quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Resumo de Sentença: Guerrilha do Araguaia e a Condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos

Centro Universitário de Brasília – Uniceub
Faculdade de Direito
Pós Graduação Lato Sensu em Direitos Sociais, Direito Ambiental e do Consumidor
Direitos Humanos
Professora Lilian Rose Rocha
Discente: Juliana Capra Maia
Resumo de Sentença
 
 
CONTEXTO 
Em abril de 1964, um golpe militar depôs o governo constitucional do Presidente João Goulart. A consolidação do regime militar baseou-se na Doutrina da Segurança Nacional e na promulgação de sucessivas normas de segurança nacional e normas de exceção, como os atos institucionais, “que funcionaram como pretenso marco legal para dar cobertura jurídica à escalada repressiva”.
Esse período foi caracterizado pela instalação de um aparelho de repressão que assumiu características de verdadeiro poder paralelo ao Estado e chegou ao seu “mais alto grau” com a promulgação do Ato Institucional Nº 05 em dezembro de 1968.
Entre outras manifestações repressivas nesse período, encontra-se o fechamento do Congresso Nacional, a censura completa da imprensa, a suspensão dos direitos individuais e políticos, da liberdade de expressão, da liberdade de reunião e da garantia do habeas corpus.
Também se estendeu o alcance da justiça militar e a Lei de Segurança Nacional introduziu, entre outras medidas, as penas perpétuas e de morte.
Entre 1969 e 1974, produziu-se “uma ofensiva fulminante sobre os grupos armados de oposição”. O mandato do Presidente Médici (1969-1974) representou “a fase de repressão mais extremada em todo o ciclo de 21 anos do regime militar” no Brasil.
Posteriormente, durante “os três primeiros anos [do governo do Presidente] Geisel [1974-1979], o desaparecimento de presos políticos, que antes era apenas uma parcela das mortes ocorridas, torna-se a regra predominante para que não ficasse estampada a contradição entre discurso de abertura e a repetição sistemática das velhas notas oficiais simulando atropelamentos, tentativas de fuga e falsos suicídios”.
Como consequência, a partir de 1974, oficialmente não houve mortes nas prisões, todos os presos políticos mortos desapareceram e o regime passou a não mais assumir o assassinato de opositores.

Segundo a Comissão Especial:
a) cerca de 50 mil pessoas foram detidas já nos primeiros meses de ditadura; 
b) 20 mil presos foram submetidos a torturas; 
c) Há 354 mortos e desaparecidos políticos; 
d) 130 pessoas foram expulsas do país; 
e) 4.862 pessoas tiveram seus mandatos e direitos políticos suspensos;
f) Centenas de camponeses foram assassinados.


A Comissão Especial salientou que o Brasil é o único país da região que não trilhou procedimentos penais para examinar as violações de direitos humanos ocorridas em seu período ditatorial, mesmo tendo oficializado, com a Lei Nº 9.140/95, o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas mortes e desaparecimentos denunciados. Isso tudo porque, em 1979, o Estado editou a Lei de Anistia.
 
 
A GUERRILHA DO ARAGUAIA
Denominou-se Guerrilha do Araguaia o movimento de resistência ao regime militar integrado por alguns membros do novo Partido Comunista do Brasil.
Esse movimento propôs-se a lutar contra o regime, “mediante a construção de um exército popular de libertação”. No início de 1972, às vésperas da primeira expedição do Exército à região do Araguaia, a Guerrilha contava com cerca de 70 pessoas, em sua maioria jovens.
Entre abril de 1972 e janeiro de 1975, entre três mil e dez mil integrantes do Exército, da Marinha, da Força Aérea, das Polícias Federal e Militar empreenderam repetidas campanhas de informação e repressão contra os membros da Guerrilha do Araguaia.
Nas primeiras campanhas, os guerrilheiros detidos não foram privados da vida ou tampouco desapareceram. Os integrantes das Forças Armadas receberam ordens de deter os prisioneiros e de “sepultar os mortos inimigos na selva, depois de sua identificação”. Para isso, eram “fotografados e identificados por oficiais de informação e depois enterrados em lugares diferentes na selva”.
No entanto, após uma “ampla e profunda operação de inteligência, planejada como preparativo da terceira e última investida de contra-insurgência”, houve uma mudança de estratégia das Forças Armadas.
Em 1973, a “Presidência da República, encabeçada pelo general Médici, assumiu diretamente o controle sobre as operações repressivas [e] a ordem oficial passou a ser de eliminação” dos capturados.
No final de 1974, não havia mais guerrilheiros no Araguaia, e há informação de que seus corpos foram desenterrados e queimados ou atirados nos rios da região.
Por outro lado, “o governo militar impôs silêncio absoluto sobre os acontecimentos do Araguaia e proibiu a imprensa de divulgar notícias sobre o tema, enquanto o Exército negava a existência do movimento”.
 
