quinta-feira, 18 de maio de 2017

Esquema de leitura: Para uma genealogia da Moral, F. Nietzsche.

Universidade de Brasília – UnB
Instituto de Ciências Sociais – ICS
Pós-graduação
Professor Luís Augusto de Gusmão
Seminários: As consequências do pensamento radical – Nietzsche e Foucault
Aluna: Juliana Capra Maia
Excertos e esquema de Leitura: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. Para uma genealogia da moral: uma polêmica. Sabotagem.net. Disponível em https://neppec.fe.ufg.br/up/4/o/Genealogia_da_Moral.pdf.




Prólogo

** Problema enfrentado pelo autor: “de onde se originam verdadeiramente nosso bem e nosso mal?”. Reformulando: "sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor “bom” e “mau”? Que valor têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? São indício de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles a plenitude, a força, a vontade da vida, sua coragem, sua certeza, seu futuro?”.


** Ceticismo de Nietzsche à celebração do altruísmo, da compaixão, da abnegação, do sacrifício, valores que Schopenhauer divinizara e transformara em “valores em si”. Nesses valores (ou anti-valores) Nietzsche divisou “o começo do fim, o ponto morto, o cansaço que olha para trás, a vontade que se volta contra a vida, a última doença anunciando-se terna e melancólica”.



Nietzsche se coloca como adversário do que denominou “amolecimento moderno dos sentimentos”


** Proposta do livro: criticar os valores morais, questionando a sua pertinência. Como método, propõe que se conheçam as condições e as circunstâncias históricas sob as quais os valores morais se desenvolveram e se modificaram. 

** Apesar da aparência de ser algo "dado", garantido e para além de qualquer questionamento, a celebração filosófica dos valores cristãos constitui evento recente na trajetória humana. Mas “e se o contrário fosse a verdade? E se no “bom” houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico, mediante o qual o presente vivesse como que às expensas do futuro?” [...], “de modo que precisamente a moral seria culpada de que jamais se alcançasse o supremo brilho e potência do tipo homem? De modo que precisamente a moral seria o perigo entre os perigos?”.



“Bom e mau”, “bom e ruim”

** Crítica aos psicólogos ingleses, até então os únicos a tentarem reconstruir a genealogia dos valores morais. Crítica à associação entre "bom" e "útil". 
[Essa] teoria busca e estabelece a fonte do conceito “bom” no lugar errado: o juízo “bom” não provém daqueles aos quais se fez o “bem”! Foram os “bons” mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu. Desse pathos da distância é que eles tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade!

**  De acordo com o autor, originalmente, o vocábulo "bom” não estaria ligado a ações “não egoístas”. A oposição “egoísta” X “não egoísta” teria se imposto progressivamente à consciência humana mediante declínio dos valores aristocráticos, criando o que Nietzsche denominou "instinto de rebanho". OBS.: Instinto de rebanho = sociabilidade!

** Do ponto de vista etimológico, as designações para "bom" cunhadas pelas diversas línguas remeteriam à mesma transformação conceitual: "nobre", "aristocrático", "espiritualmente privilegiado", "bem nascido" seriam os conceitos básicos a partir dos quais surgira o adjetivo "bom". Paralelamente, ocorreu a transmutação de plebeu", "comum", "baixo" no adjetivo "ruim".

** A associação entre "bom" e "não egoísta" seria fruto do "plebeísmo do espírito moderno, de ascendência inglesa, que promove preconceitos democráticos e obscurece as discussões relativas às origens dos valores".

** Entre a nobreza grega (leia-se, para o poeta Teógenes de Megara), "bom" é aquele nobre que fala a verdade, que cumpre a sua palavra. Esse "bom" se opunha ao populacho, presumidamente mentiroso. Na Roma Antiga, os bons eram os homens fortes e louros, geneticamente superiores aos morenos.


Preeminência política <<>> Preeminência espiritual


** Com os sacerdotes, surgem nos humanos os sentimentos perigosos: altivez, vingança, perspicácia, dissolução, amor, sede de domínio, virtude, doença. Somente com a existência sacerdotal o homem se tornou um animal interessante, somente então a alma humana ganhou profundidade e tornou-se má (superioridade do homem sobre as outras bestas). 
O modo de valoração sacerdotal pode derivar daquele cavalheiresco-aristocrático e depois desenvolver-se em seu oposto; em especial, isso ocorre quando a casta dos sacerdotes e a dos guerreiros se confrontam ciumentamente, e não entram em acordo quanto às suas estimativas.

** Judeus: povo sacerdotal par excellence. 


** Como povo, os judeus teriam operado uma radical "transvaloração dos valores", uma forma de vingança perpetrada contra os seus conquistadores. Promoveram a inversão da equação de valores aristocrática (bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses) e criaram a equação: "os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres, impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles há bem-aventurança - mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os desventurados, malditos e danados!". 
Sujeitemo-nos aos fatos: o povo venceu - ou "os escravos", ou "a plebe", ou "o rebanho", ou como quiser chamá-lo – se isto aconteceu graças aos judeus, muito bem! Jamais um povo teve missão maior na história universal. "Os senhores" foram abolidos; a moral do homem comum venceu. Ao mesmo tempo, essa vitória pode ser tomada como um envenenamento do sangue (ela misturou entre si as raças) - não contesto; mas indubitavelmente essa intoxicação foi bem-sucedida. A 'redenção' do gênero humano (do jugo dos 'senhores') está bem encaminhada; tudo se judaíza, cristianiza, plebeíza visivelmente.

** A moral nobre nasce de um triunfante "SIM" a si mesma. Ela nasce e se desenvolve espontaneamente. Encara o seu oposto apenas para dizer "SIM" a si mesma, com maior alegria e gratidão. ("nós, os nobres, os bons, os belos, os felizes!"). Os conceitos de "baixo", "comum", "ruim" são apenas as imagens de contraste em relação ao conceito básico, positivo.


