Universidade de Brasília - UnB
Instituto de Ciências Sociais - ICS
Departamento de Sociologia - SOL
Ciclo de palestras: "As consequências do pensamento radical"
Professor Luiz de Gusmão
Aluna: Juliana Capra Maia
Esquema de Leitura: NIETZSCHE, F. W. Além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do futuro. Tradução de Márcio Pugliesi/ USP, Hemus S.A, 2001, prefácio, partes 01, 02, 03, 04 e 05.
Prefácio
** Objetivo declarado de, uma vez concluída a etapa "afirmativa" do seu trabalho, desconstruir valores e estruturas da sociedade ocidental moderna. "Além do bem e do Mal" seria um livro escrito visando à desconstrução.
As minhas finalidades para os anos seguintes estavam fixadas com a máxima precisão. Terminada a parte afirmativa de meu objetivo, surgia agora a meta negativa, quer na palavra, quer na ação: a inversão de todos os valores que tiveram curso e vez nesse período, a guerra suprema, a evocação de um dia decisivo. Neste período efetiva-se a busca de caracteres semelhantes ao meu, pesquisa lenta e demorada, de individualidades transbordantes de energia que pudessem ajudar-me no mister de destruição. (p. 4, apud "Ecce Homo"; parte III, "Porque escrevo bons livros").
** Ruptura com a filosofia do seu tempo, a metafísica dogmática. Crítica ao platonismo do Ocidente e aos Vedas, na Ásia. Nietzsche os compara à astrologia, "a serviço da qual foram dispendidos mais dinheiro, trabalho, perspicácia e paciência de que até agora já se dispendeu com uma ciência positiva qualquer" (p. 7).
[...] há um bom motivo para esperar que em filosofia o dogmatizar, ainda que tenha esbanjado frases solenes e aparentemente incontestáveis, tenha sido uma nobre peraltice de diletantes e que está próximo o tempo em que se compreenderá cada vez mais quão mesquinhas são as bases dos edifícios sublimes e aparentemente inabaláveis, erigidos pelos filósofos dogmáticos. (p. 7).
** O "pior, o mais pertinaz e o mais perigoso de todos os erros foi o de um filósofo dogmático e precisamente a invenção platônica do puro espírito e do bom por si mesmo" (p.8). Defender a existência do "bom em si mesmo" demanda desconsiderar a realidade, renegar a perspectiva (que é uma condição fundamental da vida humana).
** Cristianismo > Platonismo pasteurizado, simplificado, para ser compreendido e absorvido pelas grandes massas. Ou seja, em Nietzsche, a crítica ao platonismo é, também, uma crítica ao cristianismo.
- A Europa estaria vivendo um momento de tensão contra o clericalismo. Essa tensão foi aliviada, temporariamente, pelo jesuitismo e pela difusão das ideias democráticas. Mas o arco continua teso.
Parte 01: O preconceito dos filósofos
** Nietzsche sintetiza o preconceito dos filósofos metafísicos na seguinte ideia: "De uma coisa ruim, não pode brotar uma coisa boa. Por isso, para que exista uma coisa boa, ela deve ter derivado do Supremo Bem".
** Desconfiança em relação à racionalidade humana. Ela seria mais uma característica entre tantas outras. Teria o mesmo peso que os instintos. Aliás, seria, ela mesma, um mero fruto dos instintos humanos ("o consciente jamais se opõe de modo decisivo ao instintivo"). Leia-se:
Terminei por acreditar que a maior parte do pensamento consciente deve incluir-se entre as atividades instintivas sem se excetuar a pensamento filosófico. Cheguei a essa idéia depois de examinar detidamente o pensamento dos filósofos e de ler as suas entrelinhas. [...]. A maior parte do pensamento consciente de um filósofo está governada por seus instintos e forçosamente conduzido por vias definidas. Atrás de toda lógica e da aparente liberdade de seus movimentos, há valorações, ou melhor, exigências fisiológicas impostas pela necessidade de manter um determinado gênero de vida. (p. 13).
** O apego dos filósofos a conceitos metafísicos falsos tais como os "juízos sintéticos a priori" serve para conservar a espécie, para acelerar, enriquecer e manter a vida humana. Por isso, Nietzsche afirma que, apesar de serem concepções falsas, elas não devem ser rechaçadas. Aqui, o "não-verdadeiro" seria condição da sobrevivência humana.
