Centro Universitário de Brasília – Uniceub
Faculdade de Direito
Pós Graduação Lato Sensu em Direitos
Sociais, Direito Ambiental e do Consumidor
Direitos Humanos
Professora Lilian Rose Rocha
Discente: Juliana Capra Maia
Resumo de Sentença
CONTEXTO
Em abril de
1964, um golpe militar depôs o governo constitucional do Presidente João
Goulart. A consolidação do regime militar baseou-se na Doutrina da Segurança
Nacional e na promulgação de sucessivas normas de segurança nacional e normas
de exceção, como os atos institucionais, “que
funcionaram como pretenso marco legal para dar cobertura jurídica à escalada
repressiva”.
Esse
período foi caracterizado pela instalação de um aparelho de repressão que assumiu
características de verdadeiro poder paralelo ao Estado e chegou ao seu “mais alto grau” com a promulgação do
Ato Institucional Nº 05 em dezembro de 1968.
Entre
outras manifestações repressivas nesse período, encontra-se o fechamento do
Congresso Nacional, a censura completa da imprensa, a suspensão dos direitos
individuais e políticos, da liberdade de expressão, da liberdade de reunião e
da garantia do habeas corpus.
Também se
estendeu o alcance da justiça militar e a Lei de Segurança Nacional introduziu,
entre outras medidas, as penas perpétuas e de morte.
Entre 1969
e 1974, produziu-se “uma ofensiva
fulminante sobre os grupos armados de oposição”. O mandato do Presidente
Médici (1969-1974) representou “a fase de
repressão mais extremada em todo o ciclo de 21 anos do regime militar” no
Brasil.
Posteriormente,
durante “os três primeiros anos [do
governo do Presidente] Geisel [1974-1979], o desaparecimento de presos
políticos, que antes era apenas uma parcela das mortes ocorridas, torna-se a
regra predominante para que não ficasse estampada a contradição entre discurso
de abertura e a repetição sistemática das velhas notas oficiais simulando
atropelamentos, tentativas de fuga e falsos suicídios”.
Como
consequência, a partir de 1974, oficialmente não houve mortes nas prisões, todos
os presos políticos mortos desapareceram e o regime passou a não mais assumir o
assassinato de opositores.
Segundo a
Comissão Especial:
a) cerca de 50 mil pessoas foram detidas já nos
primeiros meses de ditadura;
b) 20 mil presos foram submetidos a
torturas;
c) Há 354 mortos e desaparecidos políticos;
d) 130 pessoas foram expulsas
do país;
e) 4.862 pessoas tiveram seus mandatos e direitos políticos suspensos;
f) Centenas de camponeses foram assassinados.
A Comissão
Especial salientou que o Brasil é o único país da região que não trilhou
procedimentos penais para examinar as violações de direitos humanos ocorridas
em seu período ditatorial, mesmo tendo oficializado, com a Lei Nº 9.140/95, o
reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas mortes e desaparecimentos
denunciados. Isso tudo
porque, em 1979, o Estado editou a Lei de Anistia.
A GUERRILHA DO ARAGUAIA
Denominou-se
Guerrilha do Araguaia o movimento de resistência ao regime militar integrado
por alguns membros do novo Partido Comunista do Brasil.
Esse movimento
propôs-se a lutar contra o regime, “mediante
a construção de um exército popular de libertação”. No início de 1972, às
vésperas da primeira expedição do Exército à região do Araguaia, a Guerrilha
contava com cerca de 70 pessoas, em sua maioria jovens.
Entre abril
de 1972 e janeiro de 1975, entre três mil e dez mil integrantes
do Exército, da Marinha, da Força Aérea, das Polícias Federal e Militar
empreenderam repetidas campanhas de informação e repressão contra os membros da
Guerrilha do Araguaia.
Nas
primeiras campanhas, os guerrilheiros detidos não foram privados da vida ou tampouco desapareceram. Os
integrantes das Forças Armadas receberam ordens de deter os prisioneiros e de “sepultar os mortos inimigos na selva,
depois de sua identificação”. Para isso, eram “fotografados e identificados por oficiais de informação e depois
enterrados em lugares diferentes na selva”.
