quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Artigo: Cultura, identidade e cuidado com a natureza. Juliana Capra Maia

Universidade de Brasília - UnB
Centro de Desenvolvimento Sustentável - CDS
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável / Doutorado
Discente: Juliana Capra Maia
Artigo
Referência: MAIA, Juliana Capra. Cultura, identidade e cuidado com a natureza. Sustentabilidade em Debate, v. 6, n. 3, p. 15-31, set/dez de 2015. Disponível em http://periodicos.unb.br/index.php/sust/article/view/15637/12302. 



Cultura, identidade e cuidado com a natureza

Juliana Capra Maia[i]


RESUMO
O artigo foi construído ao redor de duas indagações logicamente conectadas, que emergem do referencial teórico elaborado por Louis Dumont aplicado à realidade brasileira. Inicialmente, investiga-se se a sociedade brasileira atribui à natureza status equivalente àquele atribuído pelas sociedades ocidentais modernas, das quais a estadunidense é emblemática. Em seguida, questiona-se se, no Brasil, o trato antropocêntrico e utilitário das questões ambientais é favorecido em prejuízo dos argumentos baseados no valor intrínseco da natureza. Referidas questões são respondidas por meio de pesquisa bibliográfica em história geral e brasileira. As conclusões apontam para a ratificação da tese de Da Matta, para quem a natureza está inserida na hierarquia social, não havendo que se falar, no Brasil, em ruptura natureza versus cultura. Em função da posição da natureza na hierarquia social, argumentos antropocêntricos, utilitários e conservacionistas tendem a angariar mais adeptos que argumentos biocêntricos, éticos e preservacionistas em prol da proteção à natureza. 

Palavras-chave: Modernidade. Ideologia. Natureza selvagem. Conservacionismo. Preservacionismo.


ABSTRACT
This paper has been written focusing two connected questions relating Dumont’s theories to Brazilian reality. First, it investigates whether Brazilian and modern western societies – specially the american society – see nature through the same lenses. Second, it discusses whether, in Brazil, the anthropocentric and utilitarian reason is favoured at the expense of biocentric and ethical arguments in defence of wilderness. Both questions are answered through bibliographical research in General History and Brazilian History. This paper corroborates Da Matta’s thesis according to which nature is inserted into the Brazilian social hierarchy: there is no rupture between nature and culture. Due to the position of nature into the social hierarchy the anthropocentric, utilitarian and conservationists arguments tend to obtain more influence than the biocentric, ethical and preservationist ones.

Key-words: Modernity. Ideology. Wilderness. Conservationism. Preservationism.  


1. INTRODUÇÃO
Grosso modo, a “modernidade” é um fenômeno social, determinados “estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência” (GIDDENS, 1991, p. 11). As especificidades da modernidade frente às demais formações sociais vêm sendo tema de vários debates nas ciências sociais, os quais ocuparam os fundadores da disciplina e ainda ocupam cientistas sociais contemporâneos (MARX, 2008; DURKHEIM, 1995; WEBER, 1999; GIDDENS, 1991).
Mediante análise etnográfica do sistema de castas indiano e das teorias de Durkheim e Mauss, Dumont (1992, 1993 e 2000), associou, de um lado, ideologia hierárquica, holismo e sociedades tradicionais e, de outro lado, ideologia igualitária, individualismo e sociedades modernas. Essa formulação foi encampada por Da Matta (1986 e 1993) e por Oliveira (2000 e 2011) que, comparando EUA e Brasil, identificaram, aqui, uma sociedade predominantemente hierárquica ou pré-moderna que, contudo, aspira ostensivamente o igualitarismo e a modernidade.
Este artigo trabalha duas hipóteses entrelaçadas que emergem do confronto entre o citado referencial teórico e temas da história ambiental. Ambas são testadas via pesquisa bibliográfica e análise de dados secundários. São elas: I. A sociedade brasileira e as sociedades ocidentais modernas atribuem à natureza status diferentes. Enquanto a sociedade brasileira (tipicamente hierárquica ou holista) trataria natureza e cultura como um continuum, as sociedades ocidentais modernas (tipicamente igualitárias ou individualistas) enxergariam ruptura entre ambas. II. A ruptura entre natureza e cultura levada a efeito pelas sociedades individualistas abriria espaço para argumentos não-utilitários da proteção ambiental. Por sua vez, a forma com que encaramos a natureza no Brasil favoreceria o trato antropocêntrico e utilitário das questões ambientais, em prejuízo de argumentos éticos ou estéticos. Pela mesma razão, entre nós, a agenda conservacionista seria mais bem recebida que a preservacionista.
Para atingir tais objetivos, este artigo foi estruturado em seções intituladas, respectivamente, “modernidade e pré-modernidade: as ideologias individualista e holista”; “o lugar da natureza no ocidente moderno” e “natureza e cultura brasileira”. Na primeira seção, discute-se o referencial teórico-metodológico que apoia o debate trazido neste artigo. A segunda e a terceira seções visam possibilitar a comparação histórica entre aspectos das ideologias individualista e holista, bem como as suas respectivas repercussões no cuidado com a natureza.


