sexta-feira, 20 de abril de 2018

Esquema de leitura: História dos projetos de conservação de espécies da fauna no Brasil, Benevides, Franco e Braz.

Universidade de Brasília - UnB
Centro de Desenvolvimento Sustentável - CDS
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável
Doutorado
Elaboração de trabalho final - Tese
Orientador: José Luiz de Andrade Franco
Aluna: Juliana Capra Maia
Esquema de Leitura 
Texto: BENEVIDES, Fernanda Cornils Monteiro; FRANCO, José Luiz de Andrade; BRAZ, Vivian da Silva. História dos projetos de conservação de espécies da fauna no Brasil. In Hist. R., Goiânia, v. 22, n. 2, p. 83–106, mai./ago. 2017. 

Introdução

** Enfoques da publicação >>
  • surgimento dos primeiros projetos de conservação de espécies da fauna no Brasil, empreendidos pela Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN), de 1966 a 1972; 
  • consolidação dos projetos pioneiros e o surgimento de novos, desenvolvidos pela FBCN em parceria com o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), com a Secretaria Especial de Meio Ambiente (SEMA) e com a cooperação de instituições internacionais como a IUCN, o WWF, a CI e a TNC, entre 1972 e 1989; e 
  • expressivo crescimento do número de projetos de conservação de espécies da fauna, relacionados ao aparecimento de novas ONG nacionais dedicadas à conservação da natureza, bem como o estabelecimento de grandes ONG internacionais (WWF, CI e TNC) no Brasil, de 1989 até os dias atuais.


** Fontes de pesquisa:
  • Publicações das organizações responsáveis pelos projetos de conservação de espécies da fauna no Brasil;
  • Depoimentos de pesquisadores e de participantes desses projetos;
  • Bibliografia produzida sobre o assunto.


Início das preocupações com a conservação da fauna

** Extinção de espécies da fauna em decorrência de fatores antrópicos não é evento recente. A colonização de novas terras, desde a pré-história, implicou a extinção de espécies da megafauna em decorrência de pressão exercida pela caça.

** Preocupações com a rarefação da fauna silvestre foram registradas em diversas sociedades e em diversos momentos. Normalmente, eram associadas a valores instrumentais (conservação de um recursos útil) ou a motivos de ordem ética, estética e religiosa (tabus instituídos em relação a espécies sagradas).
  • 252 a.C. O imperador hindu Asoka decretou proteção aos peixes, aos animais terrestres e às florestas;
  • 1215‐1294. Kublai Khan, soberano da Mongólia, decretou proibida a caça de aves e mamíferos nos períodos de reprodução.
  • Fim do século XIII. Duque Boleslau da Mazóvia proíbe a caça do auroque em suas terras.
  • Século XVI. O rei Sigismundo III criou reservas nas áreas onde se encontravam os últimos espécimes, o que não impediu a extinção da espécie em 1627.
  • Idade Média e a Idade Moderna. Europa. Instituição de monopólio da caça para a nobreza.
  • 1658. Continente Africano. Restrição ao abate de pinguins, focas e elefantes.
  • 1662. Extinção do Dodô. Início das extinções causadas desde a expansão marítima europeia.
** Preocupação com a preservação de espécies e com a criação de áreas especialmente destinadas à proteção da vida selvagem. 2ª metade do século XIX.
  • 1824. Fundação da “Society for the Protection of Animals”.
  • 1845. Dr. Edward Baldamus (1812‐1893) propôs a proteção dos animais, em particular das aves, na primeira assembleia da “German Ornithological Society”.
  • 1870. A Society for the Protection of Animals realizou uma campanha contra crueldade aos animais. 
  • De uma forma geral os pássaros foram os animais que tiveram mais iniciativas voltadas para a sua preservação, e as ações para proteção desse grupo remontam a , quando o 
  • 1867. Inglaterra. Fundação da “East Riding Association for the Protection of the Sea Birds”. Objetivava diminuir a matança das gaivotas. Proclamação do “Sea Birds Preservation Act”, que proibia a caça, durante o período reprodutivo, de 35 espécies de aves.
  • 1869 a 1880. Grã‐Bretanha, século XIX. Penas e plumas das aves eram amplamente utilizadas no vestuário feminino. Diante dos maus tratos às aves, editaram-se leis no parlamento britânico, proibindo a atividade. Ocorre que a legislação de restrição à caça de aves na Grã‐Bretanha acabou aumentando a demanda por plumagens e penas de espécies tropicais (muitas delas fornecidas pelo Brasil).
  • 1903. Fundação da “Society for the Preservation of the Wild Fauna of the Empire”, no continente africano. Primeira organização de proteção a grandes mamíferos. Hoje, essa organização denomina-se “Fauna and Flora Preservation Society”. Lograram controlar as atividades de caça no leste e no sul da África. Influenciou a criação do “Kruger National Park” e do “Serengeti National Park".
  • 1903. Sociedade de História Natural de “New South Walesna” na Tasmânia, concentrava seus esforços na preservação de marsupiais.
  • 1914. Extinção do pombo migrador e do periquito‐da‐carolina.
  • 1916 a 1940. EUA promovem a assinatura de acordos internacionais para a proteção da fauna: o primeiro com a Grã‐Bretanha; o segundo com o México e o Canadá, com o objetivo de proteger as aves migratórias; e o terceiro, a Convenção sobre a Proteção da Natureza e a Preservação da Vida Selvagem, também conhecida como Convenção do Hemisfério Ocidental, aberta à assinatura de todos os países americanos. 
  • 1918. Proibição da caça à águia nos EUA. Mesmo assim, a espécie foi quase extinta nos anos 1940 devido ao uso de DDT. 