No entanto,
após uma “ampla e profunda operação de
inteligência, planejada como preparativo da terceira e última investida de
contra-insurgência”, houve uma mudança de estratégia das Forças Armadas.
Em 1973, a
“Presidência da República, encabeçada
pelo general Médici, assumiu diretamente o controle sobre as operações
repressivas [e] a ordem oficial passou a ser de eliminação” dos capturados.
No final de
1974, não havia mais guerrilheiros no Araguaia, e há informação de que seus
corpos foram desenterrados e queimados ou atirados nos rios da região.
Por outro
lado, “o governo militar impôs silêncio
absoluto sobre os acontecimentos do Araguaia e proibiu a imprensa de divulgar
notícias sobre o tema, enquanto o Exército negava a existência do movimento”.
PRELIMINARES
Competência da Corte Interamericana
A Corte
Interamericana entendeu ser competente, nos termos do artigo 62.3 da Convenção, para
conhecer do presente caso, em razão o Brasil ser Estado Parte da Convenção
Americana desde 25 de setembro de 1992 e de ter reconhecido a competência
contenciosa da Corte em 10 de dezembro de 1998.
Questão: A
Guerrilha do Araguaia ocorreu antes de 10 de dezembro de 1998.
Resposta da Corte:
O argumento se aplica às mortes. Entretanto, O desaparecimento forçado é um crime continuado. O ato de desaparecimento e sua
execução se iniciam com a privação da liberdade da pessoa e a subsequente falta
de informação sobre seu destino, e permanecem até quando não se conheça o
paradeiro da pessoa desaparecida e os fatos não tenham sido esclarecidos.
Carência de interesse processual
Para a Corte, "interesse processual" é uma figura do
Direito Processual Civil Brasileiro.
Em seu entendimento, as ações adotadas pelo Brasil para reparar
as violações cometidas ou para evitar sua repetição seriam relevantes para
a análise da Corte Interamericana sobre o mérito do caso e, eventualmente, para as possíveis
reparações que se ordenem, mas não teriam efeito sobre o exercício da competência
da Corte para dele conhecer.
Falta de esgotamento das
vias internas
Cabe às
vítimas utilizar todos os recursos internos disponíveis antes de recorrer ao
Sistema Interamericano. De acordo com o Estado Brasileiro, não teriam sido
esgotados os seguintes recursos judiciais internos:
a) a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental Nº 153, mediante a qual se solicitou que a anistia concedida pela
Lei de Anistia Nº 6.683/79 não se estendesse aos crimes comuns praticados pelos
agentes de repressão
contra os opositores políticos;
b) a Ação
Ordinária nº 82.00.024682-5, mediante a qual se solicitou a determinação do
paradeiro dos desaparecidos, a localização dos restos mortais, o esclarecimento
das circunstâncias da morte e a entrega do relatório oficial sobre as operações
militares contra a Guerrilha do Araguaia;
c) a Ação
Civil Pública nº 2001.39.01.000810-5, interposta pelo Ministério Público
Federal para obter do Estado todos os documentos existentes sobre ações
militares das Forças Armadas contra a Guerrilha;
d) a ação
privada subsidiária para a persecução penal dos crimes de ação pública;
e) as
iniciativas referentes à solicitação de indenizações, como a Ação Ordinária
Civil de Indenização e a solicitação de reparação pecuniária, no âmbito da Lei
Nº 9.140/95, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, e da
Comissão de Anistia, de acordo com a Lei Nº 10.559/02, entre outras medidas de
reparação.
A esse
respeito, a Corte decidiu pelo indeferimento da preliminar, porquanto:
(a) Uma objeção ao exercício de jurisdição
da Corte Interamericana, baseada na suposta falta de esgotamento dos recursos internos, deve
ser apresentada no momento processual oportuno, isto é, quando da análise da admissibilidade do procedimento
perante a Comissão. Essa medida não teria sido observada pelo Estado Brasileiro.