 
PRELIMINARES
Competência da Corte Interamericana
A Corte Interamericana entendeu ser competente, nos termos do artigo 62.3 da Convenção, para conhecer do presente caso, em razão o Brasil ser Estado Parte da Convenção Americana desde 25 de setembro de 1992 e de ter reconhecido a competência contenciosa da Corte em 10 de dezembro de 1998.
Questão: A Guerrilha do Araguaia ocorreu antes de 10 de dezembro de 1998.
Resposta da Corte: O argumento se aplica às mortes. Entretanto, O desaparecimento forçado é um crime continuado. O ato de desaparecimento e sua execução se iniciam com a privação da liberdade da pessoa e a subsequente falta de informação sobre seu destino, e permanecem até quando não se conheça o paradeiro da pessoa desaparecida e os fatos não tenham sido esclarecidos.
 
 
Carência de interesse processual
Para a Corte, "interesse processual" é uma figura do Direito Processual Civil Brasileiro.
Em seu entendimento, as ações adotadas pelo Brasil para reparar as violações cometidas ou para evitar sua repetição seriam relevantes para a análise da Corte Interamericana sobre o mérito do caso e, eventualmente, para as possíveis reparações que se ordenem, mas não teriam efeito sobre o exercício da competência da Corte para dele conhecer.  
 
 
Falta de esgotamento das vias internas
Cabe às vítimas utilizar todos os recursos internos disponíveis antes de recorrer ao Sistema Interamericano. De acordo com o Estado Brasileiro, não teriam sido esgotados os seguintes recursos judiciais internos:
a) a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 153, mediante a qual se solicitou que a anistia concedida pela Lei de Anistia Nº 6.683/79 não se estendesse aos crimes comuns praticados pelos agentes de repressão contra os opositores políticos;
b) a Ação Ordinária nº 82.00.024682-5, mediante a qual se solicitou a determinação do paradeiro dos desaparecidos, a localização dos restos mortais, o esclarecimento das circunstâncias da morte e a entrega do relatório oficial sobre as operações militares contra a Guerrilha do Araguaia;
c) a Ação Civil Pública nº 2001.39.01.000810-5, interposta pelo Ministério Público Federal para obter do Estado todos os documentos existentes sobre ações militares das Forças Armadas contra a Guerrilha;
d) a ação privada subsidiária para a persecução penal dos crimes de ação pública;
e) as iniciativas referentes à solicitação de indenizações, como a Ação Ordinária Civil de Indenização e a solicitação de reparação pecuniária, no âmbito da Lei Nº 9.140/95, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, e da Comissão de Anistia, de acordo com a Lei Nº 10.559/02, entre outras medidas de reparação.
A esse respeito, a Corte decidiu pelo indeferimento da preliminar, porquanto:
(a)  Uma objeção ao exercício de jurisdição da Corte Interamericana, baseada na suposta falta de esgotamento dos recursos internos, deve ser apresentada no momento processual oportuno, isto é, quando da análise da admissibilidade do procedimento perante a Comissão. Essa medida não teria sido observada pelo Estado Brasileiro.
Conforme sentença da Corte Interamericana, as alegações relativas à ADPF, à Ação Civil Pública, à possibilidade de interposição de uma ação penal privada subsidiária da ação pública e às diversas iniciativas de reparação foram expostas pelo Brasil, pela primeira vez, como parte de uma exceção preliminar por falta de esgotamento dos recursos internos em sua contestação à demanda, aproximadamente nove anos e oito meses depois de adotada a decisão de admissibilidade por parte da Comissão, ou seja, de maneira extemporânea.
(b)  No momento em que a Comissão emitiu o Relatório nº 33/01, em 06 de março de 2001, passados mais de 19 anos do início dessa ação, não havia decisão definitiva do mérito no âmbito interno. Por esse motivo, a Corte concluiu que o atraso do processo não podia ser considerado razoável, de modo que o esgotamento das vias internas foi considerado dispensável.
c)  Além disso, a partir dos argumentos das partes e das provas contidas no expediente, a Corte Interamericana observa que as alegações do Estado Brasileiro relativas à eficácia do recurso e à inexistência de um atraso injustificado na Ação Ordinária versam sobre questões relacionadas com o mérito do caso, uma vez que contradizem as alegações relacionadas com a suposta violação dos artigos 8, 13 e 25 da Convenção Americana.
 