2. MODERNIDADE E PRÉ-MODERNIDADE: AS IDEOLOGIAS INDIVIDUALISTA E HOLISTA
Os trabalhos de Dumont (1992, 1993 e 2000) forneceram às ciências sociais instrumentos que permitem certos graus de generalização e de comparação entre culturas. A mais citada contribuição do autor é a associação entre: a) ideologia hierárquica, holismo e sociedades tradicionais e; b) ideologia igualitária, individualismo e sociedades modernas. Essa contribuição, apresentada em Homo Hierarchicus (1992), O Individualismo (1993) e Homo Aequalis (2000), foi construída a partir de etnografia a respeito da sociedade de castas indiana (DUMONT, 1992) e de estudos bibliográficos sobre a ideologia ocidental moderna (DUMONT, 2000).
Em Homo Hierarchicus (1992), Dumont identificou, na sociedade indiana, duas categorias de sujeitos: o “indivíduo-no-mundo” e o “indivíduo-fora-do-mundo”. Essas categorias acabaram se mostrando essenciais para a posterior elaboração do binômio “pessoa” versus “indivíduo”, central na obra de Da Matta (1993 e 1996) e seguidores – inclusive Oliveira (2000) – nos seus vários ensaios comparativos de interpretação da cultura brasileira face à cultura estadunidense.
De acordo com Dumont (1992), o “indivíduo-no-mundo” é profundamente dependente de seu meio comunitário ou social. Os seus deveres e laços de solidariedade para com os demais são estreitos e as suas ações são direcionadas à perpetuação da ordem social. Essa circunstância lhe confere posições claras em uma enorme cadeia hierárquica. Ao arranjo societário que essas relações originam, Dumont denominou “holismo” (DUMONT, 1992), predominante na Índia e em diversas sociedades denominadas “arcaicas”, “pré-modernas” ou “tradicionais”.
Dumont também identificou na Índia, residualmente, o cerne do princípio individualista no “indivíduo-fora-do-mundo”. Trata-se do renunciante, ator que abandona a vida em sociedade, com os seus emaranhados e laços, restrições e dívidas, para se dedicar apenas ao auto-aperfeiçoamento. O renunciante é essencialmente antissocial, dotado de autonomia e individualidade. “Superior e exterior à sociedade propriamente dita” (DUMONT, 1992, p. 296), o renunciante se constrói e se afirma por meio da negação do princípio hierárquico ou holista.
Voltando, como um espelho, os resultados obtidos na Índia para a sociedade a que pertencia, Dumont elaborou o seu diagnóstico sobre as peculiaridades do ocidente moderno. No ocidente, o indivíduo foi paulatinamente construído como um valor em si mesmo (LUZ e FRACALANZA, 2013) ou, para usar as palavras do autor, como “valor moderno cardeal” (DUMONT, 1993, p. 269). Observe-se que é precisamente o predomínio da ideologia individualista desde o século XVII que permitiu ao autor referir-se às “sociedades ocidentais modernas” como um bloco mais ou menos homogêneo, contraposto às sociedades de ideologia holista (todas as demais) embora reconhecesse várias diferenças, por exemplo, entre sociedades dos EUA, França e Alemanha (modernas e individualistas), ou entre as sociedades da Índia, das Ilhas Trobriand e da Etiópia (não ocidentais modernas e holistas). 
Tal como o renunciante, o indivíduo ocidental é antissocial e constitui um ser moral independente, autônomo, livre de laços ou hierarquias. Os seus vínculos mais valorizados não são com pessoas, mas com coisas (DUMONT, 1993 e 2000). Porém, não há de sua parte uma renúncia à vida social: ao contrário, o indivíduo é concebido como finalidade última das agremiações humanas. Assim, comparadas à sociedade indiana, as sociedades modernas criaram um sujeito híbrido, a que Dumont (1983) denominou “indivíduo-fora-do-mundo-dentro-do-mundo” ou, apenas, “indivíduo”.
A invenção do “indivíduo” teria constituído uma revolução nos valores engendrada ao longo dos séculos no Ocidente Cristão” (DUMONT, 2000, p. 19), situação excepcional na história das ideias e, por isso, problema central para a comparação entre culturas (DUMONT, 2000). Ela seria a raiz da lógica autônoma da política e da economia, das próprias instituições políticas e econômicas e, assim, da complexificação ad infinitum das sociedades modernas (DUMONT, 2000). 