Conforme sentença da Corte Interamericana, as alegações relativas à ADPF, à
Ação Civil Pública, à possibilidade de interposição de uma ação penal
privada subsidiária da ação pública e às diversas iniciativas de reparação foram expostas pelo Brasil,
pela primeira vez, como parte de uma exceção preliminar por falta de
esgotamento dos recursos internos em sua contestação à demanda, aproximadamente
nove anos e oito meses depois de adotada a decisão de admissibilidade por parte
da Comissão, ou seja, de maneira extemporânea.
(b) No momento em que a Comissão emitiu o
Relatório nº 33/01, em 06 de março de 2001, passados mais de 19 anos do início
dessa ação, não havia decisão definitiva do mérito no âmbito interno. Por
esse motivo, a Corte concluiu que o atraso do processo não podia ser
considerado razoável, de modo que o esgotamento das vias internas foi considerado dispensável.
c) Além disso, a partir dos argumentos
das partes e das provas contidas no expediente, a Corte Interamericana observa que as
alegações do Estado Brasileiro relativas à eficácia do recurso e à inexistência de um
atraso injustificado na Ação Ordinária versam sobre questões relacionadas com o
mérito do caso, uma vez que contradizem as alegações relacionadas com a suposta
violação dos artigos 8, 13 e 25 da Convenção Americana.
Quarta instância
Em Outubro
de 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil interpôs uma ADPF mediante a qual solicitou ao STF que conferisse, à Lei de Anistia, interpretação conforme com
a Constituição Federal, de modo que declarasse que a anistia concedida por essa lei aos
crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos
agentes de repressão contra opositores políticos, durante o regime militar.
Em 29 de
abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal “declarou
improcedente, por sete votos a dois, [a Arguição de Descumprimento nº 153]”,
ao considerar que “a Lei de Anistia
representou, em seu momento, uma etapa necessária no processo de reconciliação
e redemocratização do país” e que “não
se tratou de uma autoanistia”.
Com base
nesta recente decisão, o Estado questionou a competência da Corte
Interamericana para revisar decisões adotadas pelas mais altas cortes de um
Estado, indicando que este Tribunal não pode analisar as questões de mérito da
presente demanda ocorridas até 29 de abril de 2010, em virtude do não
esgotamento dos recursos internos. Com a decisão da ADPF 153, verificou-se o esgotamento regular dos recursos internos, surgindo,
inclusive, um novo obstáculo para a análise do mérito da demanda, a proibição
da quarta instância.
A esse
respeito, a Corte Interamericana entendeu que a ADPF não é um recurso que se possa considerar disponível, não somente
porque não estava regulamentada no momento da interposição da denúncia perante
a Comissão, mas também porque os particulares, como os familiares das supostas
vítimas, não estão legitimados para utilizá-lo. De fato, os únicos legitimados
para interpor essa ação são determinados funcionários e instituições do Estado, além de entidades coletivas da sociedade civil.
Entendeu,
também, que não se solicita à Corte Interamericana a realização de exame da Lei
de Anistia com relação à Constituição Nacional do Estado, questão de direito
interno que não lhe compete e que foi matéria do pronunciamento judicial na
ADPF 153. Solicita-se, ao revés, que a Corte Interamericana realizasse um "controle de
convencionalidade", ou seja, uma análise da alegada incompatibilidade daquela lei
com as obrigações internacionais do Brasil contidas na Convenção Americana.
Por tantos motivos, a Corte Interamericana rechaçou as preliminares.
MÉRITO
Violação do
direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade e à
liberdade pessoais
Matéria
incontroversa.
Apenas há uma diferença relacionada com o número de vítimas.
A
Comissão afirmou que foram vítimas de desaparecimento forçado 70
pessoas, enquanto os representantes das vítimas informaram que foram 69 pessoas. Por sua
vez, o Estado, por meio da Lei nº 9.140/95, reconheceu sua responsabilidade
pelo desaparecimento de 60 das supostas vítimas desaparecidas.