** A moral escrava, ao contrário, nasce dizendo "NÃO" ao "não-eu". Este "NÃO" é o seu ato criador. Dirigir-se para fora no lugar de voltar-se para si é algo próprio dos ressentidos: sua ação é, no fundo, reação. O conceito de "mau" é cunhado no "caldeirão do ódio insatisfeito".

  • Homem nobre >> Forte, ativo, confiante, vigoroso, corajoso, colérico, não guarda raiva ou mágoa, esquece rapidamente as ofensas que lhe fizeram (de modo que essas ofensas não o envenenam), "puro", ingênuo. "Romano". A inteligência é um luxo, uma qualidade supérflua, não-essencial. Impulsividade.
  • Homem de ressentimento >> Rancoroso, ressentido, falso, matreiro, desonesto, desleal consigo. "Judeu". "Sua alma olha de través; ele ama os refúgios, os subterfúgios, os caminhos ocultos, tudo escondido lhe agrada como seu mundo, sua segurança, seu bálsamo; ele entende do silêncio, do não esquecimento, da espera, do momentâneo apequenamento e da humilhação própria". Necessariamente mais inteligente do que os homens nobres. Venera a inteligência como condição de existência. 

BOM X RUIM: Autoimagem do nobre X o que não é nobre;

BOM X MAU: Moral escrava. Vingança contra os dominadores. 


** O "mau" da moral escrava é precisamente o "bom" da moral nobre. Mau é o dominador, o poderoso, o soberano, o aristocrata. Mas na moral escrava, esse sujeito é interpretado e visto com outros olhos: com o olhar do ressentimento. Perante os seus inimigos, os aristocratas (“Bons”) não são mais do que homens maus, do que aves de rapina.  
“Ali desfrutam a liberdade de toda coerção social, na selva se recobram da tensão trazida por um longo cerceamento e confinamento na paz da comunidade, retornam à inocente consciência dos animais de rapina, como jubilosos monstros que deixam atrás de si, com ânimo elevado e equilíbrio interior, uma sucessão horrenda de assassínios, incêndios, violações e torturas, como se tudo não passasse de brincadeira de estudantes, convencidos de que mais uma vez os poetas muito terão para cantar e louvar”.
** De fato, é de se guardar temor e se manter em guarda contra a besta loura que há no fundo de toda raça nobre. Mas temer e admirar é melhor do que nutrir a "visão asquerosa dos malogrados, atrofiados, amargurados e envenenados". 

** O "homem manso", medíocre e insosso, aprendeu a se perceber como apogeu e meta (“homem civilizado”). O homem europeu se apequenou, se tornou decadente, ralo, indiferente, medíocre, “chinês, cristão”. Quando se tornou um continente de “homens melhores”, a Europa abraçou um destino fatal. Perdeu-se o temor ao homem, mas também se perdeu o amor, a reverência e a esperança em torno do homem. A imagem do “bom homem” cansa. E é isso o niilismo: um enorme cansaço em relação ao homem. 

** Os valores cristãos renegam os instintos humanos e transformam comunidades humanas, autoenganadas, em grandes rebanhos. A obediência àqueles que não se pode vencer, ao invés de ser chamada de “subserviência”, passa a ser chamada de “humildade”; a doce embriaguez da vingança recebe o nome de “triunfo da justiça”; o consolo para uma vida medíocre é o “Juízo Final” e o “Reino de Deus”; a fraqueza é interpretada como liberdade e tudo isso é lido como mérito, e não como demérito. 
“É um cochichar e sussurrar cauteloso, sonso, manso, vindo de todos os cantos e quinas. Parece-me que mentem; uma suavidade visguenta escorre de cada som. A fraqueza é mentirosamente mudada em mérito. "e a impotência que não acerta contas é mudada em 'bondade'; a baixeza medrosa, em 'humildade'; a submissão àqueles que se odeia em 'obediência' (há alguém que dizem impor esta submissão - chamam-no Deus). O que há de inofensivo no fraco, a própria covardia na qual é pródigo, seu aguardar-na-porta, seu inevitável ter-de-esperar, recebe aqui o bom nome de 'paciência', chama-se também a virtude; o não-poder-vingar-se chama-se não-querer-vingar-se, talvez mesmo perdão eles me dizem que sua miséria é uma eleição e distinção por parte de Deus. algo que um dia será recompensado e pago com juros enormes, em ouro, não! Em felicidade. A isto chamam de 'bem-aventurança', 'beatitude'”.

** "Roma X Judéia". Ao passo que os romanos eram os “fortes e nobres”, os judeus, ao contrário, eram o povo sacerdotal do ressentimento. Nesse embate, Roma sucumbiu. E essa derrota ainda ressoava nos tempos de Nietzsche, que classificou a Revolução Francesa (ocorrida no final do século XVIII) como mais uma vitória da massa ignara (povo ressentido) sobre o ideal clássico, representado pela nobreza francesa (última nobreza política que havia na Europa). “Nunca se ouviu na terra júbilo maior, nem entusiasmo mais estridente!”. OBS.: Roma x Judeia: alegorias para representar extremos? Tipos ideais?

** E quais seriam os efeitos fisiológicos da mudança dos costumes? Criação de humanos mais belos? Fisicamente mais frágeis? Mais inteligentes (porque o ardil se lhes faz necessário)? Aqui, Nietzsche sugere um diálogo entre a fisiologia, a medicina e a filosofia. Modelo de Cesare Lombroso (prostitutas teriam o clítoris acentuado; marginais, a caixa craniana diminuída, etc.)?

** Desse modo, a hierarquia dos valores (juízos de dever ser) deve ser realizada a partir de sua clarificação e interpretação fisiológica e psicológica. Relação entre juízos de dever ser e evolução ou involução da espécie?



“Culpa, má consciência e coisas afins”

** Esquecimento: zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta. Não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento.

** Longo trajeto histórico da responsabilidade: lento processo de tornar os homens uniformes, iguais, constantes, confiáveis. Com ajuda da moralidade, dos costumes e da camisa-de-força social, os homens foram domesticados e se tornaram confiáveis.

