boticário”.

Pertencente a uma família politicamente influente e herdeiro de uma grande fortuna, Humboldt, que era mineralogista e naturalista, viajou para lugares até então impenetráveis aos europeus médios em busca de espécimes, mas, principalmente, em busca de leis naturais. Dotado de uma memória privilegiadíssima, Humboldt conseguia fazer comparações entre seres, objetos e fenômenos separados entre si por milhares de quilômetros: espécimes botânicos encontrados nos Alpes Suíços (Europa), na Cordilheira dos Andes (América do Sul) ou nas Montanhas Altai (Ásia), por exemplo. Esse talento lhe permitiu fundir observação empírica (mandamento iluminista) e subjetividade (mandamento romântico), de modo que seus livros eram famosos pela abundância de dados e pela boa prosa intimista. Desse modo, Humboldt aproximou poetas e naturalistas na revolucionária ideia de que a natureza seria uma complexa teia de vida, cheia de interconexões. Tal ideia, pressuposto de toda a ecologia, é atualmente tomada como truísmo: motivo pelo qual, especula Wulf, o nome de Humboldt tenha sido praticamente esquecido na ciência ocidental.

No final do século XVIII as viagens internacionais não eram empreendimentos banais para civis. Além da imprevisibilidade do transporte marítimo, a resistência das monarquias europeias à Revolução Francesa e as subsequentes guerras napoleônicas demandaram navios e fecharam as fronteiras dos países europeus e de suas respectivas colônias para estrangeiros. Em 1799, articulando-se com integrantes influentes da corte espanhola, Humboldt conseguiu autorização especial de Carlos IV para adentrar em seus territórios na América Latina e nas Filipinas. As únicas condições seriam as de que caberia a Humboldt financiar a expedição e, como retribuição à autorização concedida, despachar exemplares da fauna e da flora das colônias espanholas para os jardins reais em Madri.

No início de junho de 1799, Humboldt embarcou para a América a bordo da fragata Pizzarro, na companhia do botânico francês Aimé Bonpland, de 42 instrumentos de medição e de orientação cuidadosamente embalados (bússolas, balanças, telescópios, microscópios, termômetros), além de um sem-número de ferramentas. Em 16 de julho de 1799, isto é, cerca de 40 dias depois de terem deixado La Coruña/Espanha, aportaram todos Nova Andaluzia, província da Capitania Geral da Venezuela. Uma vez em terra, rumaram para a cidade de Cunamá, onde ficaram hospedados por algumas semanas até partirem para Caracas. A permanência de Humboldt e de Bonpland na América, em expedições científicas, perdurou por mais de 5 anos.

Partindo de Caracas, Humboldt e Bonpland atravessaram a inóspita planície dos Llanos para alcançar o Rio Orinoco, navegaram o rio Cassiquiare, canal que une as Bacias dos Rios Amazonas e Orinoco, confirmando o relato de um jesuíta que, já no século XVI, afirmava que as duas gigantescas bacias hidrográficas se encontravam. Mais tarde, Humboldt e Bonpland percorreram a Cordilheira dos Andes, escalaram ativos vulcões equatorianos (Pichincha, Chimborazo e Cotopaxi) e visitaram os territórios que hoje denominamos Texas, México e Cuba. Na América Central, tiveram acesso a relíquias dos Impérios Maia e Asteca, a partir das quais Humboldt concluiu que os ameríndios eram povos sofisticados, um julgamento bastante diverso daquele majoritário entre os europeus letrados da primeira metade do século XIX.

As experiências de Humboldt durante as suas incursões na América Latina lhe converteram num convicto abolicionista. Em Cunamá, a casa que alugara ficava bem em frente ao mercado de escravos. Por isso, Humboldt várias vezes testemunhou jovens africanos seminus, recém-chegados ao Novo Mundo, tendo de exibir os corpos e os dentes para compradores, como fossem animais em leilões. Humboldt considerou esse tratamento inaceitável, até porque, destoando da maioria dos europeus de sua época (inclusive de respeitados intelectuais como Buffon), enxergava os negro-africanos como iguais. Para Humboldt, nem os negros, nem os ameríndios eram inferiores aos homens brancos, motivo pelo qual a escravidão seria um instituto imoral.

Também foi na América Latina que Humboldt associou agricultura monocultora e degradação ambiental. Visitou regiões bastante férteis, tais como o Vale do Aragua. Com os seus arredores intensamente cultivados, os níveis da água no Lago Valência vinham decaindo rapidamente. Após investigar as causas do fenômeno, Humboldt concluiu que o desmatamento das florestas adjacentes ao Lago e a transposição de cursos d’água para irrigação das lavouras vinham provocando a redução dos níveis do corpo hídrico. Essa correlação entre desmatamento e mudanças climáticas locais ficou conhecida como “teoria do dessecamento” e por todo lugar impactou intelectuais preocupados com o tratamento dispensado à natureza. Observe-se que essa teoria vem sendo aceita pelos críticos ambientais luso-brasileiros desde os tempos do Brasil Colônia (PÁDUA, 2002; FRANCO, DRUMMOND, 2009).