3. O LUGAR DA NATUREZA NO OCIDENTE MODERNO
Resultado de milênios de especulações a respeito das peculiaridades humanas frente aos demais seres vivos (THOMAS, 2010), na modernidade, a relação entre natureza e cultura foi historicamente construída em termos de exclusão mútua: a cultura é ausência de natureza; a natureza, ausência de cultura.
O conceito wilderness reforça esse argumento. Inaugurado no século XIII, mas popularizado apenas no século XIV (com as traduções inglesas da bíblia latina) wilderness originalmente designava as terras áridas que foram palco de passagens bíblicas: no início, o termo era associado a desertos. A vinculação entre wilderness e florestas tem raízes teutônicas e nórdicas, em que áreas incultas, de regra, eram florestadas (NASH, 1982).
Com as primeiras incursões britânicas na América, wilderness passou a designar natureza em sentido forte (Thomas, 2010), isto é, “an insecure and uncomfortable environment against which civilization had waged an uncesasing struggle” (NASH, 1982, p. 08). A associação do vocábulo às terras estéreis e desgastadas se diluiu: wilderness passou a se referir a florestas virgens, de que a América era pródiga. Como as matas eram obstáculos ao progresso, vigoravam valores culturais que estimulavam as devastações. Os adjetivos associados às florestas em um dicionário poético do século XVI – “terrível”, “sombria”, “selvagem”, “deserta”, “agreste” e “melancólica” – revelam os sentimentos dos britânicos face à natureza virgem (Thomas, 2010).
A concepção pejorativa dos escritores britânicos acerca da wilderness era familiar aos primeiros colonos que se dirigiram para a Nova Inglaterra (Nash, 1982; MC CORMICK, 1992). Não se estranha, assim, que os pioneiros (em especial os das fronteiras) se mostrassem obstinados com derrubadas de florestas, drenagens de pântanos ou alterações nos cursos dos rios, extinguindo a wilderness por meio da adaptação da natureza aos imperativos do progresso (NASH, 1982).            
            Também não estranha que o tratamento dispensado aos indígenas submetidos à Coroa Portuguesa tenha sido tão diferente daquele dispensado aos que se depararam com os pioneiros nos futuros EUA. Lá, os ameríndios foram tomados como selvagens (associados à wilderness) e tratados como povos estrangeiros com os quais, ao longo do processo de conquista do Oeste (OLIVEIRA, 2000), os pioneiros firmaram tratados de paz e contra os quais decretaram guerras. Os indígenas das terras americanas sob jugo português, por sua vez, foram considerados súditos sui generis e incluídos na hierarquia social em estrato inferior[1].
A hostilidade dos colonos da Nova Inglaterra para com a natureza selvagem era um traço cultural firme. Ela foi percebida por Tocqueville (1987) que visitou a América quase três séculos depois da fundação dos primeiros povoados, em 1831. Além de uma função pragmática, a domesticação da wilderness entre os colonos norte-americanos também exercia uma função simbólica relevante: a wilderness era tomada como terra amoral, maldita, caótica (NASH, 1982). Em uma metáfora que remete ao mito de Lilith[2], a wilderness, de imensidão infinita, convidava os colonos a uma liberdade perigosa, sinônimo de ruptura com os limites impostos pela civilização, induzindo à perdição moral da nascente sociedade dos EUA. Desse modo, exorcizar a natureza selvagem para domesticar a terra não era apenas uma questão de sobrevivência, mas uma missão em favor da pátria, da raça e da boa obra de Deus. Em suma, para os colonos, avançar progressivamente sobre terras desconhecidas dos homens brancos era um imperativo moral.
Daí a associação, no ideário e na literatura dos EUA, entre os conceitos wilderness e frontier. Em termos gerais, a wilderness foi construída como aquilo que está depois da fronteira: o “não-civilizado”, o “não-eu”, o “outro”. Compreende-se, igualmente, onde repousa a dissociação entre civilização e wilderness que, ao fim e ao cabo, corresponde ao divórcio entre cultura e natureza. Essa representação é válida tanto para ingleses quanto para estadunidenses e laborou em favor do estabelecimento de uma fronteira excludente nos EUA (HENESSY, 1978).