** Estar ciente da responsabilidade = Ter consciência.

** Dor << >> Memória. Quanto pior "de memória" a humanidade, tanto mais cruéis os seus costumes.

** O conceito moral de "culpa" teve origem no conceito material de "dívida”. O sentimento de culpa, da obrigação pessoal nasce na mais antiga e primordial relação pessoal, na relação entre comprador e vendedor, credor e devedor: foi então que pela primeira vez defrontou-se, mediu-se uma pessoa com outra. 
Durante o mais largo período da história humana, não se castigou porque se responsabilizava o delinquente por seu ato, ou seja, não pelo pressuposto de que apenas o culpado devia ser castigado - e sim como ainda hoje os pais castigam seus filhos, por raiva devida a um dano sofrido, raiva que se desafoga em quem o causou; mas mantida em certos limites, e modificada pela ideia de que qualquer dano encontra seu equivalente e pode ser realmente compensado, mesmo que seja com a dor do seu causador.

** Por meio de um contrato, o devedor, para garantir a seriedade de sua promessa, reforçando na própria consciência a restituição como dever e obrigação, empenha ao credor, para o caso de não pagar, algo que ainda "possua", sobre o qual ainda tenha poder: seu corpo, sua mulher, sua liberdade, sua vida.
A equivalência está em substituir uma vantagem diretamente relacionada ao dano (uma compensação em dinheiro, terra, bens de algum tipo) por uma espécie de satisfação íntima, concedida ao credor como reparação e recompensa - a satisfação de quem pode livremente descarregar seu poder sobre um impotente, o prazer de ultrajar: tanto mais estimado quanto mais baixa for a posição do credor na ordem social, e que facilmente lhe parecerá um delicioso bocado, ou mesmo o ante gozo de uma posição mais elevada. Através da "punição" ao devedor, o credor participa de um direito dos senhores; experimenta enfim ele mesmo a sensação exaltada de poder desprezar e maltratar alguém como "inferior" – ou então, no caso em que o poder de execução da pena já passou à "autoridade", poder ao menos vê-la desprezado e maltratado. A compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade.

** Culpa > consciência > dever > sacralidade do dever. Relação historicamente construída a custa de muito banho de sangue.


Culpa << >> Sofrimento = Banho de Sangue


** Por que o sofrimento pode ser compensação para a "dívida"? Maldade desinteressada. Porque fazer sofrer “era altamente gratificante, na medida em que o prejudicado trocava o dano e o desprazer pelo dano, por um extraordinário contraprazer: causar sofrimento – uma verdadeira festa, algo, como disse, que era tanto mais valioso quanto mais contradizia o posto e a posição social do credor”. Caso: O mercador de Veneza. Antônio X Shylock. Um superior contrai uma dívida para com um inferior. Ao não honrá-la no prazo, abre espaço para ser vilipendiado por seu inferior. 1 Libra de carne.

** Os homens instintivamente sentem prazer em presenciar o sofrimento. Sentem ainda mais prazer em provocar o sofrimento. Isso lhes atribui poder. Na história humana, a crueldade e o castigo aparecem como festas, como celebrações.

** Fazer sofrer era um encanto, um “chamariz à vida”. Com o tempo, com “a moralização e o amolecimento doentios” essa crueldade, esse instintivo prazer pelo sofrimento alheio tornou-se motivo de vergonha e, também, de infelicidade. Observação: sublimação do prazer pelo sofrimento na “compaixão trágica” (“as nostalgias da cruz”). 

** Os deuses antigos eram amigos de espetáculos cruéis. Eventos trágicos como os descritos por Homero na Ilíada e na Odisseia eram móvito de júbilo entre os deuses. E nisso, os deuses gregos e o deus judeu são iguais.

** Evolução do direito penal: controle dos castigos infligidos aos criminosos, controle da ira coletiva. Vontade cada vez mais firme de considerar toda infração resgatável de algum modo, e assim isolar, ao menos em certa medida, o criminoso de seu ato. Circunscrição do caso. Tentativa de evitar maior participação e inquietação do grupo. 


Se crescem o poder e a consciência de si de uma comunidade, torna-se mais suave o direito penal; se há enfraquecimento dessa comunidade e ela corre grave perigo, formas mais duras desse direito voltam a se manifestar


O "credor" se torna sempre mais humano, na medida em que se torna mais rico; e o quanto de injúria ele pode suportar sem sofrer é, por fim, a própria medida de sua riqueza. Não é inconcebível uma sociedade com tal consciência de poder que se permitisse o seu mais nobre luxo: deixar impunes os seus ofensores. "Que me importam meus parasitas?", diria ela. "Eles podem viver e prosperar - sou forte o bastante para isso!"... A justiça, que iniciou com "tudo é resgatável, tudo tem que ser pago", termina por fazer vista grossa e deixar escapar os insolventes termina como toda coisa boa sobre a terra, suprimindo a si mesma. A autosupressão da justiça sabemos com que belo nome ela se apresenta - graça; ela permanece, como é óbvio, privilégio do poderoso, ou melhor, o seu "além do direito".

** O último terreno conquistado pelo espírito da justiça é o do sentimento reativo! Quando acontece de o justo ser justo até mesmo com os que o prejudicam, quando a elevada, clara, branda e também profunda objetividade do olho justo, do olho que julga, não se turva sequer sob o assalto da injúria pessoal, da derrisão e da calúnia, isto é sinal de perfeição e suprema mestria.

** O homem ativo, violento, excessivo ("homem nobre" / "romano"), está sempre bem mais próximo da justiça que o homem reativo ("homem ressentido" / "judeu"). Ele não necessita avaliar seu objeto de modo falso e parcial, como faz o homem reativo. O homem nobre possui o olhar mais livre, a consciência melhor. Inversamente, o homem do ressentimento é o autor da "má consciência".