Finalmente, também na América Latina, Humboldt associou colonialismo e devastação ambiental. Em Cuba, os europeus haviam substituído a floresta tropical por grandes fazendas de açúcar; nos arredores de Cumaná, por açúcar e índigo. Humboldt observou que, além do empobrecimento do solo e do ressecamento dos cursos hídricos, esse modelo econômico gerava dependência, pobreza e infelicidade para as populações locais. Em Cuba ou em Cumaná, apesar da fertilidade da terra, os colonos morreriam de fome caso não conseguissem importar alimentos produzidos alhures. Humboldt também encontrou características similares na Cidade do México e no Vale do Rio Apure.

Em outras palavras, segundo o autor, o colonialismo voltado à exportação de produtos primários vinha provocando degradação da natureza e empobrecimento das populações locais onde quer que fosse implantado. Além disso, a injusta distribuição de terras, a violência contra grupos tribais, as péssimas condições de trabalho a que eram submetidos os povos indígenas e as iníquas imposições metropolitanas fizeram de Humboldt um simpatizante da Revolução Americana e ferrenho opositor do colonialismo.

Como resultado da expedição à América, Humboldt publicou diversos livros, o primeiro intitulado Ensaio sobre a geografia das plantas. Esse trabalho – o primeiro livro sobre ecologia – incluía o desenho da sua Naturgemälde, elaborado aos pés do vulcão equatoriano Chimborazo. A ilustração apresentava o Chimborazo a partir de um corte transversal: plantas, do sopé à linha da neve, variavam em distribuição, quantidade e morfologia, em função de zonas climáticas, altitude e latitude. Portanto, Humboldt agrupou os vegetais por zonas e regiões geográficas, ao invés de agrupá-los em unidades taxonômicas, como era a praxe na botânica praticada até então.

Foi assim que o Ensaio sobre a geografia das plantas, além de inaugurar a biogeografia, apresentou ao mundo uma invisível teia de vida. A natureza era um reflexo do todo e só poderia ser adequadamente compreendida se os cientistas olhassem de maneira ampla para fauna, flora e estratos geológicos. Essa compreensão sobre a natureza como totalidade orgânica também aparece nos outros trabalhos do autor: Quadros da naturezaVistas das cordilheiras e monumentos dos povos indígenas da AméricaEnsaio Político sobre o Reino da Nova EspanhaEnsaio Político sobre a Ilha de CubaNarrativa PessoalEnsaio geognóstico sobre a sobreposição de rochasAs linhas isotermas e a distribuição de calor no globo.

Em junho de 1829, quase sexagenário, Humboldt partiu para mais uma expedição. Agora, a ciência o levava ao oriente, no ponto em que Rússia, China e Mongólia se encontravam. As montanhas Altai – o mais perto que Humboldt conseguiu chegar da Ásia Central – lhe serviram como referencial de comparação botânico, geológico e zoológico em relação à Cordilheira dos Andes. A viagem, mais de 16 mil km percorridos em carruagens, durou menos de menos de 6 meses. Foi financiada pelo Czar Nicolau I, interessado nos conhecimentos geológicos de Humboldt e no melhor aproveitamento dos recursos minerais russos.

O investimento do monarca foi bem remunerado. Humboldt notou características geológicas semelhantes entre as minas de ouro e platina dos Urais com aquelas que, muitos anos antes, ele havia inspecionado na América Latina. Por isso, apesar de nunca terem sido encontrado diamantes fora dos trópicos, Humboldt estava certo de que o território russo era cheio deles. Instigado por Humboldt, o Conde Polier dirigiu-se às minas de sua esposa, em Ecaterimburgo, e instruiu os mineiros a procurarem por diamantes. Pouco depois, foi encontrado o primeiro diamante dos Urais.

Para além da descoberta dos diamantes, a expedição russa também resultou na publicação de Fragmentos de Geologia e de Climatologia Asiáticas e, mais tarde, na publicação de Cosmos: Projeto de uma Descrição Física do Mundo, a obra magna na qual Humboldt se propôs a tratar de tudo o que existisse entre o céu e a Terra.

Humboldt começou a escrever Cosmos aos 65 anos de idade. Além dos próprios, se valeu de dados científicos produzidos por seus correspondentes em todo o mundo. Recebeu, de seus colaboradores, mapas produzidos por geólogos, coordenadas calculadas por astrônomos, listas de plantas (dos mais longínquos rincões) elaboradas por botânicos e gravuras de fósseis gregos, entre várias outras fontes. Considerando-o um empreendimento impossível, o autor levou mais de uma década para escrevê-lo e finalmente publicá-lo. Em Cosmos, que foi lido por intelectuais, estudantes, religiosos, políticos e artistas de vários países, Humboldt mais uma vez expôs o seu entendimento de que a Terra formava uma maravilhosa rede de vida. O livro foi um sucesso imediato de vendas, superando, inclusive, a façanha comercial de Fausto, obra-prima de Goethe.