3.1. O conceito-valor “wilderness” e a conservação da natureza
Na Inglaterra, o sentimento de demérito para com a wilderness, que estimulava a destruição da natureza selvagem, perdurou pelo menos até o final do século XVIII, não havendo que se falar, antes disso, sobre preocupações conservacionistas (THOMAS, 2010).
Entre o final do século XVIII e o início do século XIX, num movimento que Nash (1982) considera uma verdadeira revolução cultural, a aversão à wilderness começou a mudar. Provável resultado da degradação ambiental provocada pelas primeiras etapas da Revolução Industrial (THOMAS, 2010; BURSZTYN e BURSZTYN, 2012), a Inglaterra testemunhou a difusão da mística da natureza. A wilderness passou então a ser considerada sublime, expressão viva do poder de Deus e fonte de renovação espiritual: Em fins do século XVIII, o apreço pela natureza [...] se convertera numa espécie de ato religioso. A natureza não era só bela; era moralmente benéfica” (THOMAS, 2010, p. 368).
Os estadunidenses não ficaram alheios a esse movimento. Ao contrário, de acordo com a abordagem mítica e historiográfica de Turner (1976), a identidade nos EUA teria sido construída e renovada pelo contato permanente da civilização com a wilderness, ou seja, com a fronteira sempre situada a oeste das áreas colonizadas. Isso incentivou o florescimento de ideias inovadoras, sugeridas por pensadores na vanguarda do ambientalismo: Thoreau (2012), Muir (NASH, 2012), Pinchot (NASH, 2012) e Leopold (2008). Esses autores são precursores do preservacionismo e do conservacionismo, correntes que ainda hoje disputam os diagnósticos e as soluções para as questões ambientais.