** Historicamente considerado, o direito representa a luta contra os sentimentos reativos, a guerra que lhes fazem os poderes ativos e agressivos, que utilizam parte de sua força para conter os desregramentos da reatividade e do ressentimento. 
[...] após a instituição da lei, ao tratar abusos e atos arbitrários de indivíduos ou grupos inteiros como ofensas à lei, como revoltas contra a autoridade mesma, ela desvia os sentimentos dos seus subordinados do dano imediato causado por tais ofensas, e assim consegue afinal o oposto do que deseja a vingança, a qual enxerga e faz valer somente o ponto de vista do prejudicado: daí em diante o olho é treinado para uma avaliação sempre mais impessoal do ato, até mesmo o olho do prejudicado.

"Justo” e “injusto” existem apenas a partir da instituição da lei

** Falar de justo e injusto em si (tema caro à metafísica) carece de qualquer sentido. Ofender, violentar, explorar, destruir não são atos naturalmente "injustos", na medida que, em suas funções básicas, a vida atua ofendendo, violentando, explorando e destruindo. Em outros termos, sob o viés biológico, os estados de direito são apenas estados de exceção: restrições parciais da vontade de poder.
Uma ordem de direito concebida como meio contra toda luta seria um princípio hostil à vida, uma ordem destruidora e desagregadora do homem, um atentado ao futuro do homem, um sinal de cansaço, um caminho sinuoso para o nada.
** Progresso e evolução. Implica forçar-se para uma direção. Também implica a inutilização parcial, a atrofia, a degeneração, a perda de propósito e a morte de tudo o que segue para a direção contrária. "A magnitude de um "avanço" se mede pela massa daquilo que teve de lhe ser sacrificado". OBS.: Crítica de Nietzsche à Teoria da Evolução das Espécies, de Wallace e Darwin, bem como aos evolucionistas de seu tempo, que atribuíam à "adaptação" o mecanismo de evolução dos seres vivos. Argumento: enfatizando a "adaptação" (que é uma forma reativa de agir), deixa-se de perceber "a primazia das forças espontâneas, agressivas, expansivas", isto é, deixa-se de perceber a "vontade de poder".



Para que serve o castigo?

** O castigo teria o valor de despertar no culpado o sentimento da culpa, nele se vê o verdadeiro instrumento dessa reação psíquica chamada "má consciência", "remorso". Admitindo essa premissa, contudo, estaríamos a atentar contra a realidade e contra a psicologia. Isso porque justamente entre prisioneiros e criminosos o autêntico remorso é algo raro ao extremo.

** Então para que serve o castigo? O que se consegue com o castigo, em homens e animais, é o acréscimo do medo, a intensificação da prudência, o controle dos desejos: assim o castigo doma o homem, mas não o torna "melhor".


** O remorso (má consciência) é visto por Nietzsche como a maior doença que o homem teve de contrair sob a pressão da radical mudança que lhe sobreveio quando ele se viu definitivamente encerrado no âmbito da sociedade e da paz.


Aqueles terríveis bastiões com que a organização do Estado se protegia dos velhos instintos de liberdade - os castigos, sobretudo, estão entre esses bastiões fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e errante se voltassem para trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição - tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência. 
Essa hipótese sobre a origem da má consciência pressupõe, em primeiro lugar, que a mudança não tenha sido gradual nem voluntária, e que não tenha representado um crescimento orgânico no interior de novas condições, mas uma ruptura, um salto, uma coerção, uma fatalidade inevitável, contra a qual não havia luta e nem sequer ressentimento. Em segundo lugar, que a inserção de uma população sem normas e sem freios numa forma estável, assim como tivera início com um ato de violência, foi levada a termo somente com atos de violência - que o mais antigo "Estado", em conseqüência, apareceu como uma terrível tirania, uma maquinaria esmagadora e implacável, e assim prosseguiu seu trabalho, até que tal matéria-prima humana e semi-animal ficou não só amassada e maleável, mas também dotada de uma forma.  
Esse instinto de liberdade tornado latente à força - já compreendemos -, esse instinto de liberdade reprimido, recuado, encarcerado no íntimo, por fim capaz de desafogar-se somente em si mesmo: isto, apenas isto, foi em seus começos a má consciência.

** Ao longo da história humana, a relação entre o devedor e seu credor foi introduzida na relação entre os vivos e os mortos: a geração que vive reconhece obrigações morais e jurídicas para com aquelas que lhe antecederam (em especial para com a geração fundadora da comunidade ou da estirpe). Predomina a convicção de que a comunidade / estirpe só subsiste graças aos sacrifícios e às realizações dos antepassados, uma dívida que cresce progressiva e infinitamente, pelo fato de que os antepassados continuam a conceder à comunidade / estirpe, a partir do mundo espiritual, novas vantagens e bênçãos. E como retribuir? Como saldar essa dívida?

** O medo dos poderes dos ancestrais e a crença de que se tem dívidas para com eles crescem na medida em que cresce o poder da comunidade. Uma comunidade vitoriosa, independente, venerada e temida é mais e mais devedora dos seus ancestrais. Uma comunidade debilitada, degenerada e desagregada, por sua vez, enxerga como fraco o espírito dos seus fundadores. 

** Por força da fantasia e do medo crescente, os ancestrais divinizados das estirpes mais poderosas assumiram proporções gigantescas e acabaram por se transfigurar em deuses. 

** Ou seja, os deuses teriam sua origem no medo da comunidade em relação aos seus ancestrais e aos seus poderes, bem como na crença de que os vivos devem muito aos mortos. Por consequência, o Deus cristão, o mais supremo dos deuses, teria origem no mais supremo dos temores e no máximo do sentimento de débito / culpa.

** A humanidade recebeu, com a herança das divindades tribais e familiares, também o peso das dívidas ainda não pagas para com o mundo espiritual, bem como o anseio de resgatar-se.