Violação do direito às garantias judiciais
Problema: aqui, a Corte Interamericana devia decidir
se a Lei de Anistia sancionada em 1979 é ou não compatível com os direitos
consagrados na Convenção Americana ou,
dito de outra maneira, se aquela pode manter seus efeitos jurídicos a respeito
de graves violações de direitos humanos, uma vez que o Estado Brasileiro obrigou-se
internacionalmente a partir da ratificação da Convenção Americana.
Resposta da Corte: A obrigação
assumida pelos Estados, de coibir e punir os delitos atentatórios dos direitos
humanos, corresponde ao seu dever de organizar todo o aparato
governamental e, em geral, todas as estruturas por meio das quais se manifesta
o exercício do poder público, de maneira tal que sejam capazes de assegurar
juridicamente o livre e pleno exercício dos direitos humanos.
Como
consequência dessa obrigação, os Estados devem prevenir, investigar e punir
toda violação dos direitos humanos reconhecidos pela Convenção. Também devem procurar o restabelecimento, caso seja possível, do direito violado e, se for o
caso, a reparação dos danos provocados pela violação dos direitos humanos.
Se o aparato
estatal age de modo que essa violação fique impune e não se reestabelece, na
medida das possibilidades, à vítima a plenitude de seus direitos, pode-se
afirmar que se descumpriu o dever de garantir às pessoas sujeitas a sua
jurisdição o livre e pleno exercício de seus direitos.
As anistias
ou figuras análogas vêm sendo obstáculos alegados por alguns Estados para deixar
de investigar e de punir os responsáveis por violações graves aos direitos
humanos.
Por isso, a
Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, os órgãos das Nações Unidas e outros organismos universais e regionais
de proteção dos direitos humanos pronunciaram-se sobre a incompatibilidade das
leis de anistia, relativas a graves violações de direitos humanos com o Direito
Internacional e as obrigações internacionais dos Estados. Ex.: Peru, Chile, Argentina,
El Salvador, Haiti, Colômbia e Uruguai.
Do mesmo modo, a
Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993, enfatizou,
na sua Declaração e Programa de Ação, que os Estados “devem revogar a
legislação que favoreça a impunidade dos responsáveis por violações graves de
direitos humanos, [...] e castigar as violações”, destacando que em casos de
desaparecimentos forçados os Estados estão obrigados, em primeiro lugar, a
impedi-las e, uma vez que tenham ocorrido, a julgar os autores dos fatos.
A contrariedade das anistias
relativas a violações graves de direitos humanos com o Direito Internacional
foi afirmada também pelos tribunais e órgãos de todos os sistemas regionais de
proteção de direitos humanos.
Por tantos motivos, a Corte
Interamericana considerou que a interpretação e aplicação da Lei de Anistia
afetou o dever internacional do Estado Brasileiro de investigar e punir as graves violações
de direitos humanos, ao impedir que os familiares das vítimas no presente caso
fossem ouvidos por um juiz, conforme estabelece o artigo 8.1 da Convenção
Americana.
Também considerou que o Brasil violou o direito à proteção judicial consagrado no artigo 25 da
mesma convenção, precisamente pela falta de investigação, persecução,
captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos fatos, descumprindo ainda o artigo 1.1 da Convenção.
Adicionalmente, ao aplicar a Lei
de Anistia impedindo a investigação dos fatos e a identificação, julgamento e
eventual sanção dos possíveis responsáveis por violações continuadas e
permanentes, como os desaparecimentos forçados, a Corte entendeu que o Estado Brasileiro descumpriu sua
obrigação de adequar seu direito interno, obrigação consagrada no artigo 2 da Convenção
Americana.
Dada sua manifesta
incompatibilidade com a Convenção Americana, as disposições da Lei de Anistia
brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos
humanos carecem de efeitos jurídicos. Em consequência, não podem continuar a
representar um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem
para a identificação e punição dos responsáveis, nem podem ter igual ou similar
impacto sobre outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados
na Convenção Americana ocorridos no Brasil.