3.2 Preservacionismo e conservacionismo: origens e conceitos
Turner (1976), criador do mito historiográfico da fronteira nos EUA, afirmava que as instituições estadunidenses teriam sido compelidas a se adaptar ao permanente espraiamento da população. Em outras palavras, teriam se adaptado às contingências implícitas no atravessar e no povoar de sucessivas regiões de um continente, nas vitórias sobre a natureza selvagem e no desenvolvimento de cada área, transformando as condições econômicas e políticas primitivas na complexidade da urbe. Desse modo, o desenvolvimento político e social dos EUA, no rumo de uma tradição individualista e democrática, teria nascido e renascido continuamente a partir da fronteira, definida ora como local do encontro físico entre a civilização e a wilderness, ora como o fenômeno social decorrente da interação entre esses elementos. O fenômeno da fronteira – ao qual a historiografia dos EUA ainda atribui forte papel na formação da identidade nacional – ocorreu entre 1607 e 1890, da Costa Leste em direção à Oeste, e só se exauriu quando os pioneiros chegaram ao Oceano Pacífico (TURNER, 1976; WEBB, 1979; HENESSY, 1978; SLATTA, 1988).
Cerca de quarenta anos antes de 1890, quando foi oficialmente decretado o fim de terras públicas disponíveis em grande escala para novos assentamentos de colonos no Oeste dos EUA, isto é, quando a fronteira chegou ao fim, Thoreau, filósofo transcendentalista, publicou Walden (THOREAU, 2012). Na contramão da consolidada tradição calvinista de repúdio à natureza, a obra é um manifesto contra a civilização industrial, contra o consumismo e a favor da wilderness.
Thoreau (2012) defendia que os seres humanos deveriam retornar à frugalidade (meta cara ao ambientalismo contemporâneo) de modo que a sua vida estivesse equilibrada entre a civilização e a wilderness, situação existente na arcádia, isto é, no modo imemorial de vida rural. Thoureau clamava pela necessidade de preservação da wilderness, local em que os humanos civilizados podem encontrar o melhor de si mesmos: a sua pureza animal ou “wildness” (NASH, 1982).
Quer por critérios utilitários, quer pelo reconhecimento do valor intrínseco da wilderness, as propostas de Thoreau e de seus seguidores, favoráveis à criação de áreas protegidas, geraram frutos. Em 1864, a preocupação dos agricultores do Central Valley – Califórnia/EUA com a proteção da água de degelo que utilizavam para irrigar as suas plantações resultou a criação do Parque Estadual de Yosemite Valley (NASH, 1982). Embora não fosse uma UC inteiramente dedicada à preservação e embora as suas dimensões não fossem extensas, a criação desse parque representou um antecedente relevante para o cuidado com a natureza nos EUA.
Em 1872 foi criado o Parque Nacional de Yellowstone. A finalidade inicial de sua criação residiu na prevenção contra a apropriação privada de curiosidades do mundo natural: vales, cachoeiras e gêiseres (NASH, 1982; BURSZTYN e BURSZTYN, 2012). A criação desse e de outros parques gerou críticas e contrariou interesses de empreiteiros de estradas de ferro, fazendeiros, pecuaristas e mineradores. O debate sobre o parque contemplou argumentos utilitários (abastecimento público de água potável, por exemplo) e éticos em prol da preservação da wilderness.
Vinte anos após a publicação de Walden, o primogênito de um fazendeiro calvinista escocês, influenciado pelo transcendentalismo de Thoreau, iniciou carreira literária como defensor da wilderness, inclusive reivindicando, em seu favor, status equivalente àquele atribuído aos seres humanos. Trata-se de Muir (NASH, 2012), um dos maiores divulgadores da causa ambiental e precursor do que ficou denominado, posteriormente, como “biocentrismo” ou “preservacionismo”.
Militante cercado por um grupo influente, Muir foi criador do Sierra Club, associação civil de proteção dos Parques de Yosemite e de Yellowstone e responsável por pressionar pela criação de outras áreas protegidas. Ainda hoje o Sierra Club é uma das mais influentes organizações ambientalistas dos EUA (NASH, 2012; BURSZTYN e BURSZTYN, 2012). Além disso, credita-se a Muir a transformação do Parque Estadual de Yosemite em parque nacional, o que fortaleceu a sua fiscalização e administração.
Muir mantinha bom contato com Pinchot, engenheiro florestal, político e principal porta-voz do utilitarismo em matéria de conservação ambiental nos EUA (NASH, 2012). Pinchot e seus seguidores “defendiam a exploração racional dos recursos naturais, a constituição de reservas ambientais e propunham uma racionalidade econômica e a necessidade de se estabelecer regras bioeconômicas adequadas” (BURSZTYN e BURSZTYN, 2012, p. 74). Sob esse aspecto, os conservacionistas eram (e ainda são) eminentemente antropocêntricos, dado que explicitamente propõem, com sua intervenção, maximizar a disponibilidade de recursos naturais ao maior número possível de pessoas (TAVOLARO, 2000).
O dilema da construção, nos limites do Parque Nacional de Yosemite, da barragem de Hetch Hetchy, destinada a abastecer com água a cidade de São Francisco, acabou por colocar Muir e Pinchot em lados opostos. A cisão até hoje divide o movimento ambientalista dos EUA (NASH, 1982) em preservacionistas (seguidores de Muir) e conservacionistas (seguidores de Pinchot). Apesar das dissonâncias, Muir e Pinchot tinham uma plataforma comum de subtrair grandes extensões das terras públicas ao laissez-faire de uma economia em expansão acelerada e que se transformaria, no ocaso do século XIX, na maior do mundo.
Cita-se, por fim, a contribuição de Leopold para a consolidação de novas perspectivas acerca do cuidado com a natureza. Formado em Yale, agente do serviço florestal dos EUA, professor de gestão de caça no departamento de economia agrícola da Universidade de Wisconsin e fundador da Wilderness Society (LEOPOLD, 2008; NASH, 1982), o seu texto mais conhecido é o livro Pensar como uma montanha. Nesse trabalho de 1949 Leopold descreve a “ética da terra” (land ethic). Para Leopold, a ética da terra alargaria os limites das comunidades para incluir os solos, as águas, as plantas e os animais. Assim, o juízo de certo ou errado estaria diretamente relacionado à capacidade de preservação da integridade, da estabilidade e da beleza da comunidade biótica (LEOPOLD, 2008; NASH, 1982). 
É bem verdade que, nos EUA, a política fundiária democrática, o incentivo à imigração de massas, a inexistência de uma nobreza ou de uma igreja oficial detentora de latifúndios contribuíram para que os recursos naturais fossem utilizados de forma avassaladora. Também é verdade que, há poucos anos, as preocupações ambientalistas nos EUA eram taxadas como excentricidades. Contudo, o que se quer ressaltar neste artigo é a circunstância de que elementos ideológicos fundamentais presentes nos EUA (em especial o igualitarismo e a clara separação entre natureza e cultura) permitiram o surgimento de ideações em que solos, águas, plantas e animais receberam, tal qual os humanos, o status de sujeitos. Diante de peculiaridades culturais, há grandes obstáculos para que o mesmo resultado seja alcançado no Brasil.