Admitir que o não-verdadeiro é a condição da vida, é opor-se
audazmente ao sentimento que se tem habitualmente dos
valores. P. 13.
** A metafísica não seria mais que um punhado de preconceitos dos filósofos ("afirmação arbitrária, de um capricho, de uma intuição ou
de um desejo intimo e abstrato", p. 13), defendidos com argumentos rebuscados e veementes, ao ponto de serem denominados "verdades". Embora não o confessem, os filósofos são, na verdade, advogados. Isso quer dizer que, para Nietzsche, todo filósofo é um sofista? O argumento incluiria a si mesmo?
Em toda filosofia as intenções morais (ou
imorais) constituem a semente donde nasce a planta completa. p. 15.
** Doutrinas metafísicas sempre seriam teleológicas, isto é, teriam como premissa um objetivo / uma agenda secreta determinada pelo filósofo.
** Crítica ao estoicismo. Falácia do imperativo estoico: "viver de acordo com a natureza". Nietzsche argumenta que:
Viver é querer ser diferente da Natureza, formar juízos de valor, preferir, ser injusto, limitado, querer ser diferente! Admitindo que o lema "de acordo com a Natureza" signifique no fundo "de acordo com a vida" seria possível que atuásseis de outra forma? [...]. Tudo isso, entretanto, é uma velha e eterna história, a filosofia, no fundo da Natureza, e seu contexto visível, é apenas esse instinto tirânico: a vontade de potência em seu aspecto mais intelectual, a vontade de "criar o mundo" e implantar nele a causa primeira. p. 17 e 18.
** Crítica a Kant e à filosofia alemã. Invenção de faculdades humanas, tais como a capacidade de formular juízos sintéticos a priori (Kant) e a intuição intelectual (Schelling). Como existiriam? Respostas dos filósofos: "por uma faculdade". Mas essa é uma resposta tautológica, não explicativa, tal como aquela fornecida pelo médico de Molière.
- Ao invés de perguntar como juízos sintéticos a priori são possíveis, sugere Nietzsche que nos perguntemos "por que precisamos deles". E precisamos deles porque, verdadeiros ou falsos, naturais ou criados, são indispensáveis à sobrevivência da nossa espécie. São indispensáveis à sociabilidade: é isso?
** Teorias heliocêntricas (Copérnico) e teorias atômicas constituem triunfo da fé na ciência sobre as evidências dos sentidos. O mesmo se aplica à crença na "alma", que seria uma espécie de atomismo aplicado à psique.
** Instinto motor do ser orgânico: vontade de potência (e não instinto de autopreservação, que é uma mera consequência da vontade de potência).
** Física >> Saber proletário, plebeu, que encanta pelo sensualismo. Seria uma explicação do universo para os homens, e não uma descrição do universo tal e qual.
** Filosofia << >> Linguagem. Linguagens aparentadas resultam em filosofias com conclusões semelhantes.
A estranha similaridade que guardam entre si todas as filosofias indianas, gregas e alemãs, tem uma explicação simples. Efetivamente, quando há parentesco lingüística é inevitável que em virtude de uma filosofia gramatical, exercendo no inconsciente as mesmas funções gramaticais em domínio e direção, tudo se encontra preparado para um desenvolvimento análogo aos sistemas filosóficos, enquanto que o caminho parece fechado para quaisquer outras possibilidades de interpretação do universo. As filosofias do grupo lingüística uro-altaico (nas quais a noção de sujeito está pouco desenvolvida) provavelmente observaram e interpretaram o mundo com outros olhos e seguiram por caminhos diferentes dos indo-europeus ou muçulmanos. P. 29/30.
** Livre arbítrio. O império da vontade é uma ficção (mito) criada pelos homens para sentirem que possuem algum poder sobre si mesmos e sobre outros homens ao seu redor. Quando utilizado de forma determinista, resultará em dois grupos:
- O primeiro grupo, formado por aqueles que se recusam a dividir a "responsabilidade" de sua crença em si mesmo, o seu direito pessoal, o produto de seu próprio mérito e da sua própria ação. Castas vaidosas.