** Os impactos dos humanos sobre a biodiversidade, sobretudo a partir da revolução industrial, resultaram em uma taxa de extinção de espécies que está hoje de 100 a 1000 vezes acima do que seria o esperado, considerando o processo evolutivo.

  • A biologia da conservação refere-se a uma crise global da biodiversidade, como a que extinguiu os dinossauros 65 milhões de anos atrás. 
  • Principais causas da perda de biodiversidade: destruição de habitats (a mais acentuada de todas), espécies invasoras, poluição e exploração excessiva (caça, pesca e coleta).
** As iniciativas de conservação de espécies no Brasil se deram a partir de iniciativas individuais e de grupos preocupados com a proteção da natureza. 
  • A partir da década de 1960.
  • Primeiros projetos conservacionistas brasileiros: mico‐leão‐dourado e muriqui (primatas).


A FBCN e os projetos pioneiros de conservação de espécies da fauna no Brasil: micos‐leões‐dourados, muriqui, muçuan e avoantes (1966 a 1972). 

** Os primeiros projetos destinados à conservação do mico‐leão‐dourado e do muriqui foram coordenados pela FBCN, entidade não governamental fundada em 1958 e, durante muitos anos, a principal gestora dos projetos de conservação de espécies da fauna no Brasil.
  • Primeiro boletim da instituição, de 1966. Explicita o objetivo de unir uso racional dos recursos naturais com a proteção da natureza.
  • O período inicial das atividades da FBCN, entre 1958 e 1966, é considerado de dormência (FRANCO, 2013). Mesmo assim, a influência que alguns de seus membros exerciam sobre as esferas governamentais foi importante para a criação de 11 parques nacionais (Aparados da Serra, Araguaia, Ubajara, Brasília, Caparaó, Chapada dos Veadeiros, Emas, Monte Pascoal, São Joaquim, Sete Cidades e Tijuca) e uma floresta nacional (Caxiuanã), que garantiam o habitat de espécies ameaçadas. Além disso, essa influência foi sentida na elaboração do anteprojeto de Lei que resultou no Código Florestal de 1965.
  • Lei de proteção à fauna. Lei nº 5.197/1967. Contou com a participação ativa de membros da FBCN (especialmente Fernando de Ávila Pires, José Cândido de Melo Carvalho e Maria Tereza Jorge Pádua). Uma das mudanças mais significativas trazida pela nova lei foi dar ao Estado a tutela dos animais silvestres, além de proibir as atividades econômicas que impulsionavam um mercado tradicionalmente promissor de plumas, penas, peles e couros para uma elite ávida por consumo e desejosa de sofisticação [Pergunto: foi a melhor estratégia para a conservação das espécies? Se foi, continua sendo?]
  • 1967. Oficialização dos primeiros projetos de conservação de espécies da fauna no Brasil. Visavam os micos‐leões‐dourados e o Muriqui. Os projetos contavam com o apoio do Programa Biológico Internacional, o que iniciou a cooperação entre a FBCN e o IUCN. Coimbra‐Filho assumiu o projeto de conservação do mico e o zoólogo Álvaro Aguirre, o do muriqui.
  • 1968. Elaboração da primeira lista de animais e plantas ameaçados de extinção. Critérios: raridade, ameaça de extinção e perseguição pelo homem. Abrangia 19 mamíferos, 24 aves, 2 répteis e 13 plantas. Logo depois foi transformada em portaria pelo IBDF (Edital n 303/20 de Maio de 1968). Essa lista deu proteção integral ao muriqui e ao mico‐leão‐dourado, ao mico‐leão‐da‐cara‐dourada e ao mico‐leão‐preto. 
  • 1968. Colaboração entre IBDF e FBCN, a partir do Simpósio sobre Conservação da Natureza e Restauração do Ambiente Natural, organizado pela Academia Brasileira de Ciências, entre os dias 26 e 31 de Outubro. A colaboração foi decisiva para a consolidação da FBCN, pois a partir daí ela passou a contar com recursos para desenvolver projetos de conservação, entre eles os da fauna, além de aumentar a sua influência nas esferas governamentais. 
  • 1969. Outros dois projetos para a preservação de espécies da fauna foram iniciados pela FBCN: o do Muçuan (coordenado por Antenor Leitão) e o dos Ninhais da avoante (coordenado por Álvaro Agirre).
  • 1971. Parceria entre a FBCN e a WWF.
  • 1972. Conferência “Salvando o Sagui Leão”, realizada no “Smithsonian National Zoological Park” (SNZP). Patrocinada pelo “Wild Animal Propagation Trust”, contou com o apoio da “New York Zoological Society” (FBCN, 1973). Conferência que foi ponto de chegada e de partida para a preservação dos micos.
  • 1972. Primeira Conferência Mundial sobre o Homem e o Meio Ambiente da ONU, em Estocolmo. Debate orientado para o problema da superpopulação de seres humanos e da inexistência de recursos naturais suficientes para todos.
  • 1972. XI Assembleia Geral da UICN em Banff, no Canadá.
** Os primeiros projetos da FBCN impulsionaram as pesquisas sobre o comportamento e os hábitos alimentares dos primatas, quelônios e aves.
Entre 1966 e 1972, surgiram os primeiros projetos de conservação da fauna no Brasil, todos eles no âmbito da FBCN (micos, muriqui, avoantes e muçuan).  Durante o período, a FBCN se estruturou e ganhou espaços tanto nas esferas governamentais (IBDF, CNPQ) como nas não governamentais e internacionais (IUCN, WWF, SNZP, “National Zoological Park de Washington”, “Wild Animal Propagation Trust”). Ela se tornou a ONG conservacionista mais importante do Brasil. A partir de 1972, com o ganho de visibilidade internacional dos projetos de conservação da fauna no Brasil e o consequente apoio técnico e financeiro, eles começaram a se multiplicar e a incluir novas demandas. P. 92/93.