4. NATUREZA E CULTURA BRASILEIRA
4.1 A natureza como parte da ordem social
Com o referencial teórico dumontiano aliado à historiografia de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre, Da Matta interpreta a sociedade brasileira como excepcional. Embora ela seja predominantemente holista (pré-moderna), é desejosa de individualismo (ou seja, de modernidade), o que é atestado pelo investimento na construção de instituições tipicamente ocidentais. Essa abordagem, denominada por Da Matta (1986) como “o dilema brasileiro”, ganha consistência nas suas análises comparativas entre cultura brasileira e dos EUA.
De acordo com Da Matta (1986), no Brasil, o enfrentamento entre os princípios individualista e holista ocorre em diversas esferas: no trato diário com a lei (“jeitinho”), nas situações de conflito (“você sabe com quem está falando?”) e na forma de lidar com a natureza (DA MATTA, 1993). A natureza (como todo o resto) faria parte de uma grande teia de hierarquias, teia que engloba sujeitos, animais, empresas, costumes, instituições e mesmo o “além”. Noutras palavras, no Brasil, não há ruptura, exclusão ou cisão entre natureza e cultura; há antes um continuum ou, para utilizar a terminologia de Dumont (1992), uma relação entre englobante e englobado.
Oliveira (2011) já tratou da função simbólica desempenhada pela natureza no imaginário social brasileiro. Para ela, tanto no Brasil quanto nos EUA a natureza teria assumido papel central na construção das identidades nacionais. Lá, entretanto, a natureza (wilderness) teria sido identificada com o oposto da civilização e, pois, com a dinâmica das fronteiras que está na raiz da imagem icônica do cowboy (OLIVEIRA, 2000). Por sua vez, no Brasil, o aspecto mais ressaltado da natureza seria o exotismo, o tropicalismo, tratado como pedra angular – e, acrescenta-se, como dimensão mais englobante – da nossa sociedade (OLIVEIRA, 2011).
Conforme explica Oliveira (2011), os relatos dos viajantes, naturalistas, artistas e expedicionários europeus do século XIX teriam mediado a construção da autoimagem brasileira. Os referidos relatos exaltavam, num misto entre espanto e deslumbramento, o gigantismo e o caráter exótico da fauna, da flora e do clima dos trópicos. A natureza tropical seria tão sui generis que atuaria como força motriz da nova e peculiar civilização que se estabelecia nestas paragens. O calor e a umidade dos trópicos seriam responsáveis não apenas pelo exotismo da natureza, mas pela formação moral da população brasileira, cujo caráter era então descrito como preguiçoso, erotizado ou mesmo triste. O discurso acabou incorporado à retórica intelectual brasileira da época, de modo que as características físicas dos trópicos passaram a ser interpretadas como causas finais do nosso atraso civilizatório.
O determinismo físico-climático típico do século XIX foi bastante atenuado com o ulterior desenvolvimento das ciências sociais. Não obstante, elementos que remetem à natureza exuberante dos trópicos ainda fazem parte do cotidiano dos brasileiros. Eles estão espalhados no nosso pensamento social, nos símbolos nacionais, nas artes visuais.
O pensamento social brasileiro é pródigo em autores que interpretaram as condições naturais sui generis como concausas da nossa formação social, tais como Capistrano de Abreu, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Euclides da Cunha e Celso Furtado (TAVOLARO, 2011).
Os símbolos nacionais seguem o mesmo caminho. As cores verde e amarela estampadas na bandeira brasileira constituem, a um só tempo (LUZ, 1999): 1) metáforas para as florestas e para as riquezas minerais do Brasil; 2) referência a Portugal e Algarves; e 3) símbolo das dinastias reais de Bragança (a que pertenciam D. Pedro I e II) e de Habsburgo (a que pertencia D. Leopoldina). O Hino Nacional, por sua vez, também faz diversas referências à natureza excepcional, palco da nova civilização tropical que se erguia no Brasil. Não é outra a mensagem de trechos como “gigante pela própria natureza”; “do que a terra mais garrida /teus risonhos, lindos campos têm mais flores”; “nossos bosques têm mais vida” e “deitado eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo”.