Andrea Wulf esclarece que, até então, os escritos e os métodos de Humboldt haviam impactado bastante os intelectuais europeus (entre eles, Charles Darwin), mas muito pouco os estadunidenses. Cosmos mudaria radicalmente esse panorama. Edgar Allan Poe, Ralph Waldo Emerson e Walt Whitman o leram e nele buscaram inspiração para a sua obra literária. Mais tarde, Humboldt também arrebataria Henry David Thoureau, George Perkins Marsh e John Muir, precursores da preocupação com a natureza em terras estadunidenses. Isso permitiu que o conceito da natureza como rede de vida se enraizasse profundamente no pensamento ocidental, tornando-se verdadeiro pressuposto da moderna ecologia.

Alexander von Humboldt era um ator central do mundo intelectual ocidental no século XIX: frequentava salões, correspondia-se com pensadores de todos os cantos – inclusive, conforme Pádua (2009), com José Bonifácio de Andrada e Silva – e apoiava jovens cientistas. Mas além de influenciar cientistas, artistas, romancistas e poetas, Humboldt era próximo ao poder e também impactou políticos e líderes revolucionários.

Em 1806, foi nomeado tesoureiro de Frederico Guilherme III, rei da Prússia, uma distinção honorífica, generosamente remunerada e que apenas lhe demandava estar por perto, à disposição do soberano para lhe animar a corte. Ali, a sua influência política resumia-se à tentativa de criar uma certa “atmosfera” favorável a ideias progressistas, já que o Estado prussiano era monárquico, militarizado, antiliberal e antidemocrático: tudo aquilo a que Humboldt se opunha. Mas o autor não podia se dar ao luxo de virar as costas ao seu rei. Nessa época, Humboldt já estava financeiramente dependente da pensão que recebia como tesoureiro da corte, visto que praticamente toda a sua fortuna havia sido despendida na expedição à América Latina e nas publicações dela resultantes.

Nos muitos salões que frequentava, Humboldt conheceu e inspirou o revolucionário sul-americano Simón Bolivar. Na época, 1804, Bolívar era um dândi da elite criolla venezuelana, que viajava pela Europa em jogatinas e bebedeiras de modo a se consolar pelo falecimento da esposa. Bolívar se apoiou nas críticas de Humboldt ao colonialismo para combater o jugo espanhol sobre a sua terra natal. Wulf argumenta que as imagens, metáforas e alegorias da natureza utilizadas pelo naturalista prussiano tornaram-se o cerne do discurso bolivariano pela liberdade. Bolívar também se informou sobre as terras que pretendia libertar por meio dos escritos e mapas elaborados por Humboldt: afinal, apesar de venezuelano, ele ainda não conhecia boa parte do continente.

O “homem mais famoso do mundo depois de Napoleão” – apelido que Humboldt recebeu de seus contemporâneos – também teria se encontrado e se correspondido com Thomas Jefferson e com James Madison. Valiosas informações acerca da quantidade e da natureza das ocupações humanas no Texas, fornecidas aos líderes americanos por Alexander von Humboldt, teriam sido utilizadas nas guerras contra o México em favor da expansão do território estadunidense.

Wulf conclui que a memória de Humboldt, nos países anglófilos, esmaeceu devido ao caráter holístico dos seus escritos, característica que saiu de moda à medida que as diversas ciências prezavam cada vez mais pela especialização, pela independência dos seus respectivos objetos e campos de estudo. Além disso, o sentimento antigermânico aflorado na Inglaterra e nos Estados Unidos após a Primeira Grande Guerra, argumenta Wulf, teria sido outra razão central para que Humboldt acabasse esquecido. Afinal, nessa época, livros alemães foram incendiados ou excluídos de bibliotecas públicas, ruas foram renomeadas e mesmo a família real britânica alterou o seu patronímico de “Saxe-Coburgo-Gotha” para “Windsor”. Não é estranho, portanto, que o protagonismo de Alexander von Humboldt na história da ciência tenha sido apagado.

Os dilemas ambientais enfrentados pela humanidade desde o final do século XX, não obstante, têm revalorizado as abordagens interdisciplinares. Por isso, há espaço para que Humboldt torne a ocupar a sua merecida posição entre os pais-fundadores da ciência ocidental.


Referências

FRANCO, José Luiz de Andrade; DRUMMOND, José Augusto. Proteção à natureza e identidade nacional no Brasil, anos 1920 – 1940. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2009.

PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

WULF, Andrea. A invenção da Natureza: a vida e as descobertas de Alexander von Humboldt. São Paulo: Planeta, 2016.

Artigo publicado em periódico. De naturalista a militante: a trajetória de Rachel Carson

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