Observa-se que a
incompatibilidade em relação à Convenção inclui as anistias de graves violações
de direitos humanos e não se restringe somente às denominadas “autoanistias”.
[...] quando um
Estado é Parte de um tratado internacional, como a Convenção Americana, todos
os seus órgãos, inclusive seus juízes, também estão submetidos àquele, o que os
obriga a zelar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam
enfraquecidos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e finalidade, e
que desde o início carecem de efeitos jurídicos.
O Poder
Judiciário, nesse sentido, está internacionalmente obrigado a exercer um
“controle de convencionalidade” ex
officio entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente
no marco de suas respectivas competências e das regulamentações processuais
correspondentes.
Conforme dispõe o artigo 27 da
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, os Estados não podem,
por razões de ordem interna, descumprir obrigações internacionais.
Com respeito à suposta afetação ao princípio de legalidade e irretroatividade,
a Corte já ressaltou que o desaparecimento forçado constitui um delito de
caráter contínuo ou permanente, cujos efeitos não cessam enquanto não se
estabeleça a sorte ou o paradeiro das vítimas e sua identidade seja
determinada, motivo pelos quais os efeitos do ilícito internacional em questão
continuam a atualizar-se.
Portanto, o
Tribunal observa que, em todo caso, não haveria uma aplicação retroativa do
delito de desaparecimento forçado porque os fatos do presente caso, que a
aplicação da Lei de Anistia deixa na impunidade, transcendem o âmbito temporal
dessa norma em função do caráter contínuo ou permanente do desaparecimento
forçado.
Com base nessas considerações,
a Corte Interamericana concluiu que, devido à interpretação e à aplicação
conferidas à Lei de Anistia (que careceriam de efeitos jurídicos a respeito de
graves violações de direitos humanos, nos termos antes indicados), o Brasil descumpriu sua
obrigação de adequar seu direito interno à Convenção, obrigação essa prevista no Artigo 2,
em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo tratado.
Adicionalmente, o
Tribunal concluiu que, pela falta de investigação dos fatos, bem como da falta
de julgamento e punição dos responsáveis, o Estado Brasileiro teria violado os direitos às
garantias judiciais e à proteção judicial, previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da
Convenção Americana, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo tratado.
Violação do direito à liberdade de pensamento e de expressão
Gereneralidades / antecedentes: Em julgados anteriores, a Corte uniformizou entendimento segundo o qual na
Convenção Americana, o direito à liberdade de pensamento e de expressão
compreende “não apenas o direito e a
liberdade de expressar seu próprio pensamento, mas também o direito e a
liberdade de buscar, receber e divulgar informações e ideias de toda índole”.
Assim como a Convenção Americana,
outros instrumentos internacionais de direitos humanos, tais como a Declaração
Universal de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos, estabelecem um direito positivo a buscar e a receber informação.
Por outro lado, a Corte
Interamericana também já se manifestou no sentido de que, em uma sociedade democrática, é indispensável
que as autoridades estatais sejam regidas pelo princípio de máxima divulgação,
que estabelece a presunção de que toda informação é acessível, sujeita a um
sistema restrito de exceções.
Adicionalmente, os organismos
internacionais também já determinaram que toda pessoa -- principalmente os familiares das
vítimas de graves violações de direitos humanos -- tem o direito de conhecer a
verdade. Por conseguinte, os familiares das vítimas e a sociedade devem ser
informados de todo o ocorrido com relação a essas violações.
O direito dos familiares de
vítimas de graves violações de direitos humanos de conhecer a verdade está
compreendido no direito de acesso à justiça.
Finalmente, a Corte Interamericana também
já estabeleceu que, em casos de violações de direitos humanos, as autoridades
estatais não se podem amparar em mecanismos como o segredo de Estado ou a
confidencialidade da informação, ou em razões de interesse público ou segurança
nacional, para deixar de aportar a informação requerida pelas autoridades
judiciais ou administrativas encarregadas da investigação ou processos
pendentes.