- O segundo grupo, formado por aqueles que, recusando toda responsabilidade, impulsionados pelo desprezo de si mesmos e ansiosos de livrar-se sem considerar sobre quem ou onde caia a pesada carga de seu eu. Quando estes escrevem livros tendem a empreender a defesa dos malfeitores, seu disfarce mais sutil é simular uma espécie de socialismo da piedade e, natural e efetivamente, o fatalismo dos fracos de vontade é maravilhosamente embelezado quando consegue apresentar-se como "religion de la souffrance humaine". p. 31.
** Crítica à ciência e às pretensas leis da natureza. "Leis da natureza" não são texto (dado), mas interpretações (construído). Fruto do plebeísmo da ciência e do apego da alma moderna à democracia: "Em todas as partes, todos são iguais segundo a natureza", ou seja, "mestres e plebe estão igualmente submetidos às leis naturais". Explicação alternativa às "leis naturais": vontade de potência. "Leis naturais" não são mais do que o resultado brutal e desapiedado de vontades tirânicas. Como seres inanimados, tais como o núcleo do planeta (que interfere diretamente no eletromagnetismo), podem ter "vontade" de qualquer coisa? Mesmo se considerarmos "vontade" como uma realidade que não se limita à razão, aqui, a relação causa > consequência utilizada na formulação das leis naturais é uma explicação bem mais convincente... Chamar toda e qualquer energia de "vontade" não é forçado? "Vontade" implica "intenção"?
** A psicologia é governada por moralismos. Não de aceita que frutos "bons" possam ter germinado em "árvores ruins". O autor a concebe, por sua vez, como uma morfologia e como fruto da vontade de potência. Assim, ódio, inveja, cobiça, comando constituiriam elementos fundamentais à vida.
Parte 02: O espírito livre
** O homem de alta estirpe e refinamento espiritual procura automaticamente o isolamento, a libertação em relação à plebe ignara, à massa. Mas para adquirir conhecimento, é indispensável misturar-se às "más companhias".
** Se tiver sorte, encontrará pelo caminho os cínicos, já que o cinismo é "a única força sob a qual as almas vulgares roçam o que se chama sinceridade" p. 39.
** Para ser um espírito livre, ou seja, para ser um homem independente, há necessidade de força e de audácia. Os homens independentes são tão diferentes que não despertam a compaixão dos demais. Devem, pois, acostumar-se ao fato de estarem sozinhos.
- O que alimenta o espírito livre é geralmente o que envenena a plebe ignara. Por sua vez, transferidas a um filósofo, as virtudes dos homem ordinários lhe viciarão, lhe debilitarão, lhe degenerarão.
** # 32. Ao longo de toda a Pré-História (período mais longo em que viveu a humanidade) e mesmo em sociedades como a chinesa, um ato é valorado de acordo com as suas consequências. O ato em si e a intenção por trás do ato eram de todo irrelevante. Hoje ocorre uma inversão: julga-se o ato pela intenção de quem agiu. Ora, mas a "intenção declarada", tal como a epiderme, mais esconde do que mostra. Ou seja, a intenção é apenas mais um signo, mais um sintoma que deve ser interpretado. Sob tal perspectiva, a moral das intenções é apenas um preconceito, um juízo precipitado e provisório, algo que deve ser superado.
** # 33. Desconfiar de todo o sentimento de dedicação e de sacrifício pelo próximo, de toda a moral da abnegação, de toda "concepção desinteressada".
** # 34. A separação entre essência e aparência e entre verdadeiro e falso são meros preconceitos da filosofia. Também é mero preconceito acreditar que a essência (ou a verdade) é melhor que a aparência (falso). A vida não seria possível sem toda uma enorme parafernália de aparências. Ademais, supondo-se que fosse possível, se se suprimisse o "mundo aparente" nada restaria da tão buscada "essência".
Não bastaria admitir graus de aparência, como quem falasse de matizes e harmonia, mais ou menos claros ou obscuros, valores diferentes para empregar a linguagem dos pintores? P. 47.
** # 36. Não nos é dado, pelo nosso pensamento, alcançar qualquer "verdade" por trás dos nossos instintos, pelo simples fato de que o nosso pensamento não reflete nada além da relação entre esses instintos.