Nas artes visuais dos mais distintos períodos da nossa história, há incontáveis associações entre o Brasil e a natureza exuberante, associações que vão desde fotografias estampadas em camisetas ou em pôsteres publicitários até o óleo sobre madeira de autoria de Di Cavalcanti, intitulado “Nu Deitado” (DI CAVALCANTI, c. 1935). No quadro, o pintor retrata uma mulata cujas curvas se confundem com o relevo acidentado do Rio de Janeiro. Ali, como observou Carvalho (1998), mulher brasileira e natureza são retratadas em unidade.
Para além dessas circunstâncias, a inclusão da natureza na hierarquia social também parece ser uma característica arraigada no imaginário popular. Essa é a hipótese apresentada por Carvalho a respeito da sobrevivência do motivo edênico, isto é, da visão paradisíaca, no imaginário dos brasileiros (CARVALHO, 1998). Em diagnóstico obtido via pesquisas de campo, Carvalho demonstrou que, quase 200 anos depois da Independência, a natureza exuberante ainda prevalece como principal (e praticamente único) motivo de orgulho dos brasileiros pelo Brasil. Ocorre que a natureza tropical pertence ao mundo do dado, não das realidades construídas ao longo da história social brasileira. Por que então nos orgulharmos da natureza, se ela não é obra nossa, se não participamos da sua criação? Para Carvalho (1998), a persistência do motivo edênico no imaginário brasileiro está intimamente relacionada à “razão satânica” que, em síntese, consiste na crença da inadequação do povo que habita o Brasil. E essa suposta inadequação também seria explicada por razões naturais.
Por décadas, jesuítas e historiadores apontaram a remessa de delinquentes para a colônia e a escravidão como causas da degradação moral do povo brasileiro. Mesmo assim prevaleceram as explicações racistas endossadas pela ciência novecentista. Segundo as teorias racistas, os brasileiros estariam condenados à degradação e ao desaparecimento, dada a desnaturação das raças, provocada pela excessiva miscigenação entre brancos, negros e indígenas (SEYFERTH, 2002).
No Brasil, as teorias racistas foram aceitas por intelectuais influentes: Sílvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha (CARVALHO, 1998) e Oliveira Vianna (SEYFERTH, 2002). Entre tais autores, todavia, vigorou uma interpretação peculiar do racismo. Entendiam que o branqueamento, por meio da miscigenação entre mestiços brasileiros e migrantes europeus, propiciaria a progressiva diluição de elementos racialmente inferiores, em benefício do processo civilizatório nos trópicos. Essa abordagem foi adotada como razão de Estado para a elaboração e execução de políticas públicas de incentivo à imigração europeia e de desincentivo à imigração africana e asiática (HENESSY, 1978 e SEYFERTH, 2002).
A natureza tropical é, pois, elemento marcante do imaginário social do Brasil e constitui autêntico pilar da identidade nacional. Ela está presente nos símbolos nacionais, nas artes, no pensamento social brasileiro, nos relatos estrangeiros a respeito do Brasil, nos mitos de fundação da pátria, nas explicações acerca das nossas supostas deficiências morais, nas nossas práticas ancestrais. Assim, é plausível o argumento de Da Matta (1993) segundo o qual, entre os brasileiros, há continuidade entre natureza e cultura (e não ruptura, como ocorre no caso dos EUA). Tal característica, conforme já explorado neste artigo, seria típica de sociedades pré-modernas ou de ideologia hierárquica.


4.2