Problema: a Corte Interamericana apenas pode se pronunciar a respeito da atuação do Estado Brasileiro referente à entrega de informação somente por fatos ocorridos após 10 de
dezembro de 1998, data a partir da qual o Tribunal tem competência sobre
alegadas violações à Convenção atribuídas ao Brasil (Ação Ordinária e Ação
Civil Pública).
Ao iniciar-se a competência
temporal deste Tribunal, em 10 de dezembro de 1998, após 16 anos, o
procedimento da Ação Ordinária ainda se encontrava em trâmite.
Nesse contexto, em 09
de abril de 1999, o Estado Brasileiro, por meio da AGU, apresentou um
escrito no qual indicou que, como consequência de uma nova orientação
empreendida a partir da consolidação do regime democrático, havia sido
promulgada a Lei nº 9.140/95, que reconheceu como mortas as pessoas desaparecidas
no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 e
criou a Comissão Especial que tinha, entre outras funções, a realização de todos
os esforços para localizar os corpos das pessoas desaparecidas.
Resposta do Brasil às demandas da Comissão: “Não há documentos”.
Manifestação da Corte: Alegar,
em um procedimento judicial, a falta de prova sobre a
existência de certa informação, sem haver indicado ao menos quais foram as
diligências realizadas para confirmar ou não sua existência, possibilita a
atuação discricionária e arbitrária do Estado de facilitar ou não determinada
informação, gerando com isso insegurança jurídica a respeito do exercício desse
direito.
Cabe
destacar que a Primeira Vara Federal ordenou à União, em 30 de junho de 2003, a
entrega dos documentos em um prazo de 120 dias.
Apesar
disso, passaram-se seis anos, durante os quais a União interpôs vários recursos
até que esta entrega se fez efetiva, o que resultou na vulnerabilidade dos
familiares das vítimas e afetou seu direito de receber informação e de conhecer
a verdade sobre o ocorrido. A Ação Ordinária extrapolou todos os prazos
razoáveis (11 anos desde o ajuizamento até a execução).
Na Ação
Civil Pública, pede-se a exibição reservada dos documentos relativos à
Guerrilha. Essa providência não satisfaz o direito das vítimas à verdade.
O direito
de aceder à informação pública em poder do Estado não é um direito absoluto,
podendo estar sujeito a restrições. No entanto, estas devem, em primeiro lugar,
estar previamente fixadas por lei – no sentido formal e material –, como meio
de assegurar que não fiquem ao arbítrio do poder público.
Em segundo lugar, as restrições
estabelecidas por lei devem responder a um objetivo permitido pelo artigo 13.2
da Convenção Americana, ou seja, devem ser necessárias para assegurar “o respeito aos direitos ou à reputação das
demais pessoas” ou “a proteção da
segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas”.
As limitações que se imponham
devem ser necessárias em uma sociedade democrática e orientadas a satisfazer um
interesse público imperativo. Isto implica que, de todas as alternativas, devem
ser escolhidas aquelas medidas que restrinjam ou interfiram, na menor medida
possível, no efetivo exercício do direito de buscar e de receber a informação.
Adicionalmente, para garantir o
exercício pleno e efetivo desse direito, é necessário que a legislação e a
gestão estatal sejam regidas pelos princípios de boa-fé e de máxima divulgação,
de modo que toda a informação em poder do Estado se presuma pública e
acessível, submetida a um regime limitado de exceções.
Igualmente, toda negação de
informação deve ser motivada e fundamentada, correspondendo ao Estado o ônus da
prova referente à impossibilidade de revelar a informação e, ante a dúvida ou o
vazio legal, deve prevalecer o direito de acesso à informação.
Finalmente,
ante a recusa de acesso a determinada informação sob seu controle, o Estado
deve garantir que exista um recurso judicial simples, rápido e efetivo que
permita determinar se houve uma violação do direito de acesso à informação e,
se for o caso, ordenar ao órgão correspondente proceda à entrega da mesma.