 
Quarta instância
Em Outubro de 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil interpôs uma ADPF mediante a qual solicitou ao STF que conferisse, à Lei de Anistia, interpretação conforme com a Constituição Federal, de modo que declarasse que a anistia concedida por essa lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes de repressão contra opositores políticos, durante o regime militar.
Em 29 de abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal “declarou improcedente, por sete votos a dois, [a Arguição de Descumprimento nº 153]”, ao considerar que “a Lei de Anistia representou, em seu momento, uma etapa necessária no processo de reconciliação e redemocratização do país” e que “não se tratou de uma autoanistia”.
Com base nesta recente decisão, o Estado questionou a competência da Corte Interamericana para revisar decisões adotadas pelas mais altas cortes de um Estado, indicando que este Tribunal não pode analisar as questões de mérito da presente demanda ocorridas até 29 de abril de 2010, em virtude do não esgotamento dos recursos internos. Com a decisão da ADPF 153, verificou-se o esgotamento regular dos recursos internos, surgindo, inclusive, um novo obstáculo para a análise do mérito da demanda, a proibição da quarta instância.
A esse respeito, a Corte Interamericana entendeu que a ADPF não é um recurso que se possa considerar disponível, não somente porque não estava regulamentada no momento da interposição da denúncia perante a Comissão, mas também porque os particulares, como os familiares das supostas vítimas, não estão legitimados para utilizá-lo. De fato, os únicos legitimados para interpor essa ação são determinados funcionários e instituições do Estado, além de entidades coletivas da sociedade civil.
Entendeu, também, que não se solicita à Corte Interamericana a realização de exame da Lei de Anistia com relação à Constituição Nacional do Estado, questão de direito interno que não lhe compete e que foi matéria do pronunciamento judicial na ADPF 153. Solicita-se, ao revés, que a Corte Interamericana realizasse um "controle de convencionalidade", ou seja, uma análise da alegada incompatibilidade daquela lei com as obrigações internacionais do Brasil contidas na Convenção Americana.
Por tantos motivos, a Corte Interamericana rechaçou as preliminares.
 
 
MÉRITO
 
Violação do direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade e à liberdade pessoais
Matéria incontroversa.
Apenas há uma diferença relacionada com o número de vítimas.
A Comissão afirmou que foram vítimas de desaparecimento forçado 70 pessoas, enquanto os representantes das vítimas informaram que foram 69 pessoas. Por sua vez, o Estado, por meio da Lei nº 9.140/95, reconheceu sua responsabilidade pelo desaparecimento de 60 das supostas vítimas desaparecidas.
 