** O declínio da fé no Deus cristão implicará o declínio do sentimento de culpa e o descrédito na dívida para com ancestrais. Nesse sentido, o ateísmo promoveria uma espécie de “segunda inocência” da humanidade.


Associação entre débito, culpa, dever, fé e valores morais


** A culpa que incutiu no homem a vontade de se torturar, que o aprisionou para fins de domesticação é a doença a mais terrível que jamais devastou a humanidade.

** A concepção de divindade, em si, não demanda necessariamente a construção de um sentimento de culpa e de débito permanente dos homens para com os deuses ou com os ancestrais (nas palavras do autor, uma “depravação da fantasia”). Nos deuses gregos, por exemplo, “o animal no homem se sentia divinizado e não se dilacerava, não se enraivecia consigo mesmo”. Lá, os deuses eram reflexo dos homens, o que seria, no entender do autor, uma maneira mais nobre de se utilizar a ideia de “deuses”.

** E como podem os homens sair desse ciclo de culpa e autoflagelação, típico do império do Deus cristão? O autor aponta que a resposta é o advento do super-homem. Embora não utilize a expressão, a ideia está lançada. Leia-se o seguinte parágrafo: 
Para aquele fim [demolir o império da culpa e erigir uma nova moralidade] seria preciso uma outra espécie de espíritos, diferentes daqueles prováveis nesse tempo: espíritos fortalecidos por guerras e vitórias, para os quais a conquista, o perigo e a dor se tornaram até mesmo necessidade; seria preciso estar acostumado ao ar cortante das alturas, a caminhadas invernais, ao gelo e aos cumes, em todo sentido; seria preciso mesmo uma espécie de sublime maldade, uma última, securíssima petulância do conhecimento, própria da grande saúde, seria preciso, em suma e infelizmente, essa mesma grande saúde! Seria ela sequer possível agora? Algum dia, porém, num tempo mais forte do que esse presente murcho, inseguro de si mesmo, ele virá, o homem redentor, o homem do grande amor e do grande desprezo, o espírito criador cuja força impulsora afastará sempre de toda transcendência e toda insignificância, cuja solidão será mal compreendida pelo povo, como se fosse fuga da realidade – quando será apenas a sua imersão, absorção, penetração na realidade, para que, ao retomar à luz do dia, ele possa trazer a redenção dessa realidade: sua redenção da maldição que o ideal existente sobre ela lançou. Esse homem do futuro, que nos salvará não só do ideal vigente, como daquilo que dele forçosamente nasceria, do grande nojo, da vontade de nada, do niilismo, esse toque de sino do meio-dia e da grande decisão, que torna novamente livre a vontade, que devolve à terra sua finalidade e ao homem sua esperança, esse anticristão e antiniilista, esse vencedor de Deus e do nada [O super-homem?] – ele tem que vir um dia...



Terceira dissertação: o que significam os ideais ascéticos?

** O que significam os ideais ascéticos? Por que são tão valiosos para os homens? São valiosos devido a um dado fundamental da vontade humana, o seu horror ao vazio: o homem precisa de um objetivo e preferirá querer o nada a nada querer.

** Embora não exista oposição necessária entre castidade e sensualidade, desde que há filósofos na terra, registra-se a sua irritação e rancor contra a sensualidade. Ex. Schopenhauer. Da mesma forma, os filósofos tendem a afeiçoar-se aos ideais ascéticos, ou seja, não são juízes e testemunhas imparciais do ascetismo.



Qual grande filósofo foi casado? Heráclito, Platão, Descartes, Spinoza, Leibnitz, Kant, Schopenhauer não o foram; mais ainda, não podemos sequer imaginá-los casados. Um filósofo casado é coisa de comédia.

** Estar livres de coerção, perturbação, barulho, de negócios, deveres, preocupações. Querem lucidez na cabeça; "dança, salto e vôo do pensamento; um bom ar, fino, claro, livre, seco, como é o ar das alturas, em que todo animal torna-se mais espiritual e recebe asas; paz em todos os subterrâneos; todos os cães bem amarrados à corrente; nenhum latido de inimizade e de cerdoso rancor; nenhum verme roedor de ambição ferida; vísceras modestas e submissas, diligentes como moinhos, mas distantes; o coração alheio, além, futuro, póstumo - em suma, eles pensam no ideal ascético como o jovial ascetismo de um bicho que se tornou divino e ao qual nasceram asas, que antes flutua sobre a vida do que nela pousa"


** Palavras de pompa do ideal ascético: humildade, pobreza, castidade. Se é verdade que o asceta dominou a sua luxúria, a sua prodigalidade e o seu gosto pelo rebuscado, ele o fez "justamente como instinto dominante, que impôs suas exigências a todos os demais instintos - ela o faz ainda; não o fizesse, não dominaria. Não há nenhuma "virtude" nisso, portanto".

[...] nós, filósofos, necessitamos descanso de uma coisa sobretudo: do "hoje". Nós veneramos o que é tranqüilo, frio, nobre, passado, distante, tudo aquilo em vista do qual a alma não tem de se defender e se encerrar - algo com que se pode falar sem elevar a voz.

Reconhece-se um filósofo no fato de evitar três coisas que brilham e fazem barulho: a fama, os príncipes e as mulheres. Ele receia a luz demasiado clara: por isso se resguarda de seu tempo, e do "dia" desse tempo. Em última instância exigem bem pouco esses filósofos, a sua máxima é: "quem possui é possuído".

"Nada foi comprado tão caro" [...] como o pouco de razão humana e sentimento de liberdade que agora constitui nosso orgulho. É este orgulho, porém, que nos torna hoje quase impossível sentir como os imensos períodos de "moralidade do costume", que precederam a “história universal" como a verdadeira e decisiva história que determinou o caráter da humanidade: quando o sofrimento, a crueldade, a dissimulação, a vingança, o repúdio à verdade eram virtude, enquanto o bem-estar, a sede de saber, a paz, a compaixão eram perigo, ser objeto de compaixão era ofensa, o trabalho era ofensa, a loucura uma coisa divina, a mudança algo não ético e prenhe de ruína.