Violação do
direito à integridade pessoal
No entendimento da Corte Interamericana, familiares de vítimas também podem ser considerados vítimas. De acordo com seus julgados anteriores, haveria presunção
juris tantum a respeito de mães e pais, filhas e filhos, esposos e
esposas, companheiros e companheiras permanentes (chamados “familiares
diretos”). No
caso desses familiares diretos, cabe ao Estado descaracterizar a presunção.
Nos demais casos, a Corte deve analisar se na prova que consta do
expediente há comprovação da afetação à integridade pessoal da suposta vítima.
No caso da Guerrilha do Araguaia, a Corte Interamericana entendeu que houve violação do direito à
integridade pessoal dos familiares das vítimas em
virtude:
a) do impacto provocado neles e no seio familiar em função do
desaparecimento forçado de seus entes queridos;
b) da falta de esclarecimento das
circunstâncias de sua morte;
c) do desconhecimento de seu paradeiro final; e
d) da
impossibilidade de dar a seus restos o devido sepultamento.
Observe-se que, conforme jurisprudência da Corte Interamericana,
a privação do acesso à verdade dos fatos sobre o destino de um desaparecido
constitui uma forma de tratamento cruel e desumano para os familiares próximos.
Dessa forma, a Corte Interamericana considerou que a incerteza e a ausência de informação por
parte do Estado Brasileiro acerca dos acontecimentos (o que perdura até os dias atuais) constituiu para os familiares uma fonte de sofrimento e
angústia, além de ter provocado neles um sentimento de insegurança, frustração
e impotência diante da abstenção das autoridades públicas em investigar os
fatos.
Igualmente, a Corte determinou que, face aos atos de
desaparecimento forçado de pessoas, o Estado Brasileiro passou a ter a obrigação de garantir o
direito à integridade pessoal dos familiares também por meio de investigações
efetivas.
Essas afetações, integralmente compreendidos na complexidade do
desaparecimento forçado, subsistirão enquanto persistam os fatores de
impunidade verificados.
DISPOSITIVO
(A) A Sentença da Corte Interamericana constitui, per se, uma forma de reparação.
(B) O Estado Brasileiro foi condenado a conduzir, de forma eficaz, perante a jurisdição
ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de
esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar
efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja.
(C) O Estado Brasileiro foi condenado a realizar todos os esforços para determinar o
paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os
restos mortais a seus familiares.
(D) O Estado Brasileiro foi condenado a oferecer tratamentos médicos, psicológicos ou psiquiátricos pleiteados pelas vítimas e, se for o caso, pagar o montante
estabelecido (aproximadamente US$ 5.000).
(E) O Estado Brasileiro foi condenado a realizar as publicações da sentença, conforme ordenado pela Corte Interamericana (Diário Oficial e site de órgão oficial).
(F) O Estado Brasileiro foi condenado a realizar ato público de reconhecimento de
responsabilidade internacional a respeito dos fatos do presente caso, na
presença de autoridades brasileiras e das vítimas.
(G) O Estado Brasileiro foi condenado à educar os integrantes das Forças Armadas no quesito "Direitos Humanos". Também foi condenado a dar prosseguimento às ações desenvolvidas em
matéria de capacitação e implementar, em prazo razoável, programa ou
curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os
níveis hierárquicos das Forças Armadas.
(H) O Estado Brasileiro foi condenado a adotar, em prazo razoável, as medidas necessárias à tipificação penal do delito de
desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os parâmetros
interamericanos. A Corte Interamericana salientou que não basta a simples apresentação de projeto de lei para dar cumprimento a esta obrigação. Enquanto cumpre
com esta medida, o Estado Brasileiro foi condenado a adotar todas as ações que garantam o
efetivo julgamento, e se for o caso, a punição em relação aos fatos
constitutivos de desaparecimento forçado através dos mecanismos existentes no
direito interno.
(I) O Estado Brasileiro foi condenado a continuar desenvolvendo as iniciativas de busca,
sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia,
assim como da informação relativa a violações de direitos humanos ocorridas
durante o regime militar, garantindo o acesso à mesma.