Violação do direito às garantias judiciais
Problema: aqui, a Corte Interamericana devia decidir se a Lei de Anistia sancionada em 1979 é ou não compatível com os direitos consagrados na Convenção Americana ou, dito de outra maneira, se aquela pode manter seus efeitos jurídicos a respeito de graves violações de direitos humanos, uma vez que o Estado Brasileiro obrigou-se internacionalmente a partir da ratificação da Convenção Americana.
Resposta da Corte: A obrigação assumida pelos Estados, de coibir e punir os delitos atentatórios dos direitos humanos, corresponde ao seu dever de organizar todo o aparato governamental e, em geral, todas as estruturas por meio das quais se manifesta o exercício do poder público, de maneira tal que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e pleno exercício dos direitos humanos.
Como consequência dessa obrigação, os Estados devem prevenir, investigar e punir toda violação dos direitos humanos reconhecidos pela Convenção. Também devem procurar o restabelecimento, caso seja possível, do direito violado e, se for o caso, a reparação dos danos provocados pela violação dos direitos humanos.
Se o aparato estatal age de modo que essa violação fique impune e não se reestabelece, na medida das possibilidades, à vítima a plenitude de seus direitos, pode-se afirmar que se descumpriu o dever de garantir às pessoas sujeitas a sua jurisdição o livre e pleno exercício de seus direitos.
As anistias ou figuras análogas vêm sendo obstáculos alegados por alguns Estados para deixar de investigar e de punir os responsáveis por violações graves aos direitos humanos.
Por isso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, os órgãos das Nações Unidas e outros organismos universais e regionais de proteção dos direitos humanos pronunciaram-se sobre a incompatibilidade das leis de anistia, relativas a graves violações de direitos humanos com o Direito Internacional e as obrigações internacionais dos Estados. Ex.: Peru, Chile, Argentina, El Salvador, Haiti, Colômbia e Uruguai.
Do mesmo modo, a Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993, enfatizou, na sua Declaração e Programa de Ação, que os Estados “devem revogar a legislação que favoreça a impunidade dos responsáveis por violações graves de direitos humanos, [...] e castigar as violações”, destacando que em casos de desaparecimentos forçados os Estados estão obrigados, em primeiro lugar, a impedi-las e, uma vez que tenham ocorrido, a julgar os autores dos fatos.
 
A contrariedade das anistias relativas a violações graves de direitos humanos com o Direito Internacional foi afirmada também pelos tribunais e órgãos de todos os sistemas regionais de proteção de direitos humanos.
Por tantos motivos, a Corte Interamericana considerou que a interpretação e aplicação da Lei de Anistia afetou o dever internacional do Estado Brasileiro de investigar e punir as graves violações de direitos humanos, ao impedir que os familiares das vítimas no presente caso fossem ouvidos por um juiz, conforme estabelece o artigo 8.1 da Convenção Americana.
Também considerou que o Brasil violou o direito à proteção judicial consagrado no artigo 25 da mesma convenção, precisamente pela falta de investigação, persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos fatos, descumprindo ainda o artigo 1.1 da Convenção.
Adicionalmente, ao aplicar a Lei de Anistia impedindo a investigação dos fatos e a identificação, julgamento e eventual sanção dos possíveis responsáveis por violações continuadas e permanentes, como os desaparecimentos forçados, a Corte entendeu que o Estado Brasileiro descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno, obrigação consagrada no artigo 2 da Convenção Americana.
Dada sua manifesta incompatibilidade com a Convenção Americana, as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos carecem de efeitos jurídicos. Em consequência, não podem continuar a representar um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, nem podem ter igual ou similar impacto sobre outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.
Observa-se que a incompatibilidade em relação à Convenção inclui as anistias de graves violações de direitos humanos e não se restringe somente às denominadas “autoanistias”.
[...] quando um Estado é Parte de um tratado internacional, como a Convenção Americana, todos os seus órgãos, inclusive seus juízes, também estão submetidos àquele, o que os obriga a zelar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam enfraquecidos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e finalidade, e que desde o início carecem de efeitos jurídicos.
O Poder Judiciário, nesse sentido, está internacionalmente obrigado a exercer um “controle de convencionalidade” ex officio entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no marco de suas respectivas competências e das regulamentações processuais correspondentes.
 
Conforme dispõe o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, os Estados não podem, por razões de ordem interna, descumprir obrigações internacionais.
Com respeito à suposta afetação ao princípio de legalidade e irretroatividade, a Corte já ressaltou que o desaparecimento forçado constitui um delito de caráter contínuo ou permanente, cujos efeitos não cessam enquanto não se estabeleça a sorte ou o paradeiro das vítimas e sua identidade seja determinada, motivo pelos quais os efeitos do ilícito internacional em questão continuam a atualizar-se.
Portanto, o Tribunal observa que, em todo caso, não haveria uma aplicação retroativa do delito de desaparecimento forçado porque os fatos do presente caso, que a aplicação da Lei de Anistia deixa na impunidade, transcendem o âmbito temporal dessa norma em função do caráter contínuo ou permanente do desaparecimento forçado.
Com base nessas considerações, a Corte Interamericana concluiu que, devido à interpretação e à aplicação conferidas à Lei de Anistia (que careceriam de efeitos jurídicos a respeito de graves violações de direitos humanos, nos termos antes indicados), o Brasil descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno à Convenção, obrigação essa prevista no Artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo tratado.
Adicionalmente, o Tribunal concluiu que, pela falta de investigação dos fatos, bem como da falta de julgamento e punição dos responsáveis, o Estado Brasileiro teria violado os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo tratado.
 