** Foi em forma disfarçada, com aparência ambígua, mau coração, e freqüentemente amedrontada, que a contemplação apareceu de início sobre a terra. O que havia de inativo, cismador, não-guerreiro nos instintos dos homens contemplativos, despertou por muito tempo uma profunda desconfiança à sua volta. Para alcançar o temor e a reverência do grupo, sendo homens de tempos terríveis, praticaram atos terríveis: a automortificação inventiva.


Todo aquele que alguma vez construiu um "novo céu", encontrou o poder para isso apenas no próprio inferno

** Para poder existir, o espírito filosófico teve de imitar e mimetizar os tipos já estabelecidos do homem contemplativo: o sacerdote, o feiticeiro, o adivinho, o homem religioso. 

** Por um longo tempo o ideal ascético serviu ao filósofo como forma de aparecer, como condição de existência: ele tinha de representá-lo para poder ser filósofo, tinha de crer nele para poder representá-lo. 


O sacerdote ascético serviu, até a época mais recente, como triste e repulsiva lagarta, única forma sob a qual a filosofia podia viver e rastejar


** Na vida ascética, a existência presente é uma mera ponte para outra existência. O asceta trata o presente como um caminho errado ou como um erro que deve ser refutado com a ação.

** Em quase todos os tempos aparece o a figura do sacerdote ascético. Ele não pertence a nenhuma raça ou classe determinada. Isso quer dizer que o ascetismo tornou-se condição essencial para a existência humana.


[...] o ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera, a qual busca manter-se por todos os meios, e luta por sua existência. Ocorre, portanto, exatamente o contrário do que acreditam os adoradores desse ideal - a vida luta nele e através dele com a morte, contra a morte, o ideal ascético é um artifício para a preservação da vida. luta fisiológica do homem com a morte (mais precisamente: com o desgosto da vida, com a exaustão, com o desejo do "fim").


** Uma vida ascética é, em si, uma contradição. No asceta, "o olhar se volta, rancoroso e pérfido, contra o florescimento fisiológico [...], em especial contra a sua expressão, a beleza, a alegria; enquanto se experimenta e se busca satisfação no malogro, na desventura, no fenecimento, no feio, na perda voluntária, na negação de si, autoflagelação e autosacrifício"

** O sacerdote ascético é a encarnação do desejo de estar em outro lugar. Essa é a sua verdadeira febre e paixão: mas precisamente o poder do seu desejo é o grilhão que o prende aqui. Com tal poder "ele mantém apegado à vida todo o rebanho de malogrados, desgraçados, frustrados, deformados, sofredores de toda espécie, ao colocar-se instintivamente à sua frente como pastor. Esse sacerdote ascético, aparente inimigo e negador da vida, está exatamente entre as grandes potências conservadoras e afirmadoras da vida".


** A corporalidade é negada. A oposição entre sujeito e objeto é negada. A realidade concreta é negada. Aqui, o ascetismo consegue a façanha de violentar a razão humana. Os ascetas são "esportistas da santidade".



O ascetismo volta a razão contra a razão


** Qual a origem dessa condição doentia? Instinto de sobrevivência. O nojo, o cansaço, o fastio do homem consigo mesmo poderiam levar a um "NÃO" à vida. Mas precisamente essa negação da vida traz à luz uma profusão de "SINS" sutis. "[...] quando ele se fere, esse mestre da destruição, da autodestruição - é a própria ferida que em seguida o faz viver".
Grosso modo, não é absolutamente o temor ao homem, aquilo cuja diminuição se poderia desejar: pois esse temor obriga os fortes a serem fortes, ocasionalmente temíveis - ele mantém em pé o tipo bem logrado de homem. O que é de temer, o que tem efeito mais fatal que qualquer fatalidade, não é o grande temor, mas o grande nojo ao homem; e também a grande compaixão pelo homem. 
Os doentios são o grande perigo do homem: não os maus, não os "animais de rapina". Aqueles já de início desgraçados, vencidos, destroçados - são eles, são os mais fracos, os que mais corroem a vida entre os homens, os que mais perigosamente envenenam e questionam nossa confiança na vida, no homem, em nós. [...]. 
Eles rondam entre nós como censuras vivas, como advertências dirigidas a nós - como se saúde, boa constituição, força, orgulho, sentimento de força fossem em si coisas viciosas, as quais um dia se devesse pagar, e pagar amargamente: oh, como eles mesmos estão no fundo dispostos a fazer pagar, como anseiam ser carrasco.

Ninguém a supera mulher doente em refinamento para dominar, oprimir, tiranizar.

"é uma vergonha ser feliz! existe muita miséria!"... Mas não poderia haver erro maior e mais fatal do que os felizes, os bem logrados, os poderosos de corpo e alma começarem a duvidar assim do seu direito à felicidade. Fora com esse "mundo ao avesso"! Fora com esse debilitamento do sentimento!

** Apenas doentes podem cuidar dos doentes. Daí a função do sacerdote ascético. Ele domina os sofredores. Mas para conseguir a confiança e o temor dos doentes, o sacerdote ascético também tem de ser forte, tem de ser mais senhor de si do que os demais, inteiro em sua vontade de poder. Ele tem de defender o seu rebanho contra os sãos e contra a inveja que eles têm dos sãos. Ele tem de ser "o opositor e desprezador natural de toda saúde e toda potência tempestuosa, dura, desenfreada, violenta e rapace".
O sacerdote é a primeira forma do animal mais delicado, que despreza mais facilmente do que odeia. Não lhe será poupado fazer guerra aos animais de rapina, uma guerra de astúcia (de "espírito") mais que de violência, está claro - para isto lhe será necessário, em certas circunstâncias, desenvolver-se quase que em um novo tipo de animal de rapina, ou ao menos representá-lo - uma nova ferocidade animal, na qual o urso polar, a elástica, fria, expectante pantera, e também a raposa, parecem juntados numa unidade tão atraente quanto aterradora. Supondo que a necessidade o obrigue, ele andará entre os outros animais de rapina, sério como urso, venerável, prudente, frio, superior-enganador, como arauto e porta-voz de poderes misteriosos, decidido a semear nesse terreno, onde puder, sofrimento, discórdia, contradição, e, seguro bastante de sua arte, fazer-se a todo instante senhor dos sofredores. Ele traz unguento e bálsamo, sem dúvida; mas necessita primeiro ferir, para ser médico; e quando acalma a dor que a ferida produz, envenena no mesmo ato a ferida - pois disso entende ele mais que tudo, esse feiticeiro e domador de animais de rapina, em volta do qual tudo o que é são torna-se necessariamente doente, e tudo doente necessariamente manso.