(J) O Estado Brasileiro foi condenado a pagar, às vítimas, indenizações por danos materiais, por danos
imateriais (US$ 45.000 ou US$ 15.000) e por restituição de custas e gastos (US$
8.000).
(K) O Estado Brasileiro foi condenado a realizar uma convocatória em, ao menos, um jornal
de circulação nacional e um da região onde ocorreram os fatos da Guerrilha do Araguaia (ou outra modalidade de comunicação adequada) para que, por um período de 24 meses,
contado a partir da notificação da Sentença proferida pela Corte Interamericana, os familiares dos camponeses façam prova de sua condição de familiares, permitindo ao Estado Brasileiro identificá-los e, conforme o caso,
considerá-los vítimas nos termos da Lei Nº 9.140/95 e desta Sentença.
(L) O Estado Brasileiro foi condenado a permitir que, por um prazo de seis meses, contado da notificação da Sentença da Corte Interamericana, os familiares de Francisco Manoel Chaves, Pedro Matias de Oliveira (“Pedro Carretel”), Hélio
Luiz Navarro de Magalhães e Pedro Alexandrino de Oliveira Filho, possam
apresentar-lhe, se assim desejarem, solicitações de indenização utilizando
os critérios e mecanismos estabelecidos no direito interno pela Lei nº 9.140/95.
(M) A Corte Interamericana assinalou prazo de seis meses, contado da notificação da sua Sentença, para apresentação, por familiares, de documentação que comprove que a data de falecimento das
pessoas indicadas nos parágrafos 181, 213, 225 e 244 do decisum é posterior a 10 de
dezembro de 1998.
(N) A Corte Interamericana salientou que supervisionará o cumprimento integral da Sentença por si prolatada, em conformidade com o estabelecido na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Dará por
concluído o caso da Guerrilha do Araguaia após o cumprimento integral de sua parte dispositiva. Assinalou que, dentro do prazo de um ano, a partir de sua notificação, o
Estado Brasileiro deverá apresentar ao Tribunal um informe sobre as medidas adotadas para
o seu cumprimento.
CONCLUSÃO
A Corte Interamericana decidiu, por unanimidade:
01. Admitir parcialmente a exceção preliminar de
falta de competência temporal interposta pelo Estado (falecimento de um dos guerrilheiros antes de 1998).
02. Rejeitar as demais
exceções preliminares interpostas pelo Estado.
Outrossim, declarou, por unanimidade, que:
03. As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a
investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis
com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir
representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem
para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou
semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos
humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.
04. O Estado Brasileiro é responsável pelo desaparecimento forçado e,
portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade
jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos
nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em
relação com o artigo 1.1 desse instrumento, em prejuízo das pessoas indicadas
em sua Sentença.
05. O Estado Brasileiro descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno
à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em
relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como consequência da
interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves
violações de direitos humanos. Da mesma maneira entendeu que o Estado Brasileiro é responsável pela
violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial previstos
nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em
relação aos artigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela falta de investigação dos
fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos
responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa
executada, indicados nos parágrafos 180 e 181 de sua Sentença.
06. O Estado Brasileiro foi responsabilizado pela violação do direito à liberdade de
pensamento e de expressão consagrado no artigo 13 da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, em relação com os artigos 1.1, 8.1 e 25 desse instrumento,
pela afetação do direito a buscar e a receber informação, bem como do direito
de conhecer a verdade sobre o ocorrido. Da mesma maneira, o Estado Brasileiro foi responsabilizado pela violação dos direitos às garantias judiciais estabelecidos no
artigo 8.1 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 13.1 do
mesmo instrumento, por exceder o prazo razoável da Ação Ordinária, todo o
anterior em prejuízo dos familiares indicados na Sentença.
07. O Estado foi responsabilizado pela violação do direito à integridade
pessoal, consagrado no artigo 5.1 da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse mesmo instrumento, em prejuízo dos
familiares indicados na Sentença.
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