Violação do direito à liberdade de pensamento e de expressão
Gereneralidades / antecedentes: Em julgados anteriores, a Corte uniformizou entendimento segundo o qual na Convenção Americana, o direito à liberdade de pensamento e de expressão compreende “não apenas o direito e a liberdade de expressar seu próprio pensamento, mas também o direito e a liberdade de buscar, receber e divulgar informações e ideias de toda índole”.
Assim como a Convenção Americana, outros instrumentos internacionais de direitos humanos, tais como a Declaração Universal de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, estabelecem um direito positivo a buscar e a receber informação.
Por outro lado, a Corte Interamericana também já se manifestou no sentido de que, em uma sociedade democrática, é indispensável que as autoridades estatais sejam regidas pelo princípio de máxima divulgação, que estabelece a presunção de que toda informação é acessível, sujeita a um sistema restrito de exceções.
Adicionalmente, os organismos internacionais também já determinaram que toda pessoa -- principalmente os familiares das vítimas de graves violações de direitos humanos -- tem o direito de conhecer a verdade. Por conseguinte, os familiares das vítimas e a sociedade devem ser informados de todo o ocorrido com relação a essas violações.
O direito dos familiares de vítimas de graves violações de direitos humanos de conhecer a verdade está compreendido no direito de acesso à justiça.
Finalmente, a Corte Interamericana também já estabeleceu que, em casos de violações de direitos humanos, as autoridades estatais não se podem amparar em mecanismos como o segredo de Estado ou a confidencialidade da informação, ou em razões de interesse público ou segurança nacional, para deixar de aportar a informação requerida pelas autoridades judiciais ou administrativas encarregadas da investigação ou processos pendentes.  
 
Problema: a Corte Interamericana apenas pode se pronunciar a respeito da atuação do Estado Brasileiro referente à entrega de informação somente por fatos ocorridos após 10 de dezembro de 1998, data a partir da qual o Tribunal tem competência sobre alegadas violações à Convenção atribuídas ao Brasil (Ação Ordinária e Ação Civil Pública).
Ao iniciar-se a competência temporal deste Tribunal, em 10 de dezembro de 1998, após 16 anos, o procedimento da Ação Ordinária ainda se encontrava em trâmite.
Nesse contexto, em 09 de abril de 1999, o Estado Brasileiro, por meio da AGU, apresentou um escrito no qual indicou que, como consequência de uma nova orientação empreendida a partir da consolidação do regime democrático, havia sido promulgada a Lei nº 9.140/95, que reconheceu como mortas as pessoas desaparecidas no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 e criou a Comissão Especial que tinha, entre outras funções, a realização de todos os esforços para localizar os corpos das pessoas desaparecidas.
 