** Cabe ao sacerdote ascético encontrar maneiras de fazer com que o seu rebanho descarregue o seu ressentimento. "[...] querendo-se resumir numa breve fórmula o valor da existência sacerdotal, pode-se dizer simplesmente: o sacerdote é aquele que muda a direção do ressentimento".


** A descarga de afeto é para o sofredor a maior tentativa de alívio, de entorpecimento da dor, o seu ansiado narcótico para tormentos de qualquer espécie. "Eu sofro: disso alguém deve ser culpado" - assim pensa toda ovelha doente. Mas seu pastor, o sacerdote ascético, lhe diz: "Isso mesmo, minha ovelha! Alguém deve ser culpado: mas você mesma é esse alguém - somente você é culpada de si!".", Isto é ousado bastante, falso bastante: mas com isto se alcança uma coisa ao menos, com isto, como disse, a direção do ressentimento é – mudada.


** O estabelecimento de conceitos tais como "culpa", "pecado", "pecaminosidade", "corrupção", "danação" torna os doentes inofensivos, faz com que os incuráveis se destruam para, com rigor, orientar os levemente adoentados de volta a si mesmos.


** O cristianismo pode ser considerado um grande tesouro dos mais engenhosos meios de consolo, pelo tanto de aliviador, mitigador, narcotizante que há nele acumulado, pelo tanto de perigoso e temerário que arriscou para esse fim, pelo modo sutil, refinado, meridional-refinado com que intuiu sobretudo os afetos estimulantes com que pode ser vencida a funda depressão, o cansaço de chumbo, a negra tristeza dos fisiologicamente travados. Pois falando em termos gerais: em todas as grandes religiões, a questão principal sempre foi combater uma certa exaustão e gravidade tornada epidemia.
Em determinados lugares, um sentimento de obstrução fisiológica deve quase que necessariamente apossar-se de vastas massas, o qual, no entanto, por falta de saber fisiológico não penetra como tal na consciência, de modo que seu "motivo", seu remédio, pode ser procurado e experimentado tão-somente no domínio psicológico-moral (esta é minha fórmula mais geral para o que comumente é chamado de "religião"). Tal sentimento de obstrução pode ser de origem a mais diversa: seja como resultado do cruzamento de raças demasiado heterogêneas (ou de classes - classes sempre expressam também diferenças de origem ou de raça: o "Weltschmerz' [dor do mundo] europeu, o "pessimismo" do século XIX, é essencialmente resultado de uma mistura de classes absurdamente súbita); ou determinado por uma emigração equivocada uma raça chegada a um clima para o qual sua capacidade de adaptação não basta (o caso dos hindus na Índia); ou conseqüência de velhice e cansaço da raça (pessimismo parisiense de 1850 em diante); ou de uma dieta errada (alcoolismo na Idade Média; o absurdo dos vegetarianos, que, é verdade, têm a seu favor a autoridade do junker Cristóvão, de Shakespeare); ou de degeneração do sangue, malária, sífilis e semelhantes (depressão alemã após a Guerra dos Trinta Anos, que infectou metade da Alemanha com doenças ruins, preparando assim o terreno para a servilidade alemã, a mesquinhez alemã).

** Esse desprazer dominante é combatido, primeiro, através de meios que reduzem ao nível mais baixo o sentimento vital. Como resultado, em termos psicológico-morais, "renúncia de si", "santificação"; em termos fisiológicos, hipnose -- uma tentativa de alcançar para o homem algo aproximado ao que a hibernação representa para algumas espécies animais [...] um mínimo de metabolismo, no qual a vida ainda existe, sem no entanto penetrar na consciência.
[...] o hipnótico sentimento do nada, o repouso no mais profundo sono, ausência de sofrimento, em suma - para os sofredores e profundamente desgraçados é lícito enxergar nisso o bem supremo, o valor entre os valores, isto tem de ser considerado positivo por eles, sentido como o positivo mesmo. (Segundo a mesma lógica do sentimento, em todas as religiões pessimistas chama-se ao nada Deus).

** Contra a depressão emprega-se >>

  • A hipnose, já descrita anteriormente;
  • A atividade maquinal ("a bênção do trabalho"). Aqui, o interesse do sofredor é inteiramente desviado do sofrimento: a consciência é permanentemente tomada por um afazer seguido de outro, e em conseqüência resta pouco espaço para o sofrimento. 
  • Pequenas alegrias que sejam de fácil obtenção e que possam se tornar regra. Caridade. "A felicidade da "pequena superioridade", que acompanha todo ato de beneficiar, servir, ajudar, distinguir, é o mais abundante meio de consolo de que costumam servir-se os fisiologicamente obstruídos, supondo-se que estejam bem aconselhados: de outro modo ferem uns aos outros, naturalmente em obediência ao mesmo instinto básico".

** A formação do rebanho é um avanço na luta contra a depressão humana. O crescimento da comunidade fortalece também no indivíduo um novo interesse e o eleva acima da sua aversão a si mesmo.