** Adelmar Coimbra Filho >> 
  • Primatologista que, em meados do século XX, passou a estudar o mico-leão-dourado.
  • Reconhecido como o primatologista brasileiro que salvou da extinção três espécies de micos: mico‐leão‐dourado, o mico‐leão‐preto e o mico‐leão‐da–cara‐dourada. Estão entre os projetos de conservação mais bem-sucedidos do mundo.
  • Pioneiro da conservação de espécies da fauna do Brasil.
  • Ganhou fama internacional, o que lhe rendeu ser homenageado com o nome científico de dois animais.
  • A população de micos estava decaindo em decorrência da exportação ilegal. Coimbra Filho conseguiu repatriar exemplares de diversos zoológicos a partir dos quais tornou-se possível repovoar a Mata Atlântica.
  • 1968. Criação de reserva para o mico‐leão‐dourado, localizada na bacia do Rio São João e na área de Poço das Antas no Rio de Janeiro. 
  • 1969. Região da reserva do Una, no Sul da Bahia, foi proposta por Coimbra‐Filho como lar definitivo dos micos‐leões‐da‐cara‐dourada. No mesmo ano, a proibição de importação de micos‐leões‐da‐cara‐dourada foi solicitada pela União Internacional de Diretores de Jardins Zoológicos (IUDZG).
  • 1970. Coimbra‐Filho redescobriu, na área do Parque Estadual do Morro do Diabo, uma espécie de mico‐leão até então considerada extinta: o mico‐leão‐preto.
  • 1971. “Reunião Técnica sobre Espécies Cinegéticas e Espécies Raras ou Ameaçadas de Extinção da Fauna Brasileira”, organizada pela FBCN em parceria com o IBDF e com o Conselho Nacional de Pesquisas da Academia Brasileira de Ciências. Revisão da lista dos animais ameaçados de extinção.
  • 1971. A FBCN declarou concluídos os projetos do muriqui e do mico‐leão‐ dourado, com a pesquisa da situação e as providências necessárias para sua sobrevivência encaminhadas para publicação.

** Álvaro Agirre >>  
  • 1971. Publicação de trabalho sobre os muriquis.
  • Muriquis. Caracterizados por raros “elevados níveis de tolerância que demonstram uns com os outros, o que define sua sociedade pacífica e igualitária e os distingue de todos os outros primatas” (CANDISANI, 2004).
  • Avoantes.


Consolidação, crescimento e cooperação internacional nos projetos de conservação de espécies da fauna (1973 a 1989) 

** 1973. Novos convênios na esfera governamental:
  • FBCN << >> Secretaria de Ciência e Tecnologia da Guanabara. 
  • FBCN << >> Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA). A SEMA foi criada em resposta às pressões internacionais sofridas pelo Brasil durante a Conferência Mundial sobre o Homem e o Meio Ambiente. Objetivo prioritário do órgão: a criação de estações ecológicas. 
** Ainda em 1973 >> 
  • III Congresso Internacional do WWF. A  FBCN ganhou uma medalha de ouro em reconhecimento ao seu trabalho em prol da conservação do patrimônio natural brasileiro, em especial, pela preservação da nossa fauna.
  • Convenção Internacional para a Regulamentação da Pesca da Baleia. 
  • Coimbra‐Filho visitou a região do Una, na Bahia, a pedido do IBDF, para a escolha de um local destinado ao mico‐leão‐da‐cara dourada. 
  • Formada a primeira colônia em cativeiro de mico‐leão‐preto, a partir de sete indivíduos capturados por Coimbra‐Filho no Morro do Diabo. O cativeiro foi estabelecido como parte do Banco Biológico da Tijuca (COIMBRA‐FILHO, 1976).
** 1974 >> 
  • Criada a Reserva Biológica de Poço das Antas, no RJ, com 3000 hectares. 
** 1975 >> 
  • Ampliação da Reserva Biológica de Poço das Antas para 5000 hectares (Decreto nº 76.534/1975). 
** 1976 >> 
  • Aquisição de terras para o estabelecimento de uma reserva destinada ao mico‐leão‐da‐cara‐dourada. 
  • Descoberta de população de muriquis em um remanescente florestal de 880 hectares, localizado na floresta da Fazenda Montes Claros/MG. 
** 1977 >>
  • Akira Nishimura iniciou os primeiros estudos sistemáticos sobre os muriquis de Montes Claros.
  • O WWF passou a destinar fundos para as pesquisas de longo prazo sobre o muriqui.
** 1982 >>
  • Karen Strier, bióloga, iniciou os seus estudos sobre o comportamento dos muriquis, que ela acompanha até hoje. 
** 1979 a 1985 >> 
  • Russel Mittermeir coordenou o levantamento dos primatas entre 1979 e 1985, patrocinado pelo “WWF primate program”.
  • Dados e recomendações foram submetidos ao governo brasileiro em 1980, com o intuito de justificar a criação da reserva. 
  • 1980. Criação da Reserva Biológica do Una, administrada pelo IBDF.
** Maria Tereza Jorge Pádua >> 
  • Engenheira agrônoma.
  • Diretoria do Departamento de Parques Nacionais e Reservas Equivalentes do IBDF em 1979.
  • 1980. Coordenou o primeiro levantamento das espécies de tartarugas marinhas que ocorriam no litoral brasileiro e das suas áreas de desova. Primeiras ações para a preservação das tartarugas.  
** 1983 >> Projeto Tamar. 
  • 1983. Monitoramento da primeira temporada de reprodução das cinco espécies de tartarugas marinhas. Bases: litoral norte de Sergipe; litoral norte do Espírito Santo; e litoral norte da Bahia.
  • A FBCN recebia e gerenciava o financiamento destinado ao TAMAR além de contribuir com quadro técnico. 
** Relação entre FBCN e IUCN >> A IUCN era a mais influente das organizações de cooperação internacional para os projetos de conservação de espécies da fauna junto à FBCN.  
  • Entre 1966 e 1969, a FBCN se estruturou e passou a funcionar nos moldes da IUCN. Os objetivos principais da FBCN eram a preservação das espécies da fauna e da flora silvestre e a criação de áreas protegidas para a manutenção dos habitats das espécies ameaçadas de extinção. 
  • A FBCN também influenciou a IUCN. Isto é perceptível na ocupação paralela de cargos nas duas instituições por membros da FBCN. 
  • Essa fase da FBCN é considerada o seu apogeu. A organização contava com um quadro de cientistas e pessoal de apoio remunerados, além de um corpo de voluntários. 
  • Nessa época, a FBCN geria os recursos do WWF no Brasil.  
  • Projetos financiados, coordenados ou executados pela FBCN, entre 1987 e 1988:  Projeto Conservação das Tartarugas Marinhas; Estudo Ecológico e Reintrodução do Mico‐Leão‐Dourado na Reserva Biológica de Poço das Antas; Muriquis na Fazenda Montes Claros: pesquisa, turismo e educação conservacionista; Aves Ameaçadas do Nordeste do Brasil; Proteção da Arara‐Lear; Pesquisa e Identificação da Baleia‐Franca‐Austral no Sul do Brasil; Levantamento para verificar o estado atual e a biologia da Ararinha.
** Entre 1973 e 1989, a FBCN se tornou a mais importante ONG brasileira para a conservação de espécies da fauna, ampliando os projetos de conservação de espécies in‐situ e ex‐situ
  • Vedetes: criação e gestão de áreas protegidas e projetos de educação ambiental. Uso de espécies “guarda‐chuva”.
** Divulgação das atividades da FBCN >> 
  • 1966 a 1977. Boletim Informativo FBCN. Anual.
  • 1977. FBCN Informativo. Trimestral. Contava com recursos do convênio com o IBDF. 
** Anos 1980 >> 
  • As preocupações com a extinção de espécies e o debate internacional em torno da preservação da diversidade da vida se intensificaram e tornaram‐se mais difundidos. 
  • Desenvolvimento da biologia da conservação. 
  • Centralidade, inclusive no âmbito da IUCN, das discussões sobre como conciliar a presença humana (sobretudo de grupos carentes e excluídos) e a conservação de espécies e ecossistemas também ganharam centralidade. 
  • Aparecimento de novas ONG brasileiras. Estabelecimento de grandes ONG internacionais dedicadas à conservação da fauna em território nacional.  


Novas propostas, crescimento expressivo dos projetos e situação dos projetos de conservação da fauna brasileira (de 1989 até o presente). 

** No final dos anos 1980 e do início dos anos 1990, os projetos de conservação dos micos‐leões já haviam ganhado repercussão internacional, atraindo pesquisadores do mundo inteiro.

  • Criação de unidades de conservação;
  • Comitês internacionais de manejo do mico‐leão‐preto, do mico‐leão‐da‐cara‐dourada e do mico‐leão‐dourado;
  • Criação de fundo de arrecadação para a conservação das quatro espécies de micos.
  • Apesar de salvos da extinção, continuam entre os primatas mais ameaçados do novo mundo (destruição de habitat, a Mata Atlântica). 

** A muçuan deixou de figurar entre as espécies ameaçadas de extinção. Criação de UC nos locais de ocorrência.

** As avoantes se encontram protegidas, sob os cuidados do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres, que realizou o anilhamento de 730 pássaros em 2013. 
  • Pombais com mais de 1 milhão de espécies adultas no Ceará, Pernambuco e Piauí.

** Novos projetos esbarraram em um novo contexto brasileiro, mais complexo e conflituoso.

  • A retórica do desenvolvimento sustentável fortaleceu o viés socioambientalista, que busca conciliar desenvolvimento econômico, conservação ambiental e combate à pobreza. 
  • Tensões entre concepções preservacionistas/conservacionistas (tradição baseada nas preocupações com a proteção de espécies e de ecossistemas) e concepções socioambientalistas.  
  • Intensificação dos conflitos durante o longo processo, 1992 a 2000, de tramitação do projeto de lei que originou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Principal discordância: permanência ou não de populações humanas dentro das unidades de conservação. 
  • Resultado: do SNUC foram excluídos a reserva legal, as áreas de preservação permanente e as terras indígenas. Foram estabelecidos dois grandes grupos de unidades de conservação: proteção integral e uso sustentável. 

** Ocaso da FBCN. Perda de financiamento internacional, perda de financiamento nacional e diminuição das suas atividades (bem como da sua representatividade) no cenário dos projetos de conservação de fauna no Brasil.

  • Ampliação das ONGs ligadas ao socioambientalismo;
  • ONG internacionais sediaram‐se no Brasil e desvincularam as suas ações da FBCN. Isso ocorreu com a CI e a TNC em 1988 e com o WWF em 1996.
  • ONG brasileiras de viés preservacionista‐conservacionista, como a Funatura (1986) e a Biodiversitas (1989) ganharam autonomia em relação à FBCN. 

** Demais influências do socioambientalismo >>
  • Inclusão das comunidades locais nos projetos de conservação (atividades turísticas ou funcionários);
  • Intensificação da educação ambiental;
  • Promoção de alternativas econômicas ao desmatamento;
  • Promoção das agroflorestas;
  • Gestão de áreas protegidas com o envolvimento das populações residentes ou do entorno de áreas protegidas, a partir da década de 1990.

Conclusão

** Sem os projetos de conservação da fauna executados no Brasil, a situação das espécies ameaçadas seria bem pior. Eles se mostraram exemplos bem‐sucedidos e duradouros no âmbito da biologia da conservação e da educação ambiental.
  • Enfoque em espécies carismáticas.
  • Espécies carismáticas não são apenas carismáticas. São indicadoras da saúde dos ecossistemas e atuam como espécies guarda‐chuva. 
  • Experiências de conservação da fauna têm valor educativo e simbólico. 
** Sem animais, a história humana teria sido mais pobre.

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Esquema de leitura e excertos. Entre história e memória: os memoriais. NORA, Pierre.

HARVARD UNIVERSITY
HARVARD: GSD1X
THE ARCHITECTURAL IMAGINATION
Parte III, unidade 10: Representando o irrepresentável (Presenting the unrepresentable)
Aluna: Juliana Capra Maia
Esquema de leitura e excertos.
Referência: NORA, Pierre. "Between Memory and History: Les lieux de mémoire", in Representations, Vol. 26, Spring 1989, p. 07 - 24, University of California Press. Texto disponibilizado no link https://prod-edxapp.edx-cdn.org/assets/courseware/v1/4b05f04d9ab0159b6391bb56c1133002/asset-v1:HarvardX+GSD1x+1T2017+type@asset+block/module10_nora_betweenMemoryAndHistory_ucPress_final.pdf. Consulta em 05/04/2018, às 16:57 horas.



** Observação: neste esquema de leitura traduzi "lieux de memoire" por "memorial". O sentido atribuído pelo autor, entretanto, extrapola o do "prédio" ou "monumento" erigido em honra a determinado personagem, povo ou feito histórico.

** Vivemos sob o signo da aceleração da História. A aceleração da História é percebida como um desmoronamento constante e rápido do presente para um passado que se foi para sempre, uma percepção de que tudo que existe pode desaparecer [uma percepção, como dizia Marx, de que "tudo o que é sólido se desmancha no ar"].  


Nós falamos muito da memória porque pouco sobrou dela.


** Passamos a nos interessar por memoriais em um momento histórico peculiar, em um momento histórico em que a memória foi rasgada. Memorial é o local em que um resto de memória se cristaliza e se segrega, um local que permite um senso de continuidade histórica. Há memoriais porque não há mais ambientes reais de memória. 

** Exemplos: ruptura da cultura camponesa, que era um repositório muito antigo de memória coletiva; ruptura das culturas arcaicas das sociedades "newly awakened from their ethnological slumbers by colonial violation." (NORA, p. 7), isto é, recentemente despertadas do seu sono etnológico pela violação do colonialismo (tradução livre). 

We have seen the end of societies that had long assured the transmission and conservation of collectively remembered values, whether through churches or schools, the family or the state; the end too of ideologies that prepared a smooth passage from the past to the future or that had indicated what the future should keep from the past -- whether for reaction, progress, or even revolution. Indeed, we have seen the tremendous dilation of our very mode of historical perception, which, with the help of the media, has substituted for a memory entwined in the intimacy of a collective heritage the ephemeral film of current events. 
Vimos o fim de sociedades que há muito asseguraram a transmissão e a conservação de valores coletivamente lembrados, seja por intermédio de igrejas ou de escolas, da família ou do Estado; vimos também o fim de ideologias que prepararam uma passagem suave do passado para o futuro ou que indicaram o que o futuro surgiria do passado: quer por reação, quer por progresso, quer por revolução. De fato, vimos a tremenda dilatação de nosso próprio modo de percepção histórica que, com a ajuda da mídia, substituiu memória de uma herança coletiva pelo filme efêmero de eventos atuais. (Tradução livre).

** A aceleração histórica marca, portanto, a brutal diferença entre a memória (típica de sociedades primitivas ou arcaicas) e a história (que é o instrumento com qual as sociedades modernas organizam o seu passado). A memória é uma totalidade ditatorial, inconsciente e autorealizadora. Ela inventa e reinventa incessantemente a tradição, ligando a experiência de vida dos ancestrais do povo ao tempo indiferenciado dos heróis. Por outro lado, a história é um conjunto de eventos peneirados e organizados.



Hoje, sentimos um abismo entre história e memória, abismo esse que foi alargado até um limite convulsivo.



** Se pudéssemos viver dentro da memória, não demandaríamos memoriais. Cada gesto nosso seria representando como a repetição ritual de uma prática ancestral: identidade entre ato e significado. Mas o aparecimento da narrativa, da mediação, do afastamento e da crítica nos coloca no campo da história, não no campo da memória. Todos esses instrumentos, aliás, seriam inúteis em sociedades de memória.  
Memory and history, far from being synonymous, appear now to be in fundamental opposition. Memory is life, borne by living societies founded in its name. It remains in permanent evolution, open to the dialectic of remembering and forgetting, unconscious of its successive deformations, vulnerable to manipulation and appropriation, susceptible to being long dormant and periodically revived. History, on the other hand, is the reconstruction, always problematic and incomplete, of what is no longer. Memory is a perpetually actual phenomenon, a bond tying us to the eternal present; history is a representation of the past. Memory, insofar as it is affective and magical, only accommodates those facts that suit it; it nourishes recollections that may be out of focus or telescopic, global or detached, particular or symbolic-responsive to each avenue of conveyance or phenomenal screen, to every censorship or projection. History, because it is an intellectual and secular production, calls for analysis and criticism. Memory installs remembrance within the sacred; history, always prosaic, releases it again. Memory is blind to all but the group it binds [...], there are as many memories as there are groups, [...] memory is by nature multiple and yet specific; collective, plural, and yet individual. History, on the other hand, belongs to everyone and to no one, whence its claim to universal authority. Memory takes root in the concrete, in spaces, gestures, images, and objects; history binds itself strictly to temporal continuities, to progressions and to relations between things. Memory is absolute, while history can only conceive the relative. (NORA, p. 8/9). 
A memória e a história, longe de serem sinônimas, parecem estar em oposição fundamental. A memória é vida, sustentada por sociedades vivas fundadas em seu nome. Permanece em evolução permanente, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas sucessivas deformações, vulnerável à manipulação e à apropriação, suscetível de ficar muito adormecida e periodicamente revivida. A história, por outro lado, é a reconstrução, sempre problemática e incompleta, do que não é mais. A memória é um fenômeno perpetuamente real, um vínculo nos ligando ao presente eterno; a história é uma representação do passado. A memória, que é afetiva e mágica, apenas acomoda os fatos que nela "cabem"; nutre recordações que podem estar fora de foco ou telescópicas, globais ou distantes, particulares ou simbólico-responsivas a todas as comunicações e telas fenomênicas, a todas as censuras e projeções. A história, por ser uma produção intelectual e secular, demanda análise e crítica. A memória associa as lembranças ao sagrado; a história, sempre prosaica, as libera. A memória é cega para todos, menos para o grupo que ela conecta [...]: existem tantas memórias quanto grupos, [...] a memória é essencialmente múltipla e, por isso, específica; coletiva, plural e ainda individual. A história, por outro lado, pertence a todos e a ninguém, daí sua reivindicação à autoridade universal. A memória cria raízes no concreto, nos espaços, nos gestos, nas imagens e nos objetos; a história se liga estritamente às continuidades temporais, às progressões e às relações entre as coisas. A memória é absoluta, enquanto a história só pode conceber o relativo. (Tradução livre).

** Em um mundo laico, secularizado, a verdadeira missão da história é suprimir ou destruir a memória. Nesse mundo, o passado se conhece exclusivamente pela história. 

** Historiografia da História >> sinal mais tangível da divisão entre história e memória. A historiografia da História se atribui a tarefa de encontrar os impulsos alienígenas que lhe habitam, de descobrir e de revelar que vem sendo vítima de memórias que supostamente dominaria. Em sociedades nas quais a história não assumiu a tarefa de "formar a nação", a Historiografia da história é menos carregada de conteúdo polêmico. Na França, contudo, ela é iconoclasta e irreverente, operando por meio da dúvida.

That we study the historiography of the French Revolution, that we reconstitute its myths and interpretations, implies that we no longer unquestioningly identify with its heritage. To interrogate a tradition, venerable though it may be, is no longer to pass it on intact. (NORA, p. 10).
Quando estudamos a historiografia da Revolução Francesa, reconstituindo os seus mitos e as suas interpretações, não estamos mais nos identificando completamente com a sua herança. Interrogar uma tradição, por mais venerável que seja, significa não mais transmiti-la intacta (Tradução livre).

** Ascensão e queda da história da nação >> 
  • História da Nação. Conciliação entre história e memória. Sacralização da "nação", cuja história seria una, indivisível. Aqui, o historiador torna-se meio pregador, meio soldado, comprometido com a unidade nacional, com a grandeza da pátria e com o progresso da humanidade.
  • A "História da Nação" é uma síntese de história e memória que se desfez com a pressão de uma nova onda secularizadora. Na década de 1930, para-se de falar no acoplamento entre Estado e nação e passa-se a se falar no acoplamento entre Estado e sociedade. 
  • Dissociada da "nação", a história se transforma em instrumento de autoconhecimento da sociedade, o que lhe permite assinalar diversos tipos de memória e se transformar em um laboratório de mentalidades passadas. Contudo, ao negar a sua identidade com a nação, a história também abandonou a sua pretensão de transmitir um significado coerente, bem como a sua autoridade pedagógica para transmitir valores.
  • Com o advento da "sociedade" no lugar da "nação", a legitimação pelo passado abre espaço para a legitimação pelo futuro. Não mais uma causa, a "nação" torna-se um dado. A história torna-se uma ciência social e a memória, um fenômeno privado, subjetivo.


** O estudo dos memoriais está na interseção de dois movimentos: um puramente historiográfico (o giro reflexivo da história sobre si mesma) e o outro puramente histórico (fim de uma tradição de memória). Memorais aparecem quando desaparece a memória, quando ela está domada pela história crítica. Daí nos apegarmos aos objetos mais simbólicos de nossa memória: aos arquivos, aos tratados, às bandeiras, às bibliotecas, aos dicionários, aos museus, aos cemitérios, aos santuários. Eles são como marcos físicos que abrem as fronteiras de um outro tempo. 
Lieux de memoire originate with the sense that there is no spontaneous memory, that we must deliberately create archives, maintain anniversaries, organize celebrations, pronounce eulogies, and notarize bills because such activities no longer occur naturally. The defense, by certain minorities, of a privileged memory that has retreated tojealously protected enclaves in this sense intensely illuminates the truth of lieux de memoire -- that without commemorative vigilance, history would soon sweep them away. We buttress our identities upon such bastions, but if what they defended were not threatened, there would be no need to build them. Conversely, if the memories that they enclosed were to be set free they would be useless; if history did not besiege memory, deforming and transforming it, penetrating and petrifying it, there would be no lieux de memoire. Indeed, it is this very push and pull that produces lieux de memoire --moments of history torn away from the movement of history, then returned; no longer quite life, not yet death, like shells on the shore when the sea of living memory has receded. (NORA, p. 12).  
Os memoriais originam-se da sensação de que não há memória espontânea, de que devemos deliberadamente criar arquivos, manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios e autenticar contas, porque essas atividades não ocorrem mais naturalmente. A defesa, por certas minorias, de uma memória privilegiada que recuou para enclaves protegidos, nesse sentido, ilumina intensamente a verdade do memorial: sem vigilância comemorativa, a história logo a arrebataria. Apoiamos nossas identidades em tais bastiões, mas se o que eles defendiam não fosse ameaçado, não haveria necessidade de construí-los. Por outro lado, se as memórias condensadas nos memoriais pudessem ser libertadas, seriam inúteis; se a história não sitiasse a memória, deformando e transformando, penetrando e petrificando-a, não haveria memoriais. Na verdade, é exatamente esse empurrão e puxão que produz os momentos de memória - momentos da história, arrancados do movimento da história e depois retornados: não mais a vida, ainda não a morte, tal como as conchas na costa, quando o mar da memória viva recuou (tradução livre).

** A memória medida pela história >>
  • O que chamamos "memória" já é história. Não se trata mais de um conjunto de hábitos irrefletidos e transmitidos de geração em geração, mas da "memória de alguém", registrada como história.
  • A memória moderna é arquivística. Depende da materialidade, do registro, da gravação, da visibilidade da imagem. Ela não é experimentada internamente. Existe apenas através de seus sinais manifestos, foi absorvida por sua reconstituição meticulosa.
  • Memória, hoje, é um armazém gigante, são os megadados, tudo o que possa vir a ser utilizado no "tribunal da história". 
  • A materialização da memória foi multiplicada, descentralizada e democratizada. Os principais produtores de arquivos no período clássico eram as grandes famílias, a igreja e o Estado. Hoje, todos produzem material: e quanto menos extraordinário o testemunho, mais ele parece refletir a mentalidade média. 


A produção indiscriminada de arquivos é o efeito agudo de uma nova consciência: a expressão mais clara da memória historicizada



  • Atomização da memória geral em diversas memórias privadas. Multiplicação exponencial das memórias individuais: aumento da busca por genealogias e curiosidades familiares; preocupação com as origens das disciplinas; busca dos antecedentes de grupos minoritários.   
  • A transformação da memória implicou uma mudança decisiva do histórico para o psicológico; do social para o individual; da mensagem objetiva para a sua recepção subjetiva; da repetição para a rememoração. Cada um torna-se historiador de si mesmo: isso se converte em um direito e em uma obrigação (coerção interna).
  • Quanto menos a memória for experimentada coletivamente, mais os indivíduos se sentirão coagidos a se tornaram indivíduos de memória [alguma relação com a radicalização dos movimentos identitários e nacionalistas no ocaso do século XX?].
  • Distanciamento do passado. Se antes o passado podia ser rememorado, reconstituído, recuperado, agora o passado -- tal como o futuro -- se tornou invisível, imprevisível e incontrolável. Passamos da ideia de um passado visível para a de um passado invisível; da ideia de um passado sólido e estável para um passado fraturado. O passado tornou-se um mundo à parte. 
  • Paradoxalmente o distanciamento exige a reaproximação que a nega: desejamos saber como os antigos se vestiam, o que comiam, como cheiravam, no que acreditavam e como se relacionavam sexualmente. Mas essa obsessão só é concebível em um regime de descontinuidade, isto é, quando "nós" não nos identificamos mais com "eles".   
  • Nossa memória, hoje: televisual. Retorno das "narrativas". Onipotência do imaginário e do cinema na cultura contemporânea.

Não é mais a gênese que buscamos, mas a decifração daquilo que somos à luz daquilo que deixamos de ser. 


  • A história torna-se, então, um repositórios para os segredos do presente. E com a desintegração da memória-história, surge um novo tipo de historiador. Não mais um ser neutro, sem qualquer paixão ou identificação com o seu objeto, mero transmissor de saberes pretéritos para o tempo presente, mas um historiador que está pronto para confessar a sua subjetividade e o seu apego ao objeto estudado. E a sua subjetividade não é mais vista como um obstáculo, mas coo um caminho para compreender o objeto. O historiador, ele mesmo, se torna um "memorial" (lieu de memoire).



** Memoriais: uma outra história
  • Memoriais (lieux de memoire) podem ser simples ou ambíguos, naturais ou artificiais, imediatamente disponíveis para a experiência concreta ou suscetíveis à elaboração abstrata. Eles são "lugares" em três sentidos concomitantes: no sentido material, no sentido simbólico e no sentido funcional.  
Even an apparently purely material site, like an archive, becomes a lieu de memoire only if the imagination invests it with a symbolic aura. A purely functional site, like a classroom manual, a testament, or a veterans' reunion belongs to the category only inasmuch as it is also the object of a ritual. And the observance of a commemorative minute of silence, an extreme example of a strictly symbolic action, serves as a concentrated appeal to memory by literally breaking a temporal continuity. Moreover, the three aspects always coexist. (NORA, p. 19). 
Mesmo um local a princípio puramente material, como um arquivo, só se tornará um memorial (lieux de memoire) se a imaginação o investir com uma aura simbólica. Um objeto puramente funcional, como um manual de sala de aula, um testamento ou uma reunião de veteranos pertence à categoria dos memoriais (lieux de memoire) apenas a medida em que é também o objeto de um ritual. E a observância de um minuto comemorativo de silêncio (o que exemplifica o extremo de uma ação estritamente simbólica) serve como um apelo concentrado à memória, quebrando, literalmente, uma continuidade temporal 
  • Memoriais (lieux de memoire) são criados no bojo do jogo entre memória e história. A começar, deve haver vontade de lembrar algo em particular, que se destaque do panorama geral. 
  • A principal finalidade dos memoriais é "parar o tempo", bloquear o esquecimento, perenizar um estado de coisas, imortalizar a morte ou materializar o imaterial, de modo a capturar o máximo de significados com o menor número de signos. 
  • Exemplos de memoriais, citados por Nora: O Calendário Revolucionário, criado na Revolução Francesa com a intenção de que os franceses a revivessem, a lembrassem todos os anos e durante o ano todo. Manual pedagógico "Tour de la France par deux enfant", por meio do qual as crianças francesas eram apresentadas ao seu país.



O lieux de memoire é um objeto perdido no abismo do tempo-espaço 



** A memória dita o que a história escreve. É por isso que livros de história e eventos históricos são particularmente importantes. Eles são instrumentos históricos que registram a memória. 

  • Mas quais livros de história são lieux de memoire? Aqueles em que há sobreposição entre o homem de ciência e o homem de ação, aquele em que o discurso individual é identificado com o discurso coletivo, aquele que insere a racionalidade individual nas "razões de ordem pública".
  • Quais grandes eventos são lieux de memoire? 1) Eventos minúsculos aos quais a posteridade, avaliando retrospectivamente, atribui as origens e a solenidade das rupturas inaugurais. Exemplo: a condenação de Tiradentes (ressuscitado como ídolo da República); 2) Aqueles que são imediatamente carregados de pesado significado simbólico e que parecem uma celebração de si mesmos tão logo acontecem. 



Memory attaches itself to sites, whereas history attaches itself to events (NORA, p. 22)


** Há memoriais (lieux de memoire) mais evidentes, tais como cemitérios, museus e aniversários; há memoriais mais abstratos, tais como geração, linhagem, sesmarias. Há os memoriais portáteis, tais como as Tábuas da Lei. Há os memoriais topográficos, que devem a sua relevância justamente à sua localização e arquitetura, tais como a cidade antiga de Gênova ou o Palácio de Versailles. Há os monumentos propositalmente erigidos como memoriais: estátuas ou monumentos aos mortos (podem ser mudados de lugar e manter o seu significado). Enfatizando-se o elemento funcional, há os manuais, dicionários, testamentos e memorandos. Enfatizando-se o elemento simbólico, há os santuários que incentivam a peregrinação espontânea, o minuto de silêncio em homenagem a alguém que faleceu.

** Os memoriais (lieux de memoire) não são objetos históricos, não são relíquias que nos foram legadas pelo passado. Eles são entidades autorreferenciadas. Isso não quer dizer que não tenham conteúdo, mas que eles assumam um duplo papel: o de realidade autorreferenciada e o de objeto permanentemente aberto para todo o espectro de possíveis significações. 

** A memória nunca conheceu mais de duas formas de legitimidade: histórica e literária. Essas justificativas correram paralelas entre si, mas sempre separadamente. Hoje, os limites entre essas duas formas de legitimação da memória estão se desfazendo. A história substituiu a nossa imaginação. A memória, por sua vez, foi promovida ao centro da história.

Artigo publicado em periódico. De naturalista a militante: a trajetória de Rachel Carson

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