Resposta do Brasil às demandas da Comissão: “Não há documentos”.
Manifestação da Corte: Alegar, em um procedimento judicial, a falta de prova sobre a existência de certa informação, sem haver indicado ao menos quais foram as diligências realizadas para confirmar ou não sua existência, possibilita a atuação discricionária e arbitrária do Estado de facilitar ou não determinada informação, gerando com isso insegurança jurídica a respeito do exercício desse direito.
Cabe destacar que a Primeira Vara Federal ordenou à União, em 30 de junho de 2003, a entrega dos documentos em um prazo de 120 dias.
Apesar disso, passaram-se seis anos, durante os quais a União interpôs vários recursos até que esta entrega se fez efetiva, o que resultou na vulnerabilidade dos familiares das vítimas e afetou seu direito de receber informação e de conhecer a verdade sobre o ocorrido. A Ação Ordinária extrapolou todos os prazos razoáveis (11 anos desde o ajuizamento até a execução).
Na Ação Civil Pública, pede-se a exibição reservada dos documentos relativos à Guerrilha. Essa providência não satisfaz o direito das vítimas à verdade.
O direito de aceder à informação pública em poder do Estado não é um direito absoluto, podendo estar sujeito a restrições. No entanto, estas devem, em primeiro lugar, estar previamente fixadas por lei – no sentido formal e material –, como meio de assegurar que não fiquem ao arbítrio do poder público.
Em segundo lugar, as restrições estabelecidas por lei devem responder a um objetivo permitido pelo artigo 13.2 da Convenção Americana, ou seja, devem ser necessárias para assegurar “o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas” ou “a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas”.
As limitações que se imponham devem ser necessárias em uma sociedade democrática e orientadas a satisfazer um interesse público imperativo. Isto implica que, de todas as alternativas, devem ser escolhidas aquelas medidas que restrinjam ou interfiram, na menor medida possível, no efetivo exercício do direito de buscar e de receber a informação.
Adicionalmente, para garantir o exercício pleno e efetivo desse direito, é necessário que a legislação e a gestão estatal sejam regidas pelos princípios de boa-fé e de máxima divulgação, de modo que toda a informação em poder do Estado se presuma pública e acessível, submetida a um regime limitado de exceções.
Igualmente, toda negação de informação deve ser motivada e fundamentada, correspondendo ao Estado o ônus da prova referente à impossibilidade de revelar a informação e, ante a dúvida ou o vazio legal, deve prevalecer o direito de acesso à informação.
Finalmente, ante a recusa de acesso a determinada informação sob seu controle, o Estado deve garantir que exista um recurso judicial simples, rápido e efetivo que permita determinar se houve uma violação do direito de acesso à informação e, se for o caso, ordenar ao órgão correspondente proceda à entrega da mesma.
 
 
Violação do direito à integridade pessoal
No entendimento da Corte Interamericana, familiares de vítimas também podem ser considerados vítimas. De acordo com seus julgados anteriores, haveria presunção juris tantum a respeito de mães e pais, filhas e filhos, esposos e esposas, companheiros e companheiras permanentes (chamados “familiares diretos”). No caso desses familiares diretos, cabe ao Estado descaracterizar a presunção. Nos demais casos, a Corte deve analisar se na prova que consta do expediente há comprovação da afetação à integridade pessoal da suposta vítima.
No caso da Guerrilha do Araguaia, a Corte Interamericana entendeu que houve violação do direito à integridade pessoal dos familiares das vítimas em virtude:
a) do impacto provocado neles e no seio familiar em função do desaparecimento forçado de seus entes queridos;
b) da falta de esclarecimento das circunstâncias de sua morte;
c) do desconhecimento de seu paradeiro final; e
d) da impossibilidade de dar a seus restos o devido sepultamento.
Observe-se que, conforme jurisprudência da Corte Interamericana, a privação do acesso à verdade dos fatos sobre o destino de um desaparecido constitui uma forma de tratamento cruel e desumano para os familiares próximos.
Dessa forma, a Corte Interamericana considerou que a incerteza e a ausência de informação por parte do Estado Brasileiro acerca dos acontecimentos (o que perdura até os dias atuais) constituiu para os familiares uma fonte de sofrimento e angústia, além de ter provocado neles um sentimento de insegurança, frustração e impotência diante da abstenção das autoridades públicas em investigar os fatos.
Igualmente, a Corte determinou que, face aos atos de desaparecimento forçado de pessoas, o Estado Brasileiro passou a ter a obrigação de garantir o direito à integridade pessoal dos familiares também por meio de investigações efetivas.
Essas afetações, integralmente compreendidos na complexidade do desaparecimento forçado, subsistirão enquanto persistam os fatores de impunidade verificados.
 
 
DISPOSITIVO
(A) A Sentença da Corte Interamericana constitui, per se, uma forma de reparação.
(B) O Estado Brasileiro foi condenado a conduzir, de forma eficaz, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja.
(C) O Estado Brasileiro foi condenado a realizar todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares.
(D) O Estado Brasileiro foi condenado a oferecer tratamentos médicos, psicológicos ou psiquiátricos pleiteados pelas vítimas e, se for o caso, pagar o montante estabelecido (aproximadamente US$ 5.000).
(E) O Estado Brasileiro foi condenado a realizar as publicações da sentença, conforme ordenado pela Corte Interamericana (Diário Oficial e site de órgão oficial).
(F) O Estado Brasileiro foi condenado a realizar ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos do presente caso, na presença de autoridades brasileiras e das vítimas.
(G) O Estado Brasileiro foi condenado à educar os integrantes das Forças Armadas no quesito "Direitos Humanos". Também foi condenado a dar prosseguimento às ações desenvolvidas em matéria de capacitação e implementar, em prazo razoável, programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas.
(H) O Estado Brasileiro foi condenado a adotar, em prazo razoável, as medidas necessárias à tipificação penal do delito de desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os parâmetros interamericanos. A Corte Interamericana salientou que não basta a simples apresentação de projeto de lei para dar cumprimento a esta obrigação. Enquanto cumpre com esta medida, o Estado Brasileiro foi condenado a adotar todas as ações que garantam o efetivo julgamento, e se for o caso, a punição em relação aos fatos constitutivos de desaparecimento forçado através dos mecanismos existentes no direito interno.
(I) O Estado Brasileiro foi condenado a continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa a violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar, garantindo o acesso à mesma.
(J) O Estado Brasileiro foi condenado a pagar, às vítimas, indenizações por danos materiais, por danos imateriais (US$ 45.000 ou US$ 15.000) e por restituição de custas e gastos (US$ 8.000).
(K) O Estado Brasileiro foi condenado a realizar uma convocatória em, ao menos, um jornal de circulação nacional e um da região onde ocorreram os fatos da Guerrilha do Araguaia (ou outra modalidade de comunicação adequada) para que, por um período de 24 meses, contado a partir da notificação da Sentença proferida pela Corte Interamericana, os familiares dos camponeses façam prova de sua condição de familiares, permitindo ao Estado Brasileiro identificá-los e, conforme o caso, considerá-los vítimas nos termos da Lei Nº 9.140/95 e desta Sentença.
(L) O Estado Brasileiro foi condenado a permitir que, por um prazo de seis meses, contado da notificação da Sentença da Corte Interamericana, os familiares de Francisco Manoel Chaves, Pedro Matias de Oliveira (“Pedro Carretel”), Hélio Luiz Navarro de Magalhães e Pedro Alexandrino de Oliveira Filho, possam apresentar-lhe, se assim desejarem, solicitações de indenização utilizando os critérios e mecanismos estabelecidos no direito interno pela Lei nº 9.140/95.
(M) A Corte Interamericana assinalou prazo de seis meses, contado da notificação da sua Sentença, para apresentação, por familiares, de documentação que comprove que a data de falecimento das pessoas indicadas nos parágrafos 181, 213, 225 e 244 do decisum é posterior a 10 de dezembro de 1998.
(N) A Corte Interamericana salientou que supervisionará o cumprimento integral da Sentença por si prolatada, em conformidade com o estabelecido na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Dará por concluído o caso da Guerrilha do Araguaia após o cumprimento integral de sua parte dispositiva. Assinalou que, dentro do prazo de um ano, a partir de sua notificação, o Estado Brasileiro deverá apresentar ao Tribunal um informe sobre as medidas adotadas para o seu cumprimento.
 
 
CONCLUSÃO
A Corte Interamericana decidiu, por unanimidade:
01. Admitir parcialmente a exceção preliminar de falta de competência temporal interposta pelo Estado (falecimento de um dos guerrilheiros antes de 1998).
02. Rejeitar as demais exceções preliminares interpostas pelo Estado.
Outrossim, declarou, por unanimidade, que:
03. As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.
04. O Estado Brasileiro é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse instrumento, em prejuízo das pessoas indicadas em sua Sentença.
05. O Estado Brasileiro descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos humanos. Da mesma maneira entendeu que o Estado Brasileiro é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela falta de investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada, indicados nos parágrafos 180 e 181 de sua Sentença.
06. O Estado Brasileiro foi responsabilizado pela violação do direito à liberdade de pensamento e de expressão consagrado no artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com os artigos 1.1, 8.1 e 25 desse instrumento, pela afetação do direito a buscar e a receber informação, bem como do direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido. Da mesma maneira, o Estado Brasileiro foi responsabilizado pela violação dos direitos às garantias judiciais estabelecidos no artigo 8.1 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 13.1 do mesmo instrumento, por exceder o prazo razoável da Ação Ordinária, todo o anterior em prejuízo dos familiares indicados na Sentença.
07. O Estado foi responsabilizado pela violação do direito à integridade pessoal, consagrado no artigo 5.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse mesmo instrumento, em prejuízo dos familiares indicados na Sentença. 

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