** Os fortes buscam necessariamente dissociar-se, tanto quanto os fracos buscam associar-se; quando os primeiros se unem, isto acontece apenas com vista a uma agressão coletiva, uma satisfação coletiva da sua vontade de poder, com muita oposição da consciência individual; os fracos, ao contrário, se agrupam, tendo prazer nesse agrupamento - seu instinto se satisfaz com isso, tanto quanto o instinto dos "senhores" natos (isto é, da solitária, predatória espécie "homem") é irritado e perturbado pela organização.
Os meios que até agora vimos usados pelo sacerdote ascético - o amortecimento geral do sentimento de vida, a atividade maquinal, a pequena alegria, a do "amor ao próximo" sobretudo, a organização gregária, o despertar do sentimento de poder da comunidade, em conseqüência do qual o desgosto do indivíduo consigo mesmo é abafado por seu prazer no florescimento da comunidade - estes são, medidos pelo metro moderno, seus meios inocentes no combate ao desprazer. 
Desatar a alma humana de todas as suas amarras, submergi-la em terrores, calafrios, ardores e êxtases, de tal modo que ela se liberte como que por encanto de todas as pequeninas misérias do desgosto, da apatia, do desalento No fundo, todo grande afeto tem capacidade para isso, desde que se descarregue subitamente: cólera, pavor, volúpia, vingança, esperança, triunfo, desespero, crueldade.


Exploração máxima do sentimento de culpa


** Sacerdote: artífice da culpa. Criação do conceito de "pecado", que é o maior acontecimento na história da alma enferma e o mais perigoso e fatal artifício da interpretação religiosa.
[...] em toda parte o flagelo, o cilício, o corpo macilento, a contrição; em toda parte o autosuplício do pecador na roda cruel de uma consciência inquieta, morbidamente lasciva; em toda parte o tormento mudo, o pavor extremo, a agonia do coração martirizado, as convulsões de uma felicidade desconhecida, o grito que pede "redenção". A vida voltou a ser muito interessante: alerta, eternamente alerta, insone, ardente, consumida, esgotada.  
Cada excesso do sentimento que produzia dor, tudo que destruía, transtornava, rompia, transportava, extasiava, os segredos das câmaras de tortura, a engenhos idade do próprio inferno - tudo estava então descoberto, percebido, explorado, tudo estava à disposição do mago, tudo serviu desde então à vitória do seu ideal, do ideal ascético... "Meu reino não é deste mundo" - ele continuava a dizer: possuía realmente o direito de dizê-lo ainda?   
Todo excesso de sentimento dessa natureza tem o seu preço, está claro - ele torna o doente mais doente - as veementes revanches fisiológicas de tais excessos, inclusive talvez as perturbações mentais, no fundo não contradizem realmente o sentido dessa espécie de medicação: a qual, como foi mostrado, não objetiva curar doenças, mas combater a depressão, diminuindo e amortecendo o seu desprazer.
Em que consistiu sempre o "êxito"? Em um sistema nervoso arruinado, em acréscimo ao que já era enfermo; e isso no geral e no particular, nos indivíduos e nas massas Em seguida ao training de penitência e redenção encontramos tremendas epidemias epilépticas. 
Querendo-se [...] exprimir a ideia de que um tal sistema de tratamento melhorou o homem, não discordo: apenas acrescento que, para mim, "melhorado" significa - o mesmo que "domesticado", "enfraquecido", "desencorajado", "refinado", "embrandecido", "emasculado" (ou seja, quase o mesmo que lesado...). Mas tratando-se sobretudo de doentes, desgraçados, deprimidos, um tal sistema torna o doente invariavelmente mais doente, ainda que o torne "melhor".  

** Ciência como meio de entorpecimento. Formada por sujeitos sofredores que não querem confessar a si mesmos o que são, com gente que teme ganhar consciência. "[...] entre os doutos de hoje, é certo, existe um povo modesto e trabalhador que se compraz no seu cantinho, e que, por causa disso, por vezes eleva um tanto imodestamente a voz, afirmando que devemos estar satisfeitos, sobretudo na ciência - onde haveria tanto de útil a fazer".

** Incondicional vontade de verdade, característica da ciência (ideias platônicas segundo as quais "Deus é a verdade; a verdade é divina) >> Fé no ideal ascético. 


Não existe, a rigor, uma ciência sem pressupostos



** Ciência << >> Ascetismo 
Esta "ciência moderna" - abram os olhos! é no momento a melhor aliada do ideal ascético, precisamente por ser a mais involuntária, inconsciente, secreta, subterrânea! Precisamente a autodiminuição do homem, sua vontade de diminuir-se, não se acha em avanço irresistível desde Copérnico? Oh, a crença em sua dignidade, singularidade, insubstituibilidade na hierarquia dos seres se foi - ele se tornou bicho, animal, sem metáfora, restrição ou reserva, ele, que em sua fé anterior era quase Deus ("filho de Deus", "homem-Deus").

** A ciência, hoje, visa dissuadir o homem do apreço que até agora teve por si, como se este fosse tão somente uma extravagante presunção. OBS.: Crítica ao Evolucionismo, para o qual o homem é só mais uma entre bilhões de espécies?

** Se desconsideramos os ideais ascéticos, a existência do animal homem, até agora, não teve sentido algum. O ideal ascético significa que algo faltava, que uma monstruosa lacuna circundava o homem - ele não sabia justificar, explicar, afirmar a si mesmo, ele sofria do problema do seu sentido. A falta de sentido do sofrer, não o sofrimento em si mesmo, era a maldição que até então se estendia sobre a humanidade. O ideal ascético lhe ofereceu um sentido. 
Nele o sofrimento era interpretado; a monstruosa lacuna parecia preenchida; a porta se fechava para todo niilismo suicida. A interpretação trouxe consigo novo sofrimento, mais profundo, mais íntimo, mais venenoso e nocivo à vida: a culpa... Mas apesar de tudo o homem estava salvo, ele possuía um sentido, a partir de então não era mais uma folha ao vento, um brinquedo do absurdo, do sem-sentido, ele podia querer algo - não importando no momento para que direção, com que fim, com que meio ele queria: a vontade mesma estava salva.

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