terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Excertos e esquema de leitura: Na presença da floresta, Diogo de Carvalho Cabral

Universidade de Brasília - Unb
Centro de Desenvolvimento Sustentável – CDS
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável
Doutorado
Elaboração de trabalho final: Tese
Professor: José Luiz de Andrade Franco
Aluna: Juliana Capra Maia
Esquema de leitura: CABRAL, Diogo de Carvalho. Na presença da floresta: Mata Atlântica e história colonial. 1ª edição, Rio de Janeiro: Garamond, 2014.



Introdução: Por uma história florestal da América portuguesa


** Parafraseando Pablo Neruda, Cabral esclarece que, na infância nacional, o único personagem inesquecível foi a floresta. 

“Quem não conhece a Mata Atlântica não conhece o Brasil; foi daquelas terras, daquele barro, daquele silêncio que o país “saiu a andar” como invenção moderna. Na América portuguesa, entre os séculos XVI e XIX, a construção de um povo novo, na carne e no espírito, ocorreu, majoritariamente na floresta – através da floresta”. P. 24/25


** Mata Atlântica: locus fundamental do encontro biofísico e cultural que remodelou a terra e a vida a partir da chegada dos europeus, em 1500. 

>> 2/5 do território legado à Portugal pelo Tratado de Tordesilhas era ocupado por florestas tropicais e subtropicais e ecossistemas aparentados.


** No território que hoje conhecemos como Brasil, negros, ameríndios e brancos, isto é, gente oriunda de três diferentes continentes, tiveram de lidar com as florestas tropicais para produzir as suas vidas.

>> A Mata Atlântica não foi mero palco ou cenário, ela foi um ator na formação da sociedade brasileira. 


** Ambientes são configurações dinâmicas, não quadros estáticos de referência. O processo de formação de um organismo, de uma espécie, de uma população ou de uma comunidade é, também, o processo de formação do seu ambiente.

>> Plantas e animais domesticados tendem a desaparecer com as sociedades humanas que os domesticaram. Plantas e animais se tornam dependentes da manutenção humana, não conseguindo mais se reproduzir em ambiente selvagem. 

“Seres não humanos como árvores, capins, formigas, onças, capivaras, montanhas, solos e rios, embora tenham participado ativamente daquela empresa que foi a América portuguesa, nunca puderam dar o seu próprio testemunho dos fatos. Evidentemente, nunca poderão. Todavia, uma coisa é certa: esses seres se movimentam. Ao se movimentarem, eles se “registram”, eles se “escrevem” em nós." P. 29. 

“Cúmplices de nossa subjetividade, os não humanos são como “suportes” de nosso pensamento e de nossa linguagem – mas suportes que não são passivos. Eles carregam nosso pensamento, mas – assim como o modo de transporte das mercadorias influencia ativamente na formação dos preços e dos mercados – interferem no processo de significação. É por isso que não há uma completa liberdade, uma “arbitrariedade” humana na arena simbólica: de alguma maneira, os suportes materiais sempre participam do significado. De outro modo, faltaria pertinência ao nosso mundo vivido”. P. 31. Crítica ao pós-modernismo? A construção social depende de um substrato.


** Por que a Mata Atlântica é tão biodiversa?

1) Estabilidade climática;

“Modelos matemáticos sugerem que as duas únicas áreas da Mata Atlântica que passaram incólumes por essas turbulências climáticas foram, exatamente, uma pequena mancha em Pernambuco e uma faixa litorânea que se estende desde a foz do rio São Francisco até a foz do rio Doce, com maior interiorização a partir do rio Una, no atual município de mesmo nome, no estado da Bahia. Se esses modelos estiverem corretos, as florestas sul-baianas vêm se desenvolvendo, sem maiores distúrbios, nessa escala regional, há pelo menos vinte e um mil anos, algo que muito provavelmente contribuiu para que atingissem altíssimos níveis de complexidade biológica”. P. 36. Vinham. Não mais.   

2) Variabilidade topográfica, que implica: diferentes tipos de solo, diferentes graus de incidência de luz, diferentes níveis de precipitação, diferentes temperaturas.

“À época do “descobrimento”, há pouco mais de 500 anos, a Mata Atlântica era também o resultado de práticas humanas. O fim do Pleistoceno testemunhou uma onda de extinção da megafauna [...] em todo o mundo, em parte devido a um rápido esfriamento do clima. Nas Américas, todavia, continentes de ocupação humana mais recente, essas extinções foram agravadas e aceleradas pela caça e pelos impactos indiretos relacionados à alteração antrópica dos habitats. A América do Sul foi a região mais severamente atingida do globo: nada menos do que 83% dos gêneros da megafauna foram levados à extinção pouco depois da chegada do Homo sapiens, há pelo menos 14 ou 15 mil anos”. P. 38.  

** A sociedade colonial é a sociedade construída a partir da Mata Atlântica. Até o final do século XVIII, era nesse bioma que residia a maioria da população brasileira.

“Até o fim da era colonial, a ocupação humana não indígena havia se concentrado, principalmente, na faixa de floresta ombrófila densa. No final do século XVIII, cerca de 60% da população colonial residia numa faixa litorânea que não avançava para o interior, os seus pontos de maior largura, senão algumas dezenas de quilômetros. Quase todo esse contingente se concentrava nas capitanias de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro”. P. 41.


** Em função da sua enorme diversidade biológica, a Mata Atlântica é uma realidade biofísica instável na sua relação com a monocultura. Suprimida a floresta em favor da monocultura, a tendência é que o bioma não se regenere.

“Ao contrário das pequenas roças de policultura indígenas, que mais ou menos mimetizavam as clareiras abertas pela queda espontânea de árvores, os campos agrícolas cultivados para exportação [...] dificultavam a regeneração da floresta”. P. 42. 

** No Brasil, a supressão da floresta é um fenômeno do século XX. As densidades demográficas da América portuguesa se mantiveram em patamares baixos durante todo o período colonial.
“[...] a despeito desses registros de desmatamento local e conflito socioeconômico, tudo leva a crer que a perda maciça e acachapante de floresta seja um fenômeno do século XX. Estimativas sugerem que, até meados do século XIX, os neobrasileiros [...] converteram não mais do que 8% do bioma Mata Atlântica em lavouras, pastos e áreas urbanas. [...]. Concentrando a propriedade da terra e, ao mesmo tempo, aniquilando a população nativa, a colonização portuguesa manteve a densidade demográfica de sua colônia americana em nível irrisório, com exceção dos poucos centros urbanos e seus arredores imediatos”. P. 46. 
“Em Minas Gerais, é provável que a marca de um habitante por quilômetro quadrado tenha sido alcançada na virada do século XVIII para o XIX. [...]. Os sertões do Rio Doce, no entanto, ainda se encontravam parcamente ocupados. Na região compreendida entre o vale do Doce e o vale do Jerquiriçá, entre os atuais estados do Espírito Santo e da Bahia, as matas ombrófilas e semidecícuas ainda se apresentavam espessas mesmo a poucos quilômetros da linha de costa. A planície do baixo rio Doce, que se estende do sul até quase Vitória, era muito esparsamente povoada e as únicas aglomerações de maior vulto eram duas vilas predominantemente indígenas que haviam nascido como reduções jesuíticas – Aldeia Velha e Vilanova de Almeida”. P. 46.
** As florestas do interior ainda eram deixadas para os “índios brabos”. P. 46.

** Livro escrito dentro da proposta da História Ambiental. Abraçando a totalidade das coisas terrenas em mudança, a história ambiental procura unir história natural e história humana em uma grande narrativa. Interface entre história, geografia, antropologia e ecologia. Fundadores: Roderick Nash e Donald Worster. 



Parte 1: Mata Atlântica e Técnica

** A sociedade colonial era uma sociedade da madeira. “Na “Idade da Madeira” colonial, se os machados parassem de gingar, os humanos deixariam de habitar”. P. 59.
>> Mestiçagem genética, cultural, religiosa.
“Na Mata Atlântica, a criação de uma Neo-Europa foi uma tarefa histórica muito mais complexa do que em outros lugares. Na costa atlântica brasileira, os portugueses não impuseram tout court seu genótipo, sua cultura e sua paisagem, mas mergulharam até o pescoço num caldeirão antropogeográfico que fez de seus filhos e netos gente dificilmente aceita em seu próprio país de origem”. P.60. 
“[...] ninguém saía intacto daqueles “criatórios de gente” que eram os núcleos de povoamento neobrasileiros”. P. 60


Capítulo 01. O “mato”: mestiçagem e a construção da alteridade florestal 

** Foi no Brasil que os europeus se sedentarizaram nas terras tropicais. Aqui, deixaram de realizar pura e simples extração de riqueza para criarem riquezas. 

** A decisão de Portugal de colonizar o território americano deveu-se a razões geopolíticas e a pressões econômicas. Por um lado, era necessário ocupar as terras para que elas não fossem perdidas para outras potências coloniais europeias. Ademais, a descoberta das minas de prata peruanas estimulou a imaginação dos portugueses que também sonhavam em encontrar minérios em sua própria colônia. Por outro lado, a Ilha da Madeira vivia, desde a primeira década do século XVI, uma crise na produção açucareira em decorrência do exaurimento dos solos e à escassez de madeira. Desse modo, era conveniente (até porque o açúcar era um produto muito caro) transferir a produção açucareira para o Brasil.

** A sensação de infinitude de recursos instaurou, no Brasil, uma dinâmica permanente de  ocupação de fronteiras.
“A “Ilha” de Vera Cruz era simplesmente muito grande para provocar qualquer sensação mais seria de finitude. De fato, a percepção de que o território possuía uma fronteira florestal eternamente aberta ao avanço da apropriação econômica foi algo decisivo na modelagem da sociedade e da cultura brasileiras. À medida que os solos tornavam-se estéreis e as espécies madeireiras rareavam, a fronteira avançava em direção às novas áreas de mata”. P. 62. 
“[H]avia um importante motivo étnico ou identitário por trás do desflorestamento colonial. Embora sem muita consciência disso, os portugueses e seus descendentes americanos mestiços derrubavam a Mata Atlântica para saber, para definir quem eles eram na nova situação sociocultural”. P. 62/63. 
** Uma das instituições mais importantes na formação do Brasil colonial foi o cunhadismo, isto é, o costume dos povos ameríndios de incorporar estranhos às suas comunidades por meio do casamento de suas filhas ou irmãs.
>> O grupo mestiço, oriundo dos ventres da índias assim casadas nascia sedento por identidade, já que não obtinha reconhecimento pleno nem em uma sociedade (portuguesa), nem na outra (indígena). 
** Ameríndios e portugueses valiam-se de concepções distintas para compreender a relação entre os humanos e a floresta.
  • Ameríndios utilizavam um continuum conceitual para abordar o manejo da floresta. Não há uma separação rígida entre floresta “virgem” e floresta “plantada” ou “antropogênica”. Circuito territorial de migração. Pousio espaçado. Não havia “mata intocada”, mas diferentes graus de regeneração e de desenvolvimento vegetal. Termos: Caá-eté: “mata verdadeira”; Capoeira: área pronta para plantio. Clareira provocada pela queda de árvores ou por sua derrubada. Continuum entre natureza e cultura.
  • Portugueses. Herdeiros da tradição cristã ocidental que dividia o mundo entre coisas “criadas por Deus” e “coisas feitas pelo homem”. As coisas criadas por Deus estavam disponíveis à apropriação e à transformação ("Ide e multiplicai-vos. Dominai a terra, etc."). Dicotomia natureza x cultura.

Transição “mata verdadeira” para “mata virgem” 
<< >> 
adoção de uma nova visão de mundo, de uma nova cosmologia.

“Quando mergulhamos na profundidade significativa dos sistemas nativos, percebemos que esses traços denunciam, sim, uma concepção religiosa que reposiciona aqueles seres do mundo que nós, ocidentais modernos, acostumamo-nos a chamar de “naturais”: para os ameríndios pré-coloniais, eles não passavam de estados corpóreos particulares e transitórios da própria humanidade. [...]. Os portugueses, por outro lado, habitantes de densos e permanentes povoados agrícolas e centros urbanos, trouxeram consigo à América uma cultura que separava e hierarquizava rigidamente humanos e não humanos [...]. A visão de mundo portuguesa estava muito ligada à religião que eles fervorosamente cultivavam. Especialmente em sua forma ocidental, o judaico-cristianismo talvez seja a religião mais antropocêntrica que o mundo já conheceu. Em contraste não somente com o paganismo ameríndio, as também com as antigas religiões asiáticas [...], o judaico-cristianismo estabelecia uma separação radical entre humanidade e natureza. Mais do que isso: insistia que era vontade do deus único que os humanos explorassem a natureza para seu próprio benefício”. P. 70. 
“Na Europa medieval, um ethos cristão era claramente expresso, muitas vezes de modo orgulhoso, no contexto de uma conversão generalizada de florestas, brejos e outras áreas selvagens em lavouras, pastos e vilas”. P. 71. 
“A construção do Estado [português, após as guerras de reconquista], que se confundia com a experiência religiosamente intensa da luta contra os hereges, requereu a conquista e repovoamento de um território tornado bravio. [...]. Na América, a conquista da terra viria a desempenhar um papel ainda mais proeminente. A domesticação de um meio exótico e selvagem, infestado de criaturas bestiais, foi um dos símbolos mais poderosos da colonização portuguesa”. P. 72. 
“[...] os textos científico-filosóficos do Renascimento português frequentemente apresentam um “ordenamento transcendente e imanente em que o homem é, ao mesmo tempo, um Adão-Fausto limitado ao ordenamento de Deus, mas libertado pelo seu poder de saber conquistar os segredos da vida e do mundo”. P. 74. 
“Com a conquista dos povos indígenas e a mestiçagem biológica e cultural, o “separacionismo/hierarquismo” eurolusitano acabou se mostrando mais poderoso do que o “perspectivismo” ameríndio”. P. 74. Será? Lugar da natureza na hierarquia social brasileira. 
“Na medida do possível, os neobrasileiros preservaram a riquíssima herança etnoecológica dos aborígenes: eles conseguiram reter o conhecimento das propriedades das plantas, do comportamento dos animais, dos ciclos do tempo, das ameaças microscópicas. [...]. Mas esse saber, desde o início da colonização e da miscigenação, foi sendo reproduzido dentro de uma nova estrutura mental, dentro de uma outra atitude diante das coisas do mundo. A vocação dos mestiços, dos quais os bandeirantes paulistas são exemplo patente, “era de autoridades de mando e cutelo sobre os animais e matos e gentes, nas imensidades de terras que iam se apropriando em nome de Deus e da Lei”. P. 74/75. 
** Tendência de longo prazo: perversão da cosmovisão indígena >>
>> Expulsar a floresta do domínio das relações culturais; 
>> Exteriorização e virginização da mata, que é transformada em recurso e em ameaça. 
>> Maior grau de integração dos neobrasileiros a um sistema de valores moderno, centrado na ideia de enriquecimento.
>> Visão utilitária sobre a floresta e sobre os seus habitantes.

“[...] o sentido do mato emergia exatamente do fato de ele possibilitar outras coisas que não ele mesmo”. P. 82.


** O viés utilitarista sobre a natureza era indicador da relação visceral existente entre religião e economia colonial. 
“Embora pensadores luso-brasileiros tenham começado a produzir, já no final do século XVIII, algumas das primeiras reflexões modernas nesse campo, a destrutividade ambiental da ação humana que hoje tanto nos preocupa foi um tema essencialmente alheio à mente das pessoas comuns durante todo o período de colonização portuguesa. Com exceção da elite intelectual – na verdade, apenas uma minoria dentro dessa elite, formada em Coimbra sob os auspícios dos governos lusos “progressistas” do final do setecentos – a conversão da floresta em campos agrícolas, pastagem, habitações o outros utensílios e mercadorias não era vista como algo potencialmente disruptivo ou degradante. Muito pelo contrário. A cultura comum europeia e neobrasileira sempre reclamou e celebrou a expansão do povoamento e a progressiva domesticação dos ambientes selvagens”. P. 83. 

As coisas naturais tinham valor enquanto recurso, e somente enquanto tal. P. 84.


** Ao contrário do que ocorre hoje, os homens de ciência não concordavam que o desflorestamento fosse prejudicial. “Purificação de ares”.
“[...] a presença do mato, como immundus, domínio do caos, da sujeira e da impureza, ajudava a definir negativamente o mundus, ou o domínio da ordem, da pureza e da beleza. Assim, o lugar mais importante que o mato ajudava a criar, na América portuguesa, era a sua antítese: a casa humana. Construí-la pressupunha o afastamento da floresta”. P. 84.

“Tudo o que não era devidamente conhecido na nova terra, tudo o que era obscuro, estranho, era do mato, vinha do mato, ia para o mato”. P. 85.


** Mato como espaço do caos, da inexistência de regras. Ao mato faltava a ordem que caracterizava a casa, essa sim, uma ordenação alcançada pela vontade, pelo engenho e pelo esforço humano.
“Quando olhavam para o mato, os neobrasileiros não enxergavam um todo – um conjunto estruturado –, mas apenas uma coleção. Em outras palavras, eles não viam uma floresta, mas uma imensa quantidade de coisas individuais – árvores, arbustos, animais – formando emaranhados mais ou menos caóticos e improdutivos”. P. 87. 
** Mata Altântica: até em função da sua enorme biodiversidade, passava, aos europeus, a impressão de uma diversidade caótica e perigosa. Uma coleção, um amontoado, não uma totalidade.
“A escuridão da floresta abrigava algumas das criaturas mais temidas e rechaçadas por aquelas gerações. Cobras, escorpiões, aranhas, lacraias, mosquitos, marimbondos, pulgas, piolhos, carrapatos, formigas e animais de pé [...].” P. 88.
** Humanos estavam sempre em guerra contra o mato e contra os seus enviados. Era necessária extrema diligência para que o mato não invadisse as casas dos humanos. O mato lhes roubava as colheitas, por meio de emissários como as formigas cortadeiras, ratos, papagaios, lagartas; ele também lhes atacava os corpos e saqueava os armazéns de suas casas, por meio de marimbondos, vespas, aranhas, escorpiões, cupins e mosquitos. 

** Curiosidade fantástica (coisa de Garcia Marquez!): os franciscanos maranhenses moveram uma ação judicial, no tribunal eclesiástico, contra uma colônia de formigas que os andava aperreando. São Luís, começo do século XVIII. P. 90.

** Animalização dos índios, que eram os "humanos do mato". Ameríndios, para José de Anchieta, por exemplo, eram desalmados que viviam como bestas-feras. Subjacente à visão de Anchieta estava o motivo edênico às avessas, isto é, o motivo satânico. Segundo essa mentalidade, os bugres praticavam monstruosidades – nudez, sexo à vista de terceiros ou antropofagia – porque viviam sob o jugo de Satã. 


Animalização dos índios << >> descrição das terras americanas como vazias ou desertas.


** Transformação das relações luso-brasileiras desde 1530. Ocupação das terras americanas com a ajuda de parceiros privados (Capitanias Hereditárias). Expulsão dos ameríndios por invasores os mais diversos.

** Na expulsão dos ameríndios dos seus territórios os portugueses contaram com o auxílio de patógenos, como vírus e bactérias [Jared Diamond: armas, germes e aço]. Os ameríndios não possuíam defesas naturais contra pragas do Velho Mundo, tais como varíola, sarampo, gripe, disenteria, tuberculose e febre tifoide. Os cativeiros impostos por portugueses e neobrasileiros funcionavam como grande viveiro de doenças. 

** Rebeliões indígenas orientadas pelo messianismo. Visão mestiça do Apocalipse.
>>  Mato também se torna sinônimo de espaço de desordem ameaçadora.
“Para os colonizadores, o mato era uma região muito estranha e perigosa, embora, ao mesmo tempo, admiravelmente útil. Uma ameaça e um empório. Era de lá que vinham o índio bravo, a onça, a cobra, as formigas, os mosquitos e outros animais desgraçados. Mas era de lá também que vinham muitos recursos indispensáveis ao ganho da vida (para muitos) e ao lucro (para poucos) – enfim, à economia colonial”. P. 101


Capítulo 02. Fogo: purgação e metabolismo 

** Os incêndios florestais, no Brasil, eram acontecimentos banais. Desde que não colocassem em perigo as lavouras, as fazendas ou outros bens humanos, eles não suscitavam qualquer assombro.

** Hoje, enxergamos os incêndios nas matas como depredação. No Brasil colônia, contudo, fogo estava relacionado à purificação.






Atear fogo à floresta << >> “limpar” o mato. Higienização.





** A agricultura colonial foi essencialmente pirotécnica. Embora alguns agricultores conhecessem métodos como adubação e revolvimento do solo, a maior parte deles limitava-se a derrubar a mata, queimá-la e, sobre as cinzas, plantar cana-de-açúcar, feijão, mandioca, entre outros cultivares.


** “Agricultura de tição”: praticada pelos humanos há tanto tempo quanto a agricultura, em si. Praticada em todo o globo, com maior ou menor intensidade.

“Em toda parte do mundo neolítico que houvesse florestas, o primeiro passo para viabilizar a agricultura sedentária (ou semissedentária) era derrubar as árvores e depois queimá-las, para com isso conseguir nutrientes e um lugar ao sol para as plantas domesticadas”. P. 112.

** Costuma-se descrever a agricultura de derrubada e queimada como uma forma irracional de produzir. O autor salienta que, ao contrário, a despeito do que pensavam os intelectuais da época, essa era a forma mais racional para os ameríndios e neobrasileiros e a menos impactante para a Mata Atlântica:

01) Arar a terra significava ter de remover todos os tocos de árvores que sobrassem depois da queima. Remover tocos de árvore, contudo, é um processo intensivo em mão-de-obra. 

02) Arar e estrumar a terra também eram processos intensivos em mão-de-obra e em capitais. 

03) Havia pouca disponibilidade de mão-de-obra e de capitais no Brasil colônia. 

04) A intensidade e a duração das chuvas no Brasil provavelmente carreariam todo o adubo para os corpos hídricos, lixiviando o solo. 

05) Os solos da floresta tinham uma fina camada de material orgânico, uma fina camada fértil. Arar o solo não era produtivo. Por isso, os neobrasileiros preferiam a enxada. 

06) Deixada em paz, em descanso, a Mata Atlântica se regeneraria em 30 anos.   

** A agricultura de derrubada e queimada exigia o nomadismo dos produtores. Também só era possível em densidades populacionais muito baixas, situação em que a clareira aberta para a roça é muito menor que a área de floresta que a circunda.
>> A agricultura de derrubada e queimada era ambientalmente compatível com os números e a distribuição espacial dos ameríndios. 
>> A agricultura de derrubada e queimada também era compatível com os números e a distribuição espacial dos neobrasileiros. Mas não era compatível com aumento populacional e ou com a produção para mercados (internos ou internacionais). 
  • Formação de clareiras muito grandes; 
  • Adoção de período muito curto de pousio.  
“[...] há, nos sistemas de corte e queima, um limite demográfico que, uma vez ultrapassado, precipita um processo de dilapidação ambiental e despovoamento”. P. 124. 
“Apesar de perdulária, a queimada era o único método disponível para se acessar as gigantescas reservas de nutrientes químicos que, de outra forma, só seriam liberados no solo muito lentamente, a partir de clareiras e decomposição espontâneas. Não era o solo per se que os agricultores exploravam, portanto, mas o complexo solo-vegetação”. P. 125
** Como observou Von Martius, no Brasil não se fazia rotação de culturas, mas rotação de florestas. A vegetação florestal funcionava como um estoque de ativos (isto é, como um capital) para os agricultores coloniais.
“Alegando “cansaço” de sua terra, os senhores de engenho podiam requisitar ao governo – e tinham boas chances de conseguir –, pelo menos nos primeiros tempos – uma nova gleba. As autoridades coloniais mais sensatas reconheciam que somente o fechamento da fronteira florestal – além do aumento do preço do trabalhador escravo – poderia induzir os senhores de engenho a um cultivo mais intensivo dos terrenos arroteados”. P. 131.



Capítulo 03. Cana-de-açúcar: a usina biológica de energia 


** A cana-de-açúcar transformou a economia brasileira e a economia mundial. 
  • No Brasil, a cana nunca deixou o lugar de principal gênero comercial cultivado sobre as cinzas das florestas costeiras. 
  • Mesmo se tomarmos os parâmetros econômicos mais recentes, pode-se dizer, em geral, que a cana-de-açúcar nunca deixou de ser um produto importante: na passagem do século XVIII para o XIX, o açúcar representava mais de 1/3 das exportações nacionais. 
  • O açúcar funcionou como moeda até o começo do século XIX.

“[...] nenhuma outra planta teve tanta influência na emergência da modernidade – e do Brasil moderno – como teve a cana”. P. 134. 


** Domesticação da cana-de-açúcar:

  • Gramínea selvagem da Nova Guiné chamada Saccharum robustum, de caules grossos e longos, mas pouca sacarose. Vivia nos bancos lodosos dos rios e, com menos frequência, em encostas úmidas.
  • Há 5.500 anos, os aborígenes da Nova Guiné haviam domesticado a Saccharum robustum e produzido cultivares com maiores quantidades de sacarose.
  • Os cultivares de Saccharum robustum foram levados à Ásia continental, onde foram hibridizados com outra espécie selvagem do mesmo gênero, a Saccharum spontaneum. Coma hibridização, a gramínea resultante – Saccharum officinarum – pôde ser cultivada em solos bem drenados das savanas costeiras.
  • Saccharum officinarum impulsionou a fabricação do açúcar, arte inicialmente desenvolvida na Índia e na China. Dessa região, o saber foi difundido para o Oeste.
  • Os invasores muçulmanos introduziram a Saccharum officinarum na Europa, no século VIII, na Península Ibérica. A indústria açucareira hispânica permaneceu em operação até o século XVI, quando foi inviabilizada pela concorrência com o açúcar da América. 
“Plantas e animais domesticados são técnicas vivas ou biotécnicas. Eles são artefatos biológicos modelados na interação entre humanos e não humanos para servir a fins cultural e historicamente variáveis”. P. 134.

** Na época da ocupação muçulmana da Península Ibérica, o mundo islâmico estava precisamente na interseção entre a Europa, a Ásia e a África. A cana-de-açúcar era apenas um entre vários outros vegetais exóticos conhecidos e cultivados pelos muçulmanos em território europeu. Outras: arroz e algodão.
“[...] a indústria mediterrânea foi um elo importante na longa cadeia de difusão e desenvolvimento do complexo do açúcar, desde seu início, na Nova Guiné – quando a cana ainda era uma planta nativa ajardinada –, até a fase de agroindústria, primeiro instalada nas ilhas hispânicas do Atlântico e depois para os neotrópicos”. P. 137.

** 1450: a cana-de-açúcar já alimentava os engenhos situados na Ilha da Madeira. 
  • A Ilha da Madeira desbancara a Sicília e o Chipre como maior produtora mundial de açúcar.
  • A produção do açúcar na Ilha da Madeira era diferente daquela praticada na Sicília e no Chipre. Aproveitamento do potencial da floresta.
“Foi na Madeira que a cana encontrou a sesmaria, a floresta e o fogo, seus futuros parceiros no complexo socioecológico que viria a conectar [...] o Brasil ao sistema econômico mundial. [...]. Na Madeira, o uso da floresta já era tipicamente moderno: por volta de 1510, pouco mais de três décadas depois do boom açucareiro na ilha, estima-se que 160 quilômetros quadrados de floresta já tivessem sido devastados, mais da metade do estoque acessível. Para realizar esse trabalho, cativos foram trazidos das ilhas Canárias [...] e, posteriormente, da costa ocidental africana. Os capitais eram, em sua maior parte, de comerciantes e financistas genoveses, que já vinham investindo no setor, no âmbito mediterrânico”. P. 138/139.
** A cana-de-açúcar siciliana (chamada “cana da terra” ou “cana crioula”), via Ilha da Madeira, foi a primeira espécie a ser cultivada no Brasil. Até o começo do século XIX, ela permaneceu como a única variedade de cana-de-açúcar plantada na colônia. 

** No final do século XVIII e início do século XIX, a Cana de Caiena, mais produtiva (tinha mais suco e seu bagaço era mais adequado ao uso como combustível), acabou caindo nas graças dos produtores brasileiros. 
  • A cana de caiena foi desenvolvida por botânicos franceses.
** A cana-de-açúcar se adaptou bem na região costeira do Brasil. 
  • Para produzir mais sacarose, a cana precisava de um solo com menor disponibilidade de água e de nutrientes (solos muito férteis ou muito úmidos não produziam a melhor cana-de-açúcar). Menos mão-de-obra.
  • Cana-de-açúcar se reproduz vegetativamente, isto é, “pega de galho”.
** A sua bioquímica impunha que, depois de cortada, a cana-de-açúcar fosse prensada em até 48 horas, sob pena de azedar. Desse modo, ao lado da produção agrícola de cana-de-açúcar, houve a necessidade de edificar instalações para o seu processamento: os engenhos propriamente ditos. 
  • Moendas movidas a água ou a tração animal (boi);
  • Escravos colhiam a cana, alimentavam o fogo, conduziam os bois no transporte da carga e na moenda da cana e, às vezes, cristalizavam o açúcar.
“Para acompanhar os bois na faina, os senhores de engenho compravam trabalhadores humanos – escravizados, no começo, na própria América e, depois, na costa ocidental africana. [...]. Apesar da condição cativa desses trabalhadores, havia um nível substancial de especialização no espaço produtivo do engenho. Corte da cana, transporte, esmagamento e cristalização / purificação do caldo eram as quatro etapas básicas do processo, todas envolvendo instrumentos e conhecimentos particulares. Alguns deles [...] estavam longe de ser triviais. A cristalização, especialmente, exigia um timing muito apurado; não é à toa que a supervisão do processo era frequentemente confiada a trabalhadores livres assalariados – muito bem pagos, por sinal, pelo menos no século XVI, quando a escassez de know-how levou à importação de profissionais da Madeira –, o mestre-de-açúcar”. P. 145. 
** A economia do açúcar era muito dependente da produção de lenha, de farinha de mandioca, de charque, do comércio de gado e da importação de escravos. Amplas redes de abastecimento se formaram ao redor dos centros produtores de açúcar.


A revolução do açúcar foi, ao mesmo tempo, uma revolução na esfera da produção e uma revolução na esfera do consumo.


** A evolução ocorreu de tal modo que o consumo de açúcar fosse fisiologicamente estimulado em mamíferos. Mas além do estímulo biológico, houve o estímulo social para a universalização do consumo do açúcar.
  • Inicialmente, as frutas e o mel eram as únicas grandes fontes de açúcar concentrado de que dispúnhamos.
  • Quando começou a ser produzido, o açúcar era muito caro, sendo consumido apenas pelos europeus mais ricos;
  • "Percolação social” do açúcar que, com maior oferta e preços mais baixos, começou a ser consumido por pessoas remediadas, mas não necessariamente ricas; 
  • Entre 1645 e 1680 o preço do açúcar caiu 70% na Inglaterra.
  • Até meados do século XIX, nenhuma outra mercadoria teve o seu consumo tão incrementado.
** A cana-de-açúcar é uma das plantas fotossinteticamente mais eficientes do planeta. 
“Cultivar cana era um dos meios mais eficientes que então existiam para converter energia solar em energia química diretamente utilizável pelos seres humanos”. P. 151. 
“[...]. só nos resta jogar a pá de cal sobre a velha teoria dos “ciclos econômicos”. Sabendo que a cana nunca deixou de ser um cultivo importante – embora nunca mais o líder na pauta de exportações, desde meados do século XIX –, é difícil resistir à tentação de postular que não houve qualquer solução de continuidade ente a época em que rústicos veleiros de madeira transportavam sacarose semi-refinada para Portugal, e o período atual, em que sofisticados cargueiros de aço conduzem etanol para os Estados Unidos da América”. P. 151/152
** A cana utilizava um gigantesco estoque de energia oferecido pela Mata Atlântica, em forma de cinza para adubação. Mas além desse uso, a produção açucareira também utilizava madeira para construir a maquinaria do engenho, para produzir as caixas que embalavam o açúcar e para alimentar o fogo de cozimento e cristalização do caldo da cana. 
“No medievo e na baixa modernidade, a demanda de combustível da agroindústria açucareira era compatível apenas à da metalurgia, o que provavelmente havia impedido sua difusão às áreas do Mediterrâneo muçulmano climaticamente adequadas ao crescimento da cana, porém muito desflorestadas. Com raras pausas, os engenhos coloniais queimavam lenha por até nove meses por ano, seis dias por semana e mais do que vinte horas por dia”. P. 154.
** Mesmo detendo o monopólio do fornecimento de produtos industrializados para a colônia, Portugal não se industrializou. Era mais um entreposto comercial que uma metrópole industrializada. A única indústria que se desenvolveu barbaramente no período foi a construção naval. 



Capítulo 04. Construção naval: a madeira e as redes de comunicação


** No Brasil colônia, as embarcações eram essenciais para o comércio interno ou internacional; fluvial ou marítimo. Os navios de madeira foram a grande ferramenta usada para a expansão, a dominação e a comercialização de riquezas, financiada e militarmente protegida pelos Estados nacionais de então.

“[...] é impossível dissociar [...] produção de açúcar [...] e construção naval. Esses foram os dois pilares gêmeos da forma particular de imperialismo inventada pelos portugueses no século XV, com a colonização das ilhas atlânticas, e consolidada com a ocupação agrícola do Brasil, no segundo quartel do século XVI”. P. 160.
** Todas as etapas da produção do açúcar demandavam transporte fluvial: a importação de maquinário, o transporte da cana para os engenhos, o transporte do açúcar, dos engenhos para os portos brasileiros e mundiais.

** A exportação de madeira para construção de embarcações era muito cara. Desse modo, a maior parte da frota que se utilizou das árvores da Mata Atlântica foi produzida in loco, na colônia.


  • Experiência, conveniência e know-how. O Brasil já era utilizado como ponto de parada para conserto de embarcações europeias ou asiáticas que cruzavam os oceanos. Tornou-se, também, um ponto de troca de mercadorias.
  • Estaleiros brasileiros tinham a grande vantagem de beneficiar as madeiras tropicais localmente, sem a necessidade de fazê-las cruzar o Oceano Atlântico. Dificuldades: parcos insumos, tais como tecidos para as velas, pregos, âncoras e demais ferragens, que tinham de ser importados.   
“Em meados do século XVII, a Coroa ordenou a construção de um navio de guerra por ano, nos estaleiros da Bahia e do Rio de Janeiro. Embora essa meta nunca tenha sido alcançada, ela indica claramente a intenção da Coroa de promover a indústria naval na América”. P. 165.
** Os arsenais régios eram responsáveis por apenas uma pequena fração das embarcações produzidas no Brasil. Os estaleiros privados eram muito produtivos e competitivos.
“Para Shawn Miller, a contribuição brasileira à marinha mercante portuguesa foi, proporcionalmente, tão substancial quanto aquela das treze colônias à frota britânica antes da Revolução Americana, algo em torno de dois terços”. P. 166.   
“Essa indústria abastecia não apenas o sistema de exportação, mas também – e, provavelmente, de modo ainda mais importante – o sistema de cabotagem. Era com madeira da Mata Atlântica que se construíam as embarcações que realizavam o comércio costeiro na América portuguesa. [...]. No final do setecentos, os povoados, vilas e cidades costeiras já dependiam em elevado grau do intercâmbio costeiro para sua vida cotidiana [...]. Atraso ou interrupção desse comércio podia significar fome [...]. Quase não existia comunicação terrestre entre os povoados propriamente litorâneos da Mata Atlântica”. P. 167.   
“[...] as canoas tornaram-se, já no século XVIII, fulcrais ao sistema de expansão dos paulistas, quando sua energia foi canalizada para aventuras comerciais [...] mais ‘civilizadas’. As monções – como eram chamadas as frotas sazonais que faziam o comércio fluvial entre São Paulo e as minas do rio Cuiabá, descobertas em 1718 – constituíram capítulo importante na história da progressiva incorporação de novos territórios e biomas à economia da América portuguesa”. P. 169.
** A construção naval – de pequenas canoas às naus de guerra – movimentava muita gente, muitos capitais, muitos recursos naturais. Tratava-se de uma verdadeira “indústria de base” instalada na colônia e estimulada pela metrópole (!)



Capítulo 05. Escravos africanos: os conversores humanos de energia


** Açúcar << >> Escravidão. 


“Aproximadamente dois terços dos escravos africanos transportados para o Novo Mundo foram vendidos para colônias açucareiras”. P. 175.
** O colapso das sociedades ameríndias não foi favorável aos portugueses. Com subpovoamento rural, a metrópole simplesmente não dispunha de braços para o projeto de colonização agrícola. 

  • Declínio da população ameríndia >> estímulo ao tráfico negreiro.
** Os ameríndios eram mais suscetíveis às doenças trazidas do Velho Mundo. Os africanos, por sua vez, eram mais resistentes, exceto em relação à varíola. Indígenas acabaram se tornando os escravos dos pobres. Um escravo indígena custava 1/3 do preço cobrado por um negro. 
“Em geral [...], devido ao seu longo [...] contato prévio com os complexos epidemiológicos do norte do continente da Europa mediterrânea e, por extensão, de toda a grande faixa eurasiana até a China, os habitantes da África tropical não eram presa fácil para as doenças temperadas do Velho Mundo. Pelo contrário, eles tinham suas próprias doenças contagiosas, como a malária, a febre amarela, a doença do sono, as amebíases e outras. Foram elas, em grande medida, as responsáveis por manter a África livre do colonialismo territorial europeu, pelo menos até o século XIX”. P. 177.
** Importação de uma “ecologia negra”, altamente influenciada pelo contato com as florestas >> O contato dos africanos com as doenças tropicais, e a sua resistência a tais doenças, foram obtidos por meio da sua interação milenar com as florestas. 

** A maioria dos africanos que foram traficados para o Brasil veio das regiões bantas do Congo-Angola. Estima-se que o percentual de bantos importados pelo Brasil seja de 70%. Exceção: Bahia e regiões açucareiras. 


  • Luanda. Grande porto escravista do período colonial. Fundado e fortificado em 1576, embora o tráfico negreiro já vicejasse na região bem antes disso. Outros portos: Benguela, Cambinda, Loango. “Especializados” em tráfico de bantos.
  • Costa da Mina e Golfo do Benin. Iorubás, mandingas, jalofos, ardras.
“[...] aquele know how ecológico que os cativos africanos traziam de seu continente natal atenuou-lhes muito o sofrimento geográfico do desterro, já que desembarcar na costa brasileira, de um certo modo, não era senão alcançar a outra margem do grande “rio Atlântico”.” P. 184.
** Similitude entre a ecologia da Mata Atlântica e a ecologia das florestas africanas. Proximidade das espécies americanas e africanas. Isso permitiu que os escravos ficassem conhecidos como exímios conhecedores da botânica médica brasileira. 

** Pulverização da propriedade escrava. Entre 30 e 50% da população colonial logrou alcançar a condição de senhores de escravos. Africanos viraram sinônimo de trabalho: todo e qualquer trabalho.

“[...] a compra de um cativo era uma aspiração bastante plausível e que, caso concretizada, proporcionava um retorno seguro e um cômodo estilo de vida”. P.188.
** Era possível alugar o seu escravo. Desse modo, ter um escravo também era um investimento seguro e rentável na América portuguesa, era formar um capital.
  • No século XIX, 40% da população da colônia era composta de escravos.
** Seres humanos são energeticamente eficientes. Isso quer dizer que conseguem produzir muito trabalho com quantidades relativamente pequenas de energia. 
“Controlar grandes contingentes humanos significava controlar um exército de eficientes conversores de energia”. P. 190.

“Em todas as sociedades pré-industriais, a brutalidade da escravidão foi a solução mais eficiente para o problema crônico de escassez de energia – solução aplicada, inclusive, nas florestas da África. [...]. Embora o tráfico atlântico de escravos, a se iniciar no século XVI, tenha sido um elemento poderoso na reconfiguração das sociedades africanas, tudo indica que elas já eram escravistas havia muito tempo, praticando, inclusive, o comércio de cativos”. P. 191.
 
“O comércio de longa distância também era realizado pelos africanos: antes da expansão transatlântica de escravos, houve a exportação transaariana, muito ligada à expansão do islão. O Alcorão ensina que os infiéis podem ser legalmente escravizados e vendidos”. P. 192.
** O uso de combustíveis fósseis como solução para o problema energético permitiu a abolição da escravidão. 
  • Semelhanças entre a escravidão e o fossilismo: ambos são fontes externas de energia, impõem sofrimento sobre outros seres humanos e estatuem um regime desigual de trocas.
“Os historiadores e cientistas sociais brasileiros adoram salientar a exploração colonial realizada por Portugal sobre o Brasil, mas raramente tocam no assunto da pilhagem que os luso-brasileiros perpetraram na África – uma pilhagem baseada no comércio ecologicamente desigual. [...] Assim é que Angola foi espoliada de sua própria biomassa humana e de seu próprio tecido sociocultural”. P. 193.
** As possessões africanas da Coroa portuguesa eram destinadas a abastecer o Brasil. 

** Resistência:

“Se o escravismo utilizava o próprio corpo humano como estratégia de acumulação de riqueza, então devemos conceber o corpo também como o locus privilegiado da resistência política dos escravizados. [...] suas estratégias de resistência eram eminentemente corporais: desde violência individual contra senhores, passando pela capoeira, até tentativas de aborto e suicídio, elas desafiavam o sistema técnico dominante por meio da subversão das coerções físicas e prescrições ideológicas que buscavam disciplinar o corpo como bem de capital”. P. 194.
** Fuga para o mato >> formação de mocambos e quilombos. Utilização da geografia e da ecologia dos matos e dos sertões como forma de proteção. Havia cultivo de gêneros agrícolas nos quilombos. Mas em muitos casos, eles continuavam dependentes da economia colonial e se estabeleciam como fornecedores de produtos florestais.

** Relação entre escravo negro e direitos >> 

“Era ainda mais comum que aos escravos fossem concedidos pequenos tratos de terra para o seu cultivo próprio. Isso era do interesse dos senhores, evidentemente: deixar que suas máquinas buscassem seu próprio combustível sem se preocuparem com isso. Por isso, a prática tornou-se lei, no começo do século XVIII. Por Carta Régia de 11 de janeiro de 1701, a Coroa determinou aos senhores que concedessem aos seus escravos o sábado como dia livre para que procurassem o seu sustento. Domingos e dias santos também eram frequentemente concedidos. Muitos cativos conseguiam extrair um pequeno excedente dessas roças e o encaminhavam para venda – muitas vezes para seus próprios senhores. Mercados urbanos também eram destinos comuns. Além das roças de alimentos, criavam porcos, galinhas e cavalos para aluguel. Há, inclusive, notícias de escravos plantando algodão. Legalmente, escravos não podiam ser proprietários de nada; na prática, a história era outra. Com o tempo, criou-se, no direito consuetudinário, a prerrogativa de o escravo possuir dinheiro. Eles o guardavam para comprar sua alforria, a alforria de seus filhos e até mesmo – paradoxalmente – outros escravos (quer dizer, a sua propriedade)”. P. 198/199.
** As maiores oportunidades para que os escravos alcançassem a sua liberdade estavam no meio urbano. Nas cidades, os escravos eram postos “ao ganho”. Podiam alugar os seus serviços e tinham a obrigação de pagar ao seu senhor uma quantia fixa por semana, ou seja, aos poucos podiam acumular recursos.



Capítulo 06. Mandioca: o pão da terra


** Para subsistir, os agrupamentos humanos pré-moderna necessitam muito de amiláceos que, embora sirvam como "acompanhamento da proteína", constituem base da sua alimentação. A forma de produção ou de obtenção dos amiláceos tende a exercer um papel estruturante nas comunidades humanas.

“[...] a maioria dos povos agrícolas pré-industriais subsistia à base de carboidratos complexos geralmente obtidos em um ou, quando muito, dois cereais ou tubérculos principais". P. 205. 


Alimento básico >> Agente social


** A América colonial portuguesa tinha uma relação pré-moderna com a alimentação. Por sua vez, o papel de alimento básico -- não somente dos escravos, mas de toda a população colonial -- era exercido pela mandioca. A mandioca tem uma produtividade de calorias por hectare maior do que a do arroz, do milho e do trigo.


** Mandioca selvagem >>

  • A mandioca selvagem é uma planta adaptada às áreas de transição entre floresta e cerrado. Ela é dependente do regime ecológico do fogo, dado que se reproduz em áreas abertas e ensolaradas, desaparecendo quando a vegetação se torna densa. 
  • Assim como ocorre com a cana, a mandioca domesticada também é produzida vegetativamente, ou seja, os cultivadores semeiam pequenos pedaços cortados do caule das plantas crescidas, fazendo-as rebrotar.
  • A capacidade de reprodução vegetativa não fazia parte da biologia selvagem da mandioca. Essa característica foi intencionalmente selecionada pelos seus agricultores, que eram os paleoíndios amazônicos, cerca de 8 a 10 mil anos atrás.
  • A mandioca "viajou", com os intercâmbios de produtos e migrações humanas, até o sudeste do Brasil lá chegando entre 3.6 mil e 4 mil anos atrás.
  • Hoje, a mandioca pode ser cultivada sexuada ou assexuadamente.  
“Herdado de seu ancestral que vivia nos ecótonos floresta-cerrado, o sistema reprodutivo da mandioca domesticada estava quase perfeitamente adaptado aos ciclos de derrubada e queimada dos agricultores itinerantes". P. 208.
  • A mandioca é uma das plantas mais venenosas do mundo. O suco era utilizado, inclusive, para matar saúvas. Por isso, o fogo era essencial na sua apropriação pelos humanos. O cozimento garantia um alimento seguro.
“O complexo cultural da mandioca foi uma das maiores contribuições dos povos Tupi-guarani ao sistema técnico neobrasileiro -- evidentemente, para a própria desgraça das culturas nativas. Embora represente [...] uma notável continuidade histórica em relação ao passado pré-colonial, o uso alimentar da mandioca acabou se tornando um instrumento de subversão da antiga ordem. [...]. Uma vez de posse do conhecimento do cultivo e processamento da mandioca, os europeus deixaram de ser visitantes para se tornarem colonizadores; eram então capazes de se sustentar na terra, produzindo o seu próprio alimento sem ajuda dos antigos moradores". P. 210.
  • Boa parte da produção de farinha, em especial no Rio de Janeiro de até meados do século XVII, era usada para a aquisição de escravos africanos.

Parceria histórica entre a cana-de-açúcar e a mandioca


** A mandioca não competia com a cana pelas mesmas terras. Enquanto a cana-de-açúcar preferia regiões úmidas ou alagadiças; a mandioca preferia regiões secas, bem drenadas e crescia mesmo em solos pobres; enquanto a produção da cana voltava-se ao mercado internacional, a produção de mandioca visava à alimentação da população dos engenhos. Em algumas regiões, os agricultores alternavam a cana-de-açúcar e a mandioca para recuperar a fertilidade do solo.

** Alta do preço do açúcar >> Menos áreas para a produção de mandioca >> Dependência dos engenhos em relação aos fornecedores de alimentos.
“A farinha de mandioca, o "pão da terra", era produzido em quase todos os domicílios coloniais, desde o grande engenho de açúcar até a roça mestiça". P. 214. 


Capítulo 07. Vilas e cidades costeiras: centros de controle e gestão

** Cartórios e tabeliães urbanos eram instrumentos fundamentais da colonização portuguesa do Brasil, já que essa colonização baseava-se na distribuição e registro de terras.

“[...] os imbróglios fundiários acabavam funcionando como elemento estruturante do poder urbano sobre os habitantes do campo. Agindo de forma desleixada, as autoridades coloniais apenas raramente exigiam a confecção de mapas que estabelecessem os limites das sesmarias. Os frequentes conflitos que emergiram entre rurícolas com terras confinantes deveriam ser necessariamente resolvidos através das instituições de poder criadas e chanceladas pela Coroa -- instituições fisicamente sediadas nas vilas e cidades. Embora não fosse uma estratégia intencional e, com efeito, apesar dos perigos que trazia à própria governabilidade colonial -- pelo menos em nível local --, a generalizada desordem fundiária provocada pelo desmazelo régio criava vastos espaços rurais que dependiam da intermediação urbana para deslindar seus impasses e, assim, desobstruir a economia agrária". P. 220/221. 

** Os conflitos fundiários estão registrados no DNA do Brasil. Não havia demarcação precisa das terras dos colonos. Por isso, sobreposições eram comuns. Como resolver o problema? 1) à bala; 2) mediante intermediação das autoridades coloniais (espaço para desenvolvimento de relações de compadrio).

  • Os conflitos de terras "forçavam" certa lealdade dos colonos às autoridades coloniais. As regras válidas, afinal, seriam aquelas instituídas pela Coroa; as autoridades capazes de intermediar os conflitos, aquelas indicadas pela Coroa.
  • Cidades, vilas, feitorias coloniais e demais assentamentos humanos. "Poder" e "autoridade": palavras-chave para descrever os assentamentos coloniais portugueses. Os assentamentos urbanos nas colônias portuguesas (todas elas) tinham a função de controlar e de gerir o território. 
“De um só golpe criava-se a urbes como lugar de exercício de poder sobre os espaços extramuros, a figura do proprietário fundiário legalmente reconhecido pela Coroa -- embora o reconhecimento por parte dos outros proprietários [...] pudesse ser difícil de conseguir --, a autoridade dos humanos sobre os não-humanos". P. 221.   
"Até fins do século XVI, os europeus e seus descendentes que pudessem se arrogar o título de "brancos" ainda podiam fixar residência nas aldeias indígenas, mas daí em diante ficariam obrigados a morar nas vilas e cidades. Era uma clara tentativa de definir o urbano como o locus da civilização, relegando o que era selvagem às aldeias, ao mato, ao sertão". P. 222/223. 
  • Inicialmente, era difícil manter separadas cidades e floresta. Ataques de índios bravos e rebrota eram comuns. Aos poucos, contudo, cidade e floresta foram se afastando, especialmente mediante o adensamento dos assentamentos humanos coloniais.

** Vilas e cidades consumiam recursos e concentravam funções jurídicas e administrativas. Considerando a imensidão do território da colônia, o número de vilas era reduzido. As autoridades metropolitanas claramente não controlavam todo o território sob a sua jurisdição.

"Por muitas décadas ainda as vilas e cidades continuariam existindo nesse paradoxo de concentrar muito poder e não conseguir, muitas vezes, espalhá-lo e materializá-lo sobre o território que juridicamente lhe cabia gerir" P. 228. 
"[...] as vilas sempre exerceram um efeito cultural e simbólico profundo, principalmente nas regiões de fronteira [...]. O objetivo declarado era que essas formas urbanas imprimissem, na mente dos índios, colonos e súditos das Coroas rivais um sentido de presença portuguesa. Sentir e sentir-se sob a batuta lusa era mais fácil quando se via ou se morava na vila lusa. [...]. Considerando a crônica escassez de recursos econômicos de Portugal, essa seria mesmo a melhor estratégia de defesa e controle do território em longo prazo". P.228/229. 
"A despeito da variação no alcance do seu poder e na sua eficácia administrativa, os núcleos urbanos mantiveram seu papel fundamental de centros da gestão colonial da sociedade e do território americanos. Embora as câmaras municipais fossem ocupadas por vereadores eleitos [...], sua própria constituição representava a aliança entre os colonos e a autoridade d'el-Rei.". P. 229. 

** "Cabeças de capitania": capitais costeiras onde residiam os governadores. Somente essas capitais poderiam se tornar sede de bispados. Salvador, Olinda, Rio de Janeiro, São Luís, Belém, Mariana e São Paulo. Irradiavam as políticas espaciais, econômicas, sociais e militares do governo metropolitano luso.  

"Distribuição, registro e adjudicação de terras, zoneamento do uso da terra (incluindo reservas florestais), construção de estradas, pontes e fortificações, cobrança de impostos alfandegários, imposição policial da ordem, recrutamento militar, política catequética e indigenista, tudo partia da [...] burocracia instalada nas vilas e cidades brasileiras". P. 230. 

** "Repartições": Grandes regiões submetidas à jurisdição de cidades. Repartição Sul, sede no Rio de Janeiro: incorporava as capitanias de Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Vicente; Estado do Maranhão, sede em Belém: englobava as capitanias do Ceará, Maranhão e Pará. Estado do Brasil, com sede em Salvador: englobava todo o restante.

  • Não por acaso, Rio de Janeiro, Salvador e Belém eram os principais centros polarizadores da economia colonial. Funcionavam como postos de troca entre mercado interno e externo.
"Ao redor dessas cidades estruturavam-se, como bacias de drenagem, as três principais regiões econômicas do Brasil. A primeira delas, no extremo norte [...] era polarizada por Belém do Pará, que, coadjuvada por São Luís, drenava os produtos provenientes das povoações ao longo do vale do rio Amazonas, bem como das costas do Pará, Maranhão, Piauí e Ceará. Desses dois portos partiam, principalmente, as frotas carregadas de cacau e [...] de algodão. O segundo grande complexo regional [...] organizava-se ao redor de dois dos mais antigos centros de povoamento da colônia, Recife e Salvador. As capitanias costeiras, desde o Rio Grande  do Norte até o Espírito Santo, mandavam seus produtos para essas duas cidades, bem como a extensa hinterlândia de criação de gado que se estendia desde o sertão nordestino até o norte de Minas Gerais. O porto pernambucano [...] enviava a Portugal [...] madeiras de construção [... e], açúcar; já do porto baiano partiam, majoritariamente, açúcar, tabaco e pau-brasil. O terceiro sistema regional estava focado na cidade do Rio de Janeiro. Ao norte, sua esfera de influência sobrepunha-se à de Salvador, na altura do Espírito Santo, na costa, e em Minas e Goiás, para o interior. O sul de Goiás e de Mato Grosso, assim como a maior parte de Minas e as capitanias do sul estavam orientadas em direção ao Rio. Até meados do setecentos, o porto do Rio escoava para o reino a importante produção aurífera das capitanias do centro-oeste; com o declínio da atividade, o açúcar e outros produtos alimentícios quase igualam o valor exportado em ouro, no fim do século". P. 231/232.

** Separação / hierarquização entre humanos e floresta. Conceito com repercussões instrumentais >>

"No processo de formação biocultural da etnia neobrasileira, uma concepção "perspectivista" do mundo, própria dos povos ameríndios, foi sendo gradativamente substituída por uma concepção "separacionista / hierarquizante", trazida pelos portugueses. À medida que essa substituição avançava, a floresta ia sendo expulsa do domínio das relações propriamente culturais; ela passava a ser considerada um outro selvagem formado como o inverso da identidade civilizacional portuguesa e neobrasileira. Nascia o mato." P. 232.  
"A ideia do mato criava uma pervasiva alteridade ambiental. [...]. A economia colonial brasileira baseava-se na contínua incorporação de materiais florestais, lenha, madeira e cinzas intensivamente metabolizadas no processo produtivo açucareiro. Por isso, na mente dos colonizadores, o mato era uma coisa separada deles e manipulável por eles, ao mesmo tempo, entretanto, que manifestava a transcendência própria da criatividade divina". P. 233. 

** A cultura medieval ibérica estava adaptada ao regime de fronteiras, dado que havia si do forjada no processo de reconquista dos territórios ocupados pelos mouros. A mentalidade lusa de pilhagem da floresta americana era vista como um processo necessário de purificação. 

"As sombrias florestas habitadas por gentios satânicos eram purgadas com fogo. [...]. O arroteamento incendiário foi, durante todo o período colonial, o modo dominante de agricultura praticado na América portuguesa. Os agricultores derrubavam e queimavam um trato, plantavam sobre as cinzas e colhiam frutos generosos, por alguns anos. Abandonavam-no, então, para repetir o mesmo procedimento no trato mais à frente, enquanto esperavam o anterior sem ser reocupado pela mata". P. 234. 
"[...] a conversão da biomassa florestal em fertilizante agrícola alimentou o grande sistema de espoliação ecológica do Atlântico luso-brasileiro. A primeira perna desse sistema era a exportação de energia refinada do Brasil para a Europa: o açúcar. A outra perna era a exportação de conversores energéticos da África para o Brasil: os humanos escravizados. [...]. Juntamente com a biomassa da floresta, os escravos constituíram a base do sistema energético de formação colonial". P. 235.  
"[...] Essa conexão entre os mercados interno e externo era orquestrada pelas cidades litorâneas que, para isso, concentravam a maior parte da burocracia e do aparato de regulação e controle português. A partir desses centros urbanos, o território era gerido no sentido de preservar os recursos florestais aos grandes produtores, donos de maior número de escravos e, portanto, mais capazes de produzir em escala e gerar receitas para a Coroa". P. 235. 
"[...]. Sem uma Marinha de Guerra poderosa, nenhum Estado do Antigo Regime podia sustentar os seus domínios ultramarinos [...]. Assim, no final da era colonial, Portugal tentou ressuscitar sua combalida esquadra e, para isso, tentou tornar efetivas as prerrogativas legais que, desde o começo da colonização, vigoravam sobre a extração de certas árvores especialmente úteis à construção naval [...]. Contudo, mesmo que a colônia ainda abundasse em matas, elas já se encontravam relativamente distantes dos centros mais antigos de povoamento, desflorestados que estavam por conta de mais de duzentos anos de arroteamentos e extrações para os mais diversos usos. O acesso a essas reservas de mata mais próximas tinha que ser disputado com os outros agentes econômicos consumidores da floresta". P. 236.



Parte 2: Mata Atlântica e Política


** A Mata Atlântica não foi um simples palco, mas um conjunto de agentes da trama sociopolítica da conquista e da colonização da América pelos portugueses. 

"O espaço geográfico pode ser visto como uma arena onde se veiculam diversos e conflitantes sentidos da vida". P. 238. 
"A floresta acabava se tornando escassa, embora não somente ou mesmo principalmente devido a uma redução material  [...], mas, primordialmente, porque suas possibilidades de apropriação eram múltiplas. Mesmo no fim da era colonial, a questão florestal nunca girou em torno da exaustão das matas em si mesmas, mas em torno da repartição dos custos e benefícios do desflorestamento entre os agentes envolvidos, tanto humanos quanto não humanos". P. 239/240.

** Minérios e recursos florestais nunca foram cedidos pela Coroa Portuguesa aos seus súditos. Ela mantivera para si a prerrogativa legal de reclamar tais recursos quando melhor lhe conviesse.  



** Desde a restauração da independência portuguesa em relação à Espanha (final da União Ibérica), a Coroa portuguesa "apertou" o controle sobre os seus súditos, reivindicando os seus estoques florestais. Esforço de reconstrução da esquadra.

"Desde a restauração de sua independência em relação à Espanha, em 1640, a Coroa portuguesa empenhara-se em controlar mais rigidamente os seus estoques florestais, na América. Debilitada por décadas de submissão política, período durante o qual perdeu boa parte de seu império ultramarino, Portugal viu-se obrigado a uma política de violenta drenagem dos recursos do Brasil. As guerras que o país travou desde então [...] demandaram esforços armamentistas  que quase sempre conduziram a intervenções na economia florestal da colônia. Afinal de contas, muitas batalhas eram travadas no mar e a construção naval dependia do abastecimento madeireiro. Tal como em outras regiões do mundo colonial e neocolonial, a "conservação" florestal imposta pelo governo interagiu de forma complexa com processos de exclusão social e protesto popular". P. 240.



Capítulo 08. Floresta tropical e política metropolitana


** As árvores reservadas ao rei foram alcunhadas "madeiras de lei" ou "paus de lei", já que havia lei que proibia a sua exploração pelos particulares. Essas madeiras não poderiam ser queimadas e não poderiam ser cortadas para a venda. A sua única destinação lícita era a Armada lusa. Exemplos: tapinhoã, cedro, pau brasil, peroba, vinhático.

"As madeiras de lei coloniais eram espécies florestais especialmente adequadas à construção naval de grande porte". P. 242. 
"As madeiras de lei formaram uma categoria crucial na política "conservacionista" portuguesa para a América. Enquanto instituição, era tributária de uma certa tradição europeia de regulação da economia florestal. Desde os tempos medievais, muitos reis do ocidente europeu detinham prerrogativas sobre os recursos florestais situados em seus domínios. [...]. Em Portugal, eram as "coutadas" [...]. Basicamente, as coutadas tinham duas funções que, em muitas unidades, acabavam se acumulando: abrigar o rei e sua corte nas temporadas de caça e fornecer madeira para os arsenais régios. Dentro dos limites da maioria das reservas, quase tudo era expressamente proibido -- caçar, pastorear animais, lançar fogo, cortar madeira -- salvo com licença do monteiro-mor. P. 243. 
** Reservas reais de recursos florestais não eram incomuns na Europa. Quer funcionassem como reserva de caça, quer funcionassem como depósito vivo de madeira para a construção naval, já se conhecia a interdição do uso privado de determinados bens, mesmo que em propriedades privadas.
"As guerras contra a Inglaterra e Holanda destruíram grande parte da Marinha portuguesa, tanto a mercante quanto a [Derrota da armada, Felipe X Elizabeth I?]. [...]. Quando, em 1640, uma revolução fidalga restaurou a Coroa portuguesa como monarquia independente, a prioridade na pauta político-econômica da nova dinastia não podia ser outra senão garantir a posse das colônias restantes e otimizar a extração de seus excedentes". P. 245.  
** Concessão, pela Casa de Bragança, do monopólio sobre a exportação de todas as madeiras tropicais americanas à Companhia Geral do Comércio do Brasil. Concessão de autorização para construir embarcações na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Vicente e no Maranhão, podendo reclamar madeiras situadas em terras particulares para isso.

** Política de coutamento >> 
  • Começa após a expulsão dos holandeses do nordeste, em 1654. 
  • Inicialmente aplicada no Grão-Pará e no Maranhão ("Estado do Grão-Pará e Maranhão"), região de povoamento incipiente em que poucas terras haviam sido concedidas. 
  • A sua aplicação no "Estado do Brasil" foi mais difícil, já que o povoamento neobrasileiro era mais antigo. As melhores matas já haviam sido cedidas em sesmarias.
  • As sesmarias eram concedidas pelo Rei aos colonos sob o regime da enfiteuse. No regulamento das sesmarias contido nas Ordenações Filipinas, estatuía-se que os concessionários não poderiam "colher mato" em suas terras, isto é, não podiam permitir a infestação de vegetação nativa. P. 251. 
  • Ainda que alienasse o domínio útil das suas terras, a Coroa Portuguesa jamais se desfazia do seu domínio eminente (que era a propriedade em última instância). Pergunta: por isso a popularidade do regime da posse, no Brasil?
  • Os "cortes reais" eram confiados aos favoritos dos governantes: "Configurava-se, portanto, uma situação em que alguns poucos favoritos podiam se apropriar, em regime de exclusividade ou com menor concorrência, dos recursos ou dos produtos da sociedade mais ampla". P. 250.
  • A política de "conservação" da Coroa colocava em cheque as suas alianças com os colonos brasileiros.
"Sob a justificativa da defesa do "bem comum", a Coroa detinha a prerrogativa de retirar do mercado e da livre concorrência bens e serviços indispensáveis ao público, passando a geri-los como bem lhe convinha". [Qualquer semelhança com o Brasil contemporâneo não é mera coincidência]. P. 249. 
"Assim como no contrato enfitêutico, o proprietário pleno não transferia o terreno integralmente a terceiros; ele não alienava, indiscriminadamente, uma inteira porção da litobiosfera, com todos os seus recursos, conhecidos e potenciais. O objetivo da instituição das sesmarias era, muito particularmente, o fomento agrícola e, por isso, o que se estava concedendo era o direito ao uso do solo para uma atividade particular: arroteamento, plantio e colheita". [Qualquer semelhança com o Brasil contemporâneo não é mera coincidência]. P. 252.




"[...] a sesmaria não constituía uma alienação territorial, mas apenas uma concessão do direito à prática de uma atividade em um determinado lugar -- [...] a agricultura em uma área de floresta". P. 254


** Quando recebiam o direito de cultivar as terras brasileiras, os outorgados aceitavam uma série de condições e de limites. Desse modo, as autoridades coloniais sentiam estar agindo dentro de seus legítimo direito quando cortavam uma árvore dentro de uma "área privada". 

** A legislação colonial era extremamente casuística. Não havia uma lista oficial exaustiva, contendo os nomes de todas as madeiras interditadas à exploração dos colonos.

"O mais provável é que, de acordo com as inspeções de engenheiros navais, chefes de esquadra, relatório de juízes conservadores das matas, ou simplesmente por indicação de qualidade feita por mestres construtores, fossem sendo descobertas, pouco a pouco, as espécies mais apropriadas para a construção naval -- e que, a partir dessas descobertas, a Coroa fosse se encarregando de vedar o acesso dos colonos às tais madeiras". P. 255. 
** Era pré-industrial: política florestal é sinônimo de política naval. Revitalizar a marinha portuguesa significava explorar com mais eficiência os recursos florestais brasileiros. Palavras-chave do discurso que associava o destino das matas brasileiras ao destino do Império: "conservação" e "escassez". 
  • Incremento da fiscalização florestal por meio da criação de corpo burocrático específico.
  • Tentativa da Coroa Portuguesa de expropriar os colonos que viviam nas terras adjacentes ao mar e nas terras adjacentes aos rios que desembocavam no mar. Revogação de sesmarias concedidas e impedimento de conceder novas sesmarias na região de interesse. Atitude desesperada da Coroa Portuguesa diante da guerra contra a França. Medidas que fracassaram.
"Nos últimos anos do século XVIII, desdobramentos geopolíticos da Revolução Francesa estimularam uma tentativa quase desesperada de endurecimento legislativo, no campo florestal. [...] em cinco de outubro de 1795, a rainha D. Maria I editou um alvará que procurava reverter a toque de caixa o que considerava quase dois séculos e meio de "liberalidade" no tratamento da questão florestal [...]. Ordenava [...] que, nos "portos de mar e distritos de suas vizinhanças", reservassem-se inteiramente aquelas matas que, por sua qualidade, abundância e localização, pudessem ser cortadas e madeiradas em benefício da Coroa, interditando a sua doação em sesmaria. Em terras já doadas, o corte privado ficava sujeito a uma licença a ser pleiteada junto aos ouvidores de comarca". P. 259. 
"Para financiar a guerra, é baixado um decreto, no final de outubro, ordenando a contratação de um empréstimo de de milhões de cruzados a agentes privados [...]. [C]omo parte dos mesmos esforços políticos, a Coroa publica uma carta que acabaria se tornando um grande marco na história da legislação florestal brasileira. D. Maria I declara nesta carta, dirigida a todas as capitanias costeiras brasileiras, que "todas as matas e arvoredos que estão à borda da costa, ou de rios navegáveis" eram propriedade régia. A Coroa estava reclamando a propriedade não só das madeiras de lei, mas de todas as árvores existentes em uma faixa de dez léguas [...] da costa e das margens de "rios que desemboquem imediatamente no mar [...]". Além disso, a rainha determinava que não mais se concedessem sesmarias nessas áreas florestais delimitadas, bem como se restituíssem aquelas já doadas; neste caso, indenizando-se os concessionários "com terras equivalentes no interior do País". [...]. Legalmente, as disposições da carta de 1797 continham uma agressividade jamais vista. [...]. No entanto, embora poderosa no papel, os artigos que instituíam o "calote" florestal acabaram tendo poucos efeitos concretos. [...]. Afinal de contas, aplicar o dispositivo da Carta Régia de 1797 significaria desapropriar praticamente toda a zona de povoamento costeiro". P. 260/263.  



Conclusão: Destruição e conservação, cultura e natureza ou Para que serve a história ambiental da Mata Atlântica?


** Questão orientadora da pesquisa: qual foi o papel da Mata Atlântica na formação e dinâmica da sociedade colonial brasileira? 


** Objetivo epistemológico / indireto: "mostrar, utilizando o exemplo da Mata Atlântica, como a abordagem ambiental pode mudar a escrita de nossa história e a produção da nossa memória cultural". P. 460.


** Recursos naturais também são avaliações culturais. Mais que coisas ou matéria, recursos naturais são significados que só podem ser compreendidos em referência aos modos de vida e de produção social que constituem e em que são constituídos. As madeiras de lei não eram meros recursos, mas símbolos do poder do Estado. 




Conservação das madeiras de lei << >> Conservação do Estado (manutenção da Marinha Real e mercantil)


** O livro buscou afastar-se do gênero narrativo conhecido como a "crônica da degradação ambiental". Essa abordagem exige uma hiperseparação entre natureza e cultura. A ecologia, contudo, tem derrubado a ideia de que as florestas tropicais sejam os templos do equilíbrio. Em direção diametralmente oposta, a ecologia tem salientado o papel das "perturbações" para a diversidade neotropical. 

  • A floresta é totalmente renovada em períodos que variam entre 80 e 140 anos.
  • Os ecólogos têm recorrido cada vez mais à história para explicar a configuração das comunidades florestais que pesquisam. "Leis superorgânicas são substituídas por descrições históricas e geográficas". P. 463.
** A ferro e fogo, de Warren Dean. Exemplo de "crônica da degradação ambiental". A busca desenfreada por evidências de um comportamento ambientalmente predatório o teria levado a anacronismos. Exemplo de anacronismo em Warren Dean: "vale mais a novidade de uma fazenda que a propriedade". Frase interpretada como prova cabal do caráter itinerante e predatório da agricultura colonial. Ocorre que no vocabulário quinhentista, "novidade" era sinônimo de "colheita".   
A apropriação de jure do território, baseada na doação de descomunais extensões de terra, fez com que grande parte do território permanecesse, por longo tempo, inexplorada. Essas terras florestadas eram postas de lado para serem futuramente incorporadas à produção ou, ainda, deixadas em simples 'pousio social'. P. 465.   
É muito improvável que a história da Mata Atlântica tenha sido um monótono drama de destruição "irracional". P.466. 
** A exploração irracional da Mata Atlântica teria levado ao fracasso da empresa colonial. Ademais, a Coroa sempre demonstrou compreender que o "sucesso fiscal de sua colônia americana dependia do uso sustentado das suas matas." P. 466. A preocupação de Portugal era se manter na posse de um território que lhe rendesse proventos continuamente. Sem isso, o império português seria completamente inviável.   
[...] o próprio latifundiarismo escravista, geralmente considerado o grande vilão destruidor dos tempos coloniais e imperiais, trabalhou, na verdade, para retardar o avanço da fronteira e do desmatamento. [...]. Caso os colonos e a colonização tivessem sido tão destrutivos quanto o conhecimento tradicional sustenta, nós esperaríamos encontrar o território brasileiro, já no começo do século XIX, como uma verdadeira terra arrasada -- o que não é o caso. Resta, portanto, a conclusão de que a colonização portuguesa não redundou [...] em um cataclismo ambiental, embora tenha causado, sem dúvida, uma enorme devastação da população humana, tanto nativa quanto forçadamente importada (escravos africanos). P. 466 e 467.
** Com essa ressalva, o autor não pretende incentivar o cinismo. Uma economia fundada em exportação de produtos primários está fadada a ser deficitária em riqueza e em complexidade ecológica. Ademais, "substituir florestas tropicais por monoculturas é, provavelmente, um dos meios mais rápidos e eficientes de se reduzir a diversidade biológica não humana". P. 470.

** A floresta foi a porta de entrada para o mercantilismo lusitano. Ela atraiu o povoamento europeu, estimulou a apropriação do território e fomentou os contatos étnicos que fizeram a nossa história. 


** Mas no que toca à geração de renda de exportação, a riqueza florestal brasileira foi utilizada mais como nutriente agrícola do que como biomassa integral (madeira). De acordo com o autor, "queimando a floresta e alimentando suas lavouras com cinzas, os agricultores brasileiros estavam miniaturizando a biomassa para que ela pudesse entrar na produção destinada ao comércio atlântico". P. 478. 

  • Problema 01: custos elevadíssimos de transporte. As angiospermas da Mata Atlântica tinham grande densidade, o que dificultava fossem escoadas por meio dos rios até os portos de embarque. A enorme distância até os portos europeus  reduzia a viabilidade econômica da indústria madeireira brasileira. No Brasil, sempre foi muito mais lucrativo transportar açúcar do que madeira. 
  • Problema 02: alta dispersão espacial, na Mata Atlântica, das espécies economicamente interessantes. O padrão de dispersão da floresta tropical era bem distinto daquele observado nas florestas temperadas.
  • Problema 03: menor demanda por madeira nas atividades humanas. A construção civil priorizava o uso do barro, demandando madeira apenas para os telhados. Ademais, como os invernos não são muito rigorosos, os colonos não demandavam produção constante de lenha ou de carvão.   
Na falta desses mercados, os colonos portugueses e neobrasileiros apropriaram-se das florestas americanas usando, sobretudo, o fogo. [...] Além disso, seus companheiros ecológicos no novo encontro reagiam de modo muito mais enérgico às suas ações. Principalmente nas áreas úmidas e superúmidas, sem nenhum período seco pronunciado, era extremamente difícil manter a terra livre de vegetação não desejada. P. 480.  
O regime escravista brasileiro constituiu [...] um verdadeiro "moinho satânico" que triturava humanos, terra, animais, plantas, transformando-os em uma massa coesa e palatável destinada ao mercado internacional. [...] quanto mais rápido o crescimento econômico, menor o crescimento natural da população. P. 483.
A  incrível capacidade regenerativa das florestas atlânticas ajudava os senhores a explorar os seus escravos, transformando-os em conversores de energia de vida extremamente curta, mas também extremamente lucrativos. P. 485. 
[...] o escravismo utilizava o corpo humano como uma estratégia de acumulação. P. 485. 
Ter escravos ao seu comando significava mais do que, numa reles constatação econômica, gente trabalhando compulsoriamente para você; significava que você era um senhor, isto é, um integrante da camada aristocrática da sociedade. No entanto, essas condições e disposições "culturais" não teriam conseguido sobreviver caso as circunstâncias ecológicas não lhes fossem permissivas. Os luso-brasileiros podiam se dar ao luxo de ter poucas máquinas porque tinham à sua disposição aquela vitalidade ecossistêmica que somente o sol e a umidade dos trópicos podiam proporcionar. P. 487.

** Além do motivo social ("tornar-se parte da elite"), investir em terras também tinha uma razão econômica. Os investimentos fundiários, no Brasil Colônia, tinham rentabilidade menor que empreendimentos mercantis, tais como o tráfico negreiro ou o transporte de mercadorias. Contudo, eram de risco muito menor. Desse modo, não era raro que os negociantes se tornassem grandes proprietários rurais. Essa era uma forma de garantir a perenidade da riqueza obtida com o comércio. A elite econômica tinha um perfil de investimentos francamente conservador: buscava ao máximo reduzir os riscos da atividade econômica, mesmo que isso significasse reduzir as suas margens de lucro.

Buscando legitimação nos supostos ultrajes às "matas virgens", a Coroa portuguesa declarou uma insólita reapropriação de todas as matas próximas dos portos e vias fluviais. [...]. Embora o projeto de desapropriação fundiária tenha fracassado, os efeitos das políticas de "conservação" florestal fizeram-se sentir muito concretamente sobre os grupos mais pobres da população rural. Para a administração colonial, eram os roceiros de mandioca e outros mantimentos básicos os "facínoras incendiários" que destruíam as matas de madeiras de lei ainda não cedidas como sesmarias. P. 492. 
Assim, privilegiando os interessas da elite rural, as estruturas coloniais de "conservação" acabaram se revelando tão destrutivas e/ou opressivas em relação aos grupos rurais subalternos quanto a usurpação ambiental praticada pelo capital privado, quando deixado atuar livremente. P. 494.

** Antigo regime nos trópicos >>> Qualquer regime sociopolítico é, também, um regime ecológico. Em outros termos, um regime sociopolítico é uma forma de organizar as relações entre os homens e as relações entre os humanos e a biosfera. Fernand Braudel já chamava a atenção para isso. Os humanos só são livres para construir cultura e história dentro de seus encontros com o mundo mais amplo, isto é, no diálogo com as possibilidades e requisitos ecológicos.

Artigo publicado em periódico. De naturalista a militante: a trajetória de Rachel Carson

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