Energia (em qualquer de suas formas) = Vontade de Potência.
- Uma "vontade" só pode laborar sobre outra "vontade": sempre que se vislumbram "efeitos", constata-se a predominância de uma vontade sobre outra.
- Todo processo mecânico é alimentado por uma força eficiente, ou seja, revela uma "vontade-força".
- Ou seja, o mundo seria apenas e tão-somente "vontade de potência".
** #41. Como ser um espírito livre? Grifei:
É importante demonstrar a si mesmo que se está destinado à independência e ao mando, porém é preciso que se o faça a tempo. Não se deve afastar a obrigação de fazer estas provas, mas também não ligar-se a ninguém, porque toda pessoa é uma prisão. E muito menos ligar-se a uma pátria, ainda que seja a mais maltrapilha e mendicante, e não esquecer que é menos difícil desligar-se de uma pátria vitoriosa. Não se deixar prender por um sentimento de compaixão, ainda que seja em favor de homens superiores, cujo martírio e angústia não tivesse defesa. Não se apegar a uma ciência, ainda que nos seduzam as descobertas que parece nos reservar. Não se prender às próprias virtudes e ser vitimado, como um todo, por uma de nossas qualidades particulares, por exemplo, por nossa "hospitalidade"; como o perigo dos perigos nos alunos nobres e ricos que se dissipam prodigamente e quase com indiferença, desenvolvendo mesmo o vicio da virtude da liberalidade! Não nos apegarmos a nossas virtudes, não nos sacrificarmos a uma inclinação particular. Deve-se saber concentrar-se e conservar-se, o que é a melhor prova de independência. P. 53.
** #43. Filósofos do amanhã: pessoas que arriscam, que tentam. Certamente, serão amigos de suas próprias verdades, mas não serão pensadores dogmáticos. "Deve-se renunciar ao mau gosto de querer estar de acordo com
um grande número de pessoas". P.53.
- "Bem comum": contradição em termos. Tudo o que pode ser desfrutado em comum é medíocre e de pouco valor.
Grandes coisas para os grandes; abismos para os profundos; refinamentos aos refinados; raridade para os raros.
** #44. Para o autor, os "Livres pensadores" de sua época, entusiastas das ideias modernas de "igualdade dos direitos" e da "compaixão para com os que sofrem", eram apenas escravos a serviço do gosto democrático, pessoas em busca "do rebanho e da campina verdejante".
- Esses autores considerariam que o sofrimento seria algo que deveria ser exterminado. Mas, ressalva Nietzsche, "Em que condições e em que forma a planta humana desenvolveu-se mais vigorosamente até agora? Acreditamos que isto se produziu sempre em condições completamente opostas, que foi necessário que o perigo que acicata a vida humana crescesse até a enormidade. [...] Tudo que existe no homem de animal predador ou de réptil, é da mesma forma que seu oposto, útil para elevar o nível da espécie humana". P. 54.
Nós temos afastado o servilismo implicado pelas honras, dinheiro, cargos públicos ou arrebatação dos sentidos, com certo agradecimento à desgraça e às enfermidades; agradecidos a Deus, ao diabo, à ovelha e ao inseto que se reúnem em nós, com uma curiosidade que raia à enfermidade. Investigamos até à crueldade, dispostos a encher nossas mãos com aquilo que repugna aos estômagos capazes de digerir as coisas mais indigestas. P. 54.
Parte 03: O fenômeno religioso
** Refere-se ao cristianismo como "mania religiosa", "neurose religiosa" e "infecção", mais adequada ao espírito dos povos latinos que ao espírito dos povos germânicos. Excertos:
A fé cristã é, desde seus primórdios, sacrifício, sacrifício de toda liberdade, de toda independência do espírito; ao mesmo tempo, escravização e escárnio de si mesmo, mutilação de si. [...]. É o Oriente, o profundo Oriente, o escravo oriental, que assim se vinga de Roma e de sua tolerância aristocrática e frívola [de sua] indiferença estóica e sorridente contra a seriedade da fé, que suscitou o desdém dos escravos contra seus senhores, que os lançou em rebelião contra esses. P. 58.
Manter-se céptico diante da dor, que no fundo é uma postura da moral aristocrática, contribuiu grandemente para a grande insurreição dos escravos, começada com a revolução francesa. P. 59
Onde quer que tenha se manifestado a neurose religiosa, encontramo-la vinculada a três perigosas prescrições: solidão, jejum e castidade. [...]. Entre os sintomas mais comuns que costumam acompanhá-la encontra-se ainda uma imprevista e desenfreada volúpia [...], libidinagem que se converte com a mesma celeridade em fanatismo de contrição, em renegação do mundo e da vontade. P. 59.
** Mesmo os homens mais fortes se admiram dos santos. Santos são enigmas: sujeição de si mesmo e privação voluntária. Mas por que os fascina? Porque os fortes vêem nesses santos algo que eles mesmos possuem: vontade de poder. Domínio da vontade, do eu, sobre a natureza.
** Maior religiosidade implica mais tempo desprendido com orações, ou seja, menor disposição para o trabalho, encarado como atividade aviltante. Maior dedicação ao labor, por sua vez, reduziria os impulsos religiosos. Por isso, a sociedade moderna, intensamente dominada pelo trabalho, é uma sociedade eminentemente ateia.
- Nietzsche ressalta que não se trata, aqui, de um ateísmo militante. Se determinados rituais religiosos forem exigidos, eles serão performados. A sociedade moderna não é "contra-religiosa". Ela é apenas indiferente à religião.
A estes indiferentes pertence atualmente o grande número de protestantes da classe média, particularmente nos grandes centros obreiros do comércio e da indústria bem como a maioria dos doutores laboriosos e tudo que vive na ou da universidade. P. 68.
** Os filósofos de espírito livre, utilizar-se-ão da religião como um meio de elevação e educação. A educação religiosa, contudo, teria papel diferente entre os fortes e os fracos.
- Para os fortes, a educação religiosa é instrumento de poder sobre os demais e sobre si mesmo. Deve ser meio, não finalidade.
"Para os fortes, para os independentes, preparados e predestinados a dominar, nos quais se personificam o intelecto e a arte de uma raça dominante, a religião é um meio a mais para suprimir os obstáculos, para poder reinar: é um vinculo que conjuga dominadores e súditos, que revela e presentifica aos dominadores a consciência dos súditos, naquilo que esta tem de mais abscôndito, mais íntimo, aquilo precisamente desejaria escapar à obediência [...]. ". P.71.
"[...] a religião proporciona condições a alguns indivíduos para preparar-se a uma futura dominação, àquelas classes fortes que avançam lentamente e nas quais graças à vida regrada, a força e o desejo da vontade, a vontade da dominação de si mesmo, mantém-se num crescendo contínuo: àqueles a religião oferece ocasiões e tentações suficientes para a adesão a uma intelectualidade mais elevada, de provar o seu grande auto-domínio, o silêncio e a solidão". P. 71.
- Para os fracos, que são a maioria, a educação religiosa "tem a inestimável vantagem de torná-los satisfeitos da própria posição, proporcionar-lhes paz ao coração, enobrecer a sua obediência, confortá-los e induzi-los a dividir com seus pares as alegrias e as dores, de contribuir para transfigurar de certo modo a sua monótona existência, a baixeza, a miséria na sua alma semibestial". P. 71/72.
** Risco: que as religiões não sejam empregadas como meio de educação, mas como fins e si mesmos. As religiões [ascéticas?] tendem a se constituir como o consolo dos sofredores, dos fracos, dos degenerados, contribuindo, assim, para a decadência da raça humana. Exaltam o homem-fora-do-mundo como o homem superior.
"Enfraquecer os fortes, diminuir as grandes esperanças, tornar suspeita a felicidade que reside na beleza, transmutar tudo aquilo que há de independente, de viril, de conquistador, de dominador no homem, todos os instintos que no homem, o tipo mais elevado e melhor sucedido, estão incertos, aviltação, destruição de si mesmos. Transmutar o amor pelas coisas terrenas e pela dominação das mesmas em ódio contra a terra e tudo aquilo que é terreno — eis o objetivo da Igreja". P. 73/74.
"[...] não é incrível que durante dezoito séculos
apenas um ideal e uma vontade tivessem dominado a Europa —
aqueles de fazer do homem um aborto sublime?" P. 74
- Crítica ao cristianismo e espírito democrático, como causadores da degeneração humana. "O Cristianismo foi a espécie mais nefasta das presunções [...]. Homens com seu intento de "igualdade diante de Deus" dirigiram até agora os destinos da Europa, e até se formou uma espécie de homem diminuído, uma variedade quase ridícula, um animal de rebanho, afável, amolecido, medíocre". P. 74.
Parte 04: Aforismos e interlúdios
** Aforismos selecionados >>
#67, p. 76. O amor por um único ser é uma barbárie: porque acontece em detrimento de todos os outros seres. Mesmo o amor de Deus.
# 73-a, p. 77. Eis pavões que escondem zelosamente sua cauda e nisso colocam sua soberba.
# 76, p. 78. Em condições de paz o homem belicoso engalfinha-se consigo mesmo.
# 81, p. 79. É uma coisa terrível morrer de sede em meio ao mar. É realmente necessário que se ponha tanto sal na vossa verdade a ponto de torná-la incapaz de satisfazer a sede?
# 82, p. 79. "Piedade para todos" — seria dureza e tirania contra ti mesmo, meu Caro!
# 92, p. 81. Quem ainda não se sacrificou pelo menos uma vez pela sua própria reputação?
# 108, p. 83. Não existem fenômenos morais, mas uma interpretação moral dos fenômenos.
# 116, p. 84. As grandes épocas de nossa vida ocorrem quando sentimos a coragem de rebatizar o mal que em nós existe como o melhor de nós mesmos.
#123, p. 85. Também o concubinato sofreu uma corrupção graças ao matrimônio.
#132, p. 87. É-se punido principalmente pela própria virtude.
#135, p. 87. O farisaísmo do homem bom não é uma degeneração; é, pelo contrário, em grande parte, uma condição para ser bom.
#146, p. 89. Quem deve enfrentar monstros deve permanecer atento para não se tornar também um monstro. Se olhares demasiado tempo dentro de um abismo, o abismo acabará por olhar dentro de ti.
#153. p. 91. Aquilo que se faz por amor sempre se faz além dos limites do bem e do mal.
#156. p. 91. A loucura é muito rara em indivíduos — nos grupos, nos partidos, nos povos, na época — essa é a regra.
#168. p. 93. O cristianismo perverteu a Eros, este não morreu, mas degenerou-se: tornou-se vício.
#173. p. 94. Não se odeia àquele que se despreza, mas se odeia apenas àquele que acreditamos igual ou superior a nós.
#175, p. 94. Acabamos por amar nosso próprio desejo, em lugar do objeto desejado.
#179, p. 95. As conseqüências de nossas ações nos agarram pelo pescoço, sem perguntar se no entretempo melhoramos.
#185, p. 96. "Ele não me agrada". "Por quê?". "Porque não me sinto à sua altura". Algum homem já respondeu de tal forma?
Parte 05: Pela História Natural da moral
** Crítica à filosofia moral que, ao invés de buscar descrever os diversos padrões de moralidade, fixava-se em um único padrão moral (nacional, cultural, religioso, etc.), dissecando-o para depois universalizar as conclusões.
** Curiosidade: por que Nietzsche não foi considerado precursor das ciências sociais? O capítulo é Durkheim puro! Veja-se:
- Compreensão de que o fenômeno moral é um fenômeno social, culturalmente construído (e não imanente ao homem).
- Compreensão de que a moralidade impõe obediência, a qual, por sua vez, é indispensável para a constituição de tudo o que é essencial "no céu e na terra": arte, música, dança, virtude, etc. A servidão do espírito é constituidora das agremiações sociais.
"Os filósofos [...] não apenas deviam ocupar-se da moral, como ciência, mas desejavam estabelecer os fundamentos da moral, e todos acreditaram firmemente tê-lo conseguido, mas a moral era encarada por eles como coisa "dada". Quão distante de seu orgulho canhestro se encontrava a tarefa, aparentemente insignificante e inconcludente, de uma simples descrição, já que uma tal incumbência requer mãos e sentidos inefavelmente delicados". P. 98.
"[...] estavam mal informados e pouco lhes importava estar bem informados acerca das nações, das épocas, da história dos tempos passados; jamais estiveram face a face com os verdadeiros problemas da moral que se apresentam apenas quando se verifica o confronto de muitas morais". P.99.
"Toda moral é. em oposição ao laisser aller, uma espécie de tirania contra a "natureza" e também contra a "razão". P. 100.
"O mérito essencial de toda moral é o de exercer uma longa coação" P. 100.
"Mas o fato curioso reside em que tudo aquilo que há de livre sobre a terra, tudo aquilo que existe de fino, de ousado, a dança, a maestria segura tanto no pensar, no governar, do perdoar ou do persuadir, seja na arte ou nos costumes, desenvolveu-se precisamente em função da "tirania" de tais "leis arbitrárias", e, falando seriamente, há muita probabilidade de sustentar que precisamente nisto consista a “natureza” e o “natural”, antes que no "laisser aller". P. 101.
"A longa servidão do espírito [...] mostrou ser o meio pelo qual ao espírito europeu foi dada a sua força, a sua curiosidade ilimitada, a sua fina mobilidade, ainda que com isso se tenha perdido uma quantidade irreparável de força e espírito (uma vez que ai sempre a natureza se manifesta por aquilo que é de uma grandiosidade pródiga e indiferente, desdenhosa e aristocrática)". P.101 e 102.
"Deste ponto de vista é preciso considerar a toda moral [...] aquela que em si toma odioso o laisser aller, a excessiva liberdade e cria a necessidade de horizontes acanhados, de deveres abafantes, que restringe a perspectiva e de certo modo ensina que a ignorância é uma condição necessária da vida e de seu desenvolvimento". P.102.
- "Laisser aller": conduta autoindulgente dos espíritos aristocráticos. Tendência à desagregação social.
** A defesa da criação de uma "história natural da moral" não é precisamente da defesa da criação das ciências sociais?
** Profetas judeus: inversão dos valores. Fundiram “rico”, “ímpio”, “violento”, “sensual” e pela primeira vez colocaram a pecha da infâmia à palavra “mundo”. Fizeram da palavra “pobre” sinônimo de “santo” e de “amigo”.
Segundo parece os moralistas sentem um ódio poderoso
contra as florestas virgens e contra os trópicos! P.109.
"Ainda que tenha existido em outras épocas uma prática limitada e constante da compaixão, da igualdade, da ajuda recíproca, estavam entretanto à margem da moral. Em resumo, o "amor ao próximo" é quase sempre coisa secundária, convencional por um lado, e arbitrária por outro, se comparado com o medo ao próximo". P. 113.
"Os instintos mais elevados e fortes levam o indivíduo além e mais alto que a mediocridade e da baixeza do instinto gregário, indicam a morte do amor próprio da coletividade, extirpam sua fé em si mesma, quebrantam-na de certo modo e -- a reação é caluniar esses instintos. A decisão de estar só parece perigosa e tudo que separa o indivíduo do rebanho, tudo aquilo que assusta ao próximo, será designado como o mal. Por outro lado, o espírito tolerante, humilde, submisso, respeitoso com a igualdade, com a mediocridade dos desejos colhe epítetos e honras morais". P. 114.
** Moral gregária << >> moral do medo.
A moral na Europa é atualmente uma moral de rebanho. P.203.
** Movimento democrático >> herdeiro direto do movimento cristão. Decadência da organização política e aviltamento do Homo sapiens.
"Assim, por imperativo e ajuda de uma religião que se mostrou complacente com os desejos do rebanho, chegamos a encontrar a moral até nas instituições políticas e sociais; de tal modo que cada vez é mais evidente que para esta moral o movimento democrático é o herdeiro do movimento cristão". P. 115.
"A degeneração universal do homem rumo a isto a que aos socialistas — aos cabeças de abóbora se apresenta como o "homem do futuro" — como o seu ideal esta degeneração, esta diminuição do homem até torná-lo um homem de rebanho perfeito (ou ainda, como dizem, o homem da "sociedade livre"), um embrutecimento do homem ao nível dos direitos iguais e deveres é possível, não há dúvida! Quem meditou até às últimas conseqüências sobre essa possibilidade, chegou a conhecer uma nova espécie de náusea — e também um novo dever!". P.117.
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