sábado, 25 de outubro de 2014

Ficha de leitura: O motivo edênico no imaginário social brasileiro. José Murilo de Carvalho

Universidade de Brasília – UnB
Centro de Desenvolvimento Sustentável – CDS 
Programa de Pós Graduação / Doutorado
Disciplina: Oficina de Textos Científicos
Docentes: Marcel Bursztyn e José Augusto Drummond
Discente: Juliana Capra Maia
Ficha de Leitura:
CARVALHO, José Murilo de. O motivo edênico no imaginário social brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online]. 1998, vol.13, n.38.

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** Motivo edênico <<< >>> visão do país como natureza. Acompanha o Brasil desde os primórdios da presença europeia. 


** Objetivos do artigo:
  • Documentar, com dados de pesquisa de opinião pública, vitalidade do motivo edênico no Brasil de hoje;
  • Sugerir que possível explicação do fenômeno pode residir no motivo satânico, a visão negativa do povo.



Razão Edênica

** A visão paradisíaca da terra começou com os primeiros europeus que aqui aportaram. Difundiu-se entre europeus e brasileiros.  
  • Relatos dos cronistas do século XVI: Pero Vaz de Caminha; Américo Vespúcio; Gandavo.
  • Relatos do século XVII: Padre Simão de Vasconcelos, Rocha Pita, Frei Vicente do Salvador. Observação: Rocha Pita divulga a ideia do Brasil como Natureza.
  • Relatos do século XIX: Guerra literária entre brasileiros e portugueses entre 1820 e 1822 (panfletos políticos). João Francisco Lisboa (Jornal de Timon). Afonso Celso (conhecido injustamente como “pai do ufanismo”). Poetas românticos (especialmente Gonçalves Dias, autor de “Canção do Exílio”). 

Excertos do texto sobre a guerra dos panfletos:
O compadre de Lisboa, Manuel Fernandes Tomás, atacara o clima e a gente do Brasil para desqualificar o país como sede da monarquia. Dissera, repetindo Aristóteles, que o país, por estar na zona tórrida, tinha clima ardente e pouco sadio. Só os africanos podiam suportar, e isto por tempo limitado, os "dardejantes raios de uma zona abrasadora". Além disso, continuava, a população do país estava reduzida "a umas poucas hordas de negrinhos pescados na Costa d'África". O país é "selvagem, inculto, e terra de macacos, dos pretos e das serpentes".
Com base nessas autoridades, o cônego [Padre Perereca] aponta a excelência do clima, de "primavera completa", as belezas naturais, a fertilidade do solo, as riquezas minerais. De Cairu aproveita outro tema familiar dentro da visão edênica: a ausência de flagelos naturais, secas, terremotos, tufões, epidemias. Conclui que, apesar de não ser o Brasil o paraíso terreal, como queria o missionário jesuíta (provável referência a Simão de Vasconcelos), se parece muito com ele e é sem dúvida o paraíso pagão, "os Elísios deste Novo Mundo chamado América" (p. 27). Basta que se lhe aumente a população para ser "o maior império, o mais florente e poderoso da terra" (pp. 27-28). 


Do começo ao final do Império, mantém-se viva a tradição edênica, pelo menos entre a elite letrada do Brasil.



** Não há indícios de que a população iletrada tivesse sentimentos de patriotismo de qualquer espécie.
  • É provável que, após a proclamação da República, o livro de Afonso Celso tenha sido adotado nas escolas primárias e secundárias como tentativa de promover a educação cívica das crianças (esforços empreendidos por Sílvio Romero, Olavo Bilac, Coelho Neto, Manoel Bomfim e Afrânio Peixoto).
  • É provável que essa literatura cívica tenha penetrado na escola primária e se tornado responsável pela difusão do motivo edênico no imaginário popular brasileiro. O certo é que ele se difundiu e criou raízes profundas. Tão profundas que sobrevive até hoje e com boa saúde.



A sobrevivência do edenismo

** Diagnóstico elaborado a partir de duas pesquisas de opinião pública realizadas, respectivamente, no Brasil e no Estado do Rio de Janeiro.


** Orgulho nacional:
  • Cerca de 84% dos entrevistados sentem orgulho de ser brasileiros, uma das mais altas taxas de orgulho de todo o mundo (comparável à Alemanha, Japão e África do Sul). Apenas EUA e Irlanda registram porcentagens acima da brasileira.  
  • O grau de escolaridade não afeta significativamente o fato de se ter ou de não se ter orgulho do Brasil. Os entrevistados de escolaridade mais alta sentem menos orgulho (normal, dado o seu maior senso crítico). Os entrevistados de escolaridade mais baixa sentem mais orgulho. O corte, em termos educacionais, ocorre na 4ª. Série do Primeiro Grau.
  • A geração de mais de 40 anos de idade sente mais orgulho do país que as gerações mais jovens. “São exatamente os que nasceram antes do golpe e que, portanto, sofreram mais pesadamente a repressão os que demonstram maior orgulho do país”. 
  • Gênero, religião, grau de informação (medido por leitura de jornais), grau de participação política (em greves, passeatas e outros tipos de protesto), mobilidade social, grau de associativismo têm efeito pequeno sobre a taxa de orgulho. Apenas observou-se que os entrevistados de religiões de matriz africana tendem a ter mais orgulho que os fiéis de outras religiões.
  • Os que se filiam mais a sindicatos e associações profissionais e de beneficência têm muito mais orgulho do país que os demais.

** Motivos que o levam os entrevistados a terem orgulho do Brasil:
  • Caráter ritualístico da resposta à pergunta: “você tem orgulho do Brasil?”. Apesar de 87% dos entrevistados terem dito que tinham orgulho de ser brasileiros, cerca de 23% não souberam indicar um motivo sequer para tal orgulho. Computando-se as três razões para orgulho, a porcentagem dos que não conseguiram responder sobe para a 43%.
  • O motivo edênico predomina entre os entrevistados que conseguem apontar alguma razão para seu orgulho, tanto na pesquisa nacional como na do Rio de Janeiro (sempre aparece em primeiro lugar). 
  • Por outro lado, em nenhuma das duas pesquisas aparecem como motivo de orgulho as instituições políticas do país, os três poderes, o sistema representativo. 

Excertos do texto sobre o predomínio do edenismo.
Surpresa e preocupação. Como é que, 174 anos após a independência, os brasileiros ainda não conseguem encontrar razões para seu orgulho patriótico que tenham a ver com conquistas nacionais e não com fatores sobre os quais não têm controle? Pois, como diz Machado de Assis, nós não fizemos os céus, as montanhas, as matas e os rios. Muito menos protegemos o país de terremotos, vulcões e furacões. Machado reclamava dos estrangeiros que visitavam o Brasil e só viam o "pays féerique". Ao mostrar a cidade a um visitante estrangeiro, este só se lembrou de fazer um comentário: "Mas que natureza que vocês têm!". Tal atitude, queixa-se Machado, pisava o homem e sua obra, excluía qualquer idéia de ação humana.   
Nelson Rodrigues: "Ah, o Brasil não é uma pátria, não é uma nação, não é um povo, mas uma paisagem". (Rodrigues, 1997, p. 14).  
A mais perfeita representação do Brasil como paisagem talvez seja um "Nu deitado" de Di Cavalcanti, da década de 1930. O pintor retrata uma mulata nua cujas curvas se confundem com as formas da natureza. Mulher e natureza se fundem.


Aparentemente o edenismo não só está vivo como revela sintomas de fortalecimento.


  • A variável cor não altera o resultado significativamente.
  • Variável religião. Tendência entre os mediúnicos (umbanda, candomblé e espiritismo) de serem mais edenistas. Obs.: a natureza povoa os cultos afro-brasileiros.
  • Variável idade. A geração mais velha é a que menos se fia em motivos edenistas; a geração mais nova, a que mais se fia no edenismo. “A geração da redemocratização não parece ter vivido a mudança política como conquista nacional de que se pudesse orgulhar”.
  • Variável educação: 1) Os menos educados têm mais dificuldade para justificar seus motivos de orgulho; 2) Quanto mais educados, mais os entrevistados recorrem aos motivos edênicos.   
Os que têm mais orgulho são exatamente os que têm mais dificuldade em o justificar. A curva surpreendente é o aumento sistemático do motivo edênico na proporção em que aumenta a educação. Os edenistas são o dobro entre os que têm educação secundária ou superior. Se os mais educados, como vimos, tendem a ser menos ufanistas, tendem, em contrapartida, a ser muito mais edenistas. E isto inclui os que têm educação universitária, os mais edenistas de todos. Quanto mais educada a pessoa, mais concentra seus motivos de orgulho em fatores naturais.


  • Explicação para a predominância do edenismo entre os mais educados: 1) Educação formal que salientava o edenismo; 2) Ressureição, diante do momento político (Era Collor), do costume de cantar o Hino Nacional (mais edênico, impossível); 3) Razão satânica (povo imprestável, inadequado).   

Excertos do texto sobre o edenismo no Hino Nacional
Tome-se a primeira estrofe, por exemplo. Para começar, o brado retumbante do povo heróico é invenção. Quem bradou foi D. Pedro. Mas o pior é que o ouvinte do brado foi o palco, foi a natureza, foram as margens do Ipiranga. D. Pedro gritou para as margens (que certamente não retumbaram em resposta). Mais ainda, a referência à liberdade, uma conquista humana, feita logo a seguir, aparece via metáfora natural: a liberdade é o sol cujos raios brilham no céu. Mais à frente, surge de novo o céu risonho e límpido e o gigante belo, impávido, colosso. Colosso pela natureza. A grandeza do futuro é garantida pelo gigantismo natural. Mas não basta: o país está deitado em berço esplêndido, iluminado ao sol do novo mundo. E vem a seguir a citação da "Canção do exílio". Por fim, o símbolo de amor eterno é o Cruzeiro do Sul, que aparece, aliás, duas vezes no hino.


A razão satânica

** O predomínio edênico não teria a ver com a ausência de outras razões de orgulho? Crença na inadequação do elemento humano que habita o país.


** Desde a Colônia, os cronistas já arguiam que o atraso do Brasil era causado, principalmente, pela deficiência de seu povo. Jesuítas queixavam-se do envio, para o Brasil, de criminosos e prostitutas. 


** A escravidão foi apontada como causa da degradação dos costumes de senhores e de escravos. Alguns apontavam a simples presença dos negros como causa de degradação moral. 


** Segunda metade do século XIX. A ideologia racista ganhou ares de cientificismo e condenou sumariamente o povo brasileiro. 
  • Autores que adotaram os argumentos racistas endossados pela ciência da época: Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha. 
  • Crença na degeneração do povo provocada pela mistura de raças (Conde de Gobineau e cia ltda). 

** “Povo triste marcado pela cobiça e pela luxúria”. Paulo Prado.


** Thomas Moore. Rejeita a visão negativa da natureza americana e insiste, por outro lado, no pessimismo quanto à sua população: em seu entender, à grandiosidade da natureza correspondia uma população selvagem, fraca, repugnante, idiota. 


** Autoimagem >>> Adjetivos selecionados pelos entrevistados para descrever os brasileiros e os cariocas, nesta ordem:
  • Brasileiro: sofredor, trabalhador, alegre e conformado.
  • Carioca: alegre, sofredor, conformado e trabalhador.
  • Em um e em outro caso, chama a atenção a passividade, a vitimização do cidadão, o que é a própria definição do não-cidadão.  

Mas o que chama a atenção no conjunto das características mais votadas é a ideia de passividade: trabalho, sofrimento, conformismo. Pior ainda, tudo isto é temperado pela alegria. [...]. A alegria seria a maneira de enfrentar a desgraça. O brasileiro seria um sofredor conformado e alegre. [...]. Mas, do ponto de vista político e cívico, é a própria definição do não-cidadão, do súdito que sofre, conformado e alegre, as decisões do soberano. O povo se vê como vítima, como paciente e não como agente da história. Como a vejo, a razão satânica tem sobretudo a ver com esta falta de sentimento cívico.


** Confiança nos concidadãos >>> 
  • Relação invertida entre as respostas fornecidas pelos brasileiros em geral em relação às respostas fornecidas pelos cariocas: 1) Entre os brasileiros: 63% julgam os concidadãos merecedores de confiança e 34% julgam que não são merecedores de confiança; 2) Entre os cariocas: 34% julgam os concidadãos merecedores de confiança e 63% julgam que não são merecedores de confiança.
  • Mesmo assim, o Brasil apresenta os mais baixos índices de confiança nos concidadãos dentre 43 países pesquisados.
  • Dado preocupante! Correlação demonstrada por Inglehart: confiança entre concidadãos e longevidade do sistema democrático.
  • A confiança nos concidadãos cai radicalmente entre os entrevistados mais jovens (péssima notícia para o futuro da democracia brasileira).
  • Entrevistados envolvidos em atividades sindicais ou associativas apresentam mais confiança nos concidadãos que os demais entrevistados.
  • Entrevistados com mais educação tendem a confiar mais nos concidadãos que os entrevistados que não ultrapassaram a 4ª série. 
  • As variáveis cor e sexo não se mostraram relevantes para explicar os graus de confiança nos concidadãos.


** Confiança em lideranças específicas >>> 
  • Os brasileiros só confiam no mundo da casa, das relações primárias. Fora de casa, só confiam nos líderes religiosos.  
Os brasileiros em geral, e os cariocas em particular, confiam em parentes e líderes religiosos, vindo a seguir amigos e vizinhos. É maior a confiança nos patrões do que nas lideranças sindicais. As lideranças políticas, com exceção do presidente da República, não merecem confiança. O troféu da desconfiança vai para os deputados em quem os entrevistados votaram. 

  • Paroquialismo
Se as características do brasileiro descritas na Tabela 5 o aproximam do súdito, as respostas da Tabela 7 o levam para perto do paroquialismo [...], isto é, para uma cultura desvinculada do político, e até mesmo do civil, voltada para o mundo doméstico.

  • Baixo grau de associativismo.
Parece-me razoável concluir que tal auto-imagem contribui para a existência e a persistência do motivo edênico. Quem não se vê como um ser civil e cívico não se pode ver como agente, individual ou coletivo, de mudanças sociais e políticas de que se possa orgulhar e deve buscar alhures razões para a construção de uma identidade nacional.


** Motivos de vergonha do país. Os três mais comentados foram: questões sociais (inclusive saúde e educação); política e corrupção; insegurança. 
  • Predomínio absoluto dos fatores de natureza social e política como motivos de vergonha nacional: más instituições, maus governantes, má política. 
  • Quanto mais educação, mais o entrevistado consegue elencar os motivos pelos quais se envergonha do país.
  • Entrevistados com maiores níveis educacionais tendem a ser mais sensíveis à política/corrupção e às questões sociais. 
Os dados trazem nova luz sobre o curto-circuito que leva ao edenismo. Se os concidadãos são pouco confiáveis, ainda menos confiáveis são os representantes políticos. O povo não se vê como responsável pelo que acontece no país não apenas porque não participa mas ainda por não se considerar cúmplice da ação de seus representantes, mesmo quando os elege. Não se vê como agente direto nem indireto da política. Não se enquadra na democracia antiga nem na moderna. Desse modo, só lhe restam as belezas naturais, cada vez mais destruídas por ele próprio. No dia em que lhe faltarem as belezas, o último refúgio de orgulho talvez seja o samba e o futebol. Hegel, em terrível avaliação, achava que a América, sobretudo a do Sul, estava condenada a ser prisioneira da natureza, a nunca se elevar à condição de história.

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