sexta-feira, 31 de março de 2017

Artigo: A tragédia dos comuns e a crise hídrica no Distrito Federal, Juliana Capra Maia


Em 1968, o biólogo e filósofo Garret James Hardin publicou um ensaio denominado “A Tragédia dos Comuns” (Tragedy of Commons) na conceituada revista estadunidense Science. No texto, um dos mais citados da literatura científica mundial, Hardin parte do pressuposto do homo economicus para demonstrar a existência de contradição entre interesses individuais de curto prazo e interesses coletivos de longo prazo.

Para elucidar o seu argumento, Hardin utiliza uma metáfora. Propõe que visualizemos pastos comunais, livremente utilizados por pastores para a alimentação dos seus respectivos rebanhos. Cada pastor pode acrescentar ou não mais um animal do seu rebanho à pastagem comunal, recebendo sozinho os benefícios e repartindo com os demais os custos que advirão dessa decisão. Desse modo, a racionalidade instrumental aconselha cada pastor a acrescentar tantos animais quanto puder aos pastos comunais.
Contudo, — e aqui se explica a utilização do termo “tragédia” —, se todos os pastores se guiarem por essa mesma racionalidade instrumental, sobrecarregados, os pastos comunais se tornarão imprestáveis, situação que prejudicará a todos, indistintamente. E de que forma devem ser geridos os bens comuns (na metáfora de Hardin, os pastos) para que se evite a super-exploração? O primeiro caminho é a privatização, ou seja, a sua alienação a particulares. O segundo caminho é o da interferência estatal.
Como tudo isso se relacionaria à realidade de Brasília? De maneira aguda. Discuta-se apenas um dos problemas enfrentados pelo Distrito Federal: a crise hídrica deste ano de 2017.
É verdade que a estiagem em 2016 chegou mais cedo do que o esperado. Também é verdade que verão de 2016/2017 tem sido menos intenso em chuvas do que o verão dos anos anteriores. Mas atribuir a São Pedro toda a responsabilidade pela atual crise hídrica significa ocultar concausas dessa lamentável ocorrência e, assim, contribuir para que elas se perpetuem.
Se, por um lado, ainda há controvérsia científica a respeito das origens antrópicas do aquecimento global, por outro, ninguém discute que interferências humanas tenham o condão de provocar drásticas alterações climáticas em escala local e regional. E acontece que, nas últimas décadas, poucas localidades do Brasil vêm sofrendo tantas interferências antrópicas quanto o Distrito Federal e o seu entorno imediato.
De acordo com dados fornecidos pelo IBGE e disponíveis em sua página na Internet (www.cidades.ibge.gov.br), entre 1970 e 2010, a população do Distrito Federal aumentou de 537.492 para 2.570.160 habitantes. Em outros termos, ao longo de 40 anos, a população residente no DF quase quintuplicou. O número de domicílios, por sua vez, quase octuplicou: de 99.148 em 1970 alcançou 774.037 em 2010.
Esses dados, observe-se, não contemplam os significativos incrementos populacionais verificados nos municípios goianos situados no Entorno, municípios fortemente dependentes da economia, dos equipamentos e da infraestrutura oferecidos pelo Distrito Federal. Ilustra-se. Em 1991, Santo Antônio do Descoberto/GO possuía 35.509 habitantes e 7.940 domicílios; em 2010, já possuía 63.248 habitantes e 17.871 domicílios. Em 2000, Águas Lindas/GO contava com 105.746 habitantes e 26.349 domicílios; em 2010, já contava com 159.378 habitantes e 44.073 domicílios. Em 2000, Cidade Ocidental/GO possuía 40.377 habitantes e 10.301 domicílios; em 2010, já possuía 55.915 habitantes e 15.835 domicílios.
O colossal e veloz incremento populacional na região da Grande Brasília alterou radicalmente a paisagem: áreas outrora ocupadas por cerrado ou por pastagens progressivamente cederam espaço para aglomerados urbanos cada vez mais adensados.
Contudo, mais do que uma mudança cenográfica, o aumento da população, do número de domicílios e das características urbanas predominantes (espraiamento) também implicaram o aumento na demanda por recursos hídricos, o aumento nas taxas de impermeabilização do solo, a diminuição da capacidade de o território promover a recarga dos seus aquíferos (superficiais ou subterrâneos), a diminuição das áreas verdes disponíveis e a consequente diminuição das taxas de evapotranspiração. Com ou sem aquecimento global, esses fatores, sozinhos, já contribuiriam para um clima regionalmente mais quente e mais seco.
Mas não é só. Tal qual a fluidez do trânsito ou a qualidade do ar, a capacidade de suporte dos recursos hídricos de determinada localidade também pode ser considerada um “bem comum” (common): um bem, ao mesmo tempo, pertencente a todos e a ninguém. Como já discutido neste texto, em tais situações recomenda-se a privatização ou a gestão criteriosa do Estado. Ocorre que, no Distrito Federal, ao longo dos últimos anos, não tivemos nem uma coisa, nem a outra.    
Os índices de crescimento da população do DF chamam a atenção do Poder Público desde a década de 1970. Cientes, desde sempre, de que Brasília fora edificada em uma região de nascentes, quase desprovida de rios caudalosos, as autoridades identificaram o São Bartolomeu como a fonte de água potável mais apropriada para garantir o abastecimento da sua futura população.
Por isso, em 1988 projetou-se a construção de um reservatório ainda maior que o Lago Paranoá e que deveria ocupar o leito do Rio São Bartolomeu. Como nem todos os imóveis da região haviam sido desapropriados e como o aumento populacional no DF acirrava a pressão sobre a terra, as autoridades buscaram desestimular as ocupações no entorno imediato do que seria o futuro Lago do São Bartolomeu por meio de restrições legais, contempladas nos planos diretores.
A medida mostrou-se inócua. É que, no patrimonialismo, embrenhado até a raiz em todas as esferas da Administração Pública brasileira, cargos, recursos naturais, orçamento, terras, direitos, proibições e bens comuns geridos pelo Estado são todos transformados em moeda de troca, especialmente durante os pleitos eleitorais. No caso dos bens comuns, a negociação patrimonialista implica justamente o afrouxamento da atuação do Poder Público. Por isso, poucos anos depois da criação da Área de Proteção Ambiental (APA) do Rio São Bartolomeu e da elaboração do projeto para a represa, com as bênçãos de sucessivos governantes e legisladores locais, a região estava tão adensada que se tornou inviável inundá-la.
Tal como na metáfora dos pastos utilizada por Hardin, aqueles que promoveram parcelamentos irregulares na APA do São Bartolomeu obtiveram vultosas vantagens econômicas e as garantiram somente para si. Por outro lado, passadas pouco mais de duas décadas desde o ápice das grilagens, as decisões egoísticas e instrumentais dos infratores nos cobraram o seu preço sob a forma de escassez hídrica. E, como sói acontecer quando da degradação dos bens comuns, esse preço vem sendo pago por toda a comunidade.

Publicado em http://cliquebrasilia.com.br/index.php/2017/03/31/a-tragedia-dos-comuns-e-a-crise-hidrica-no-distrito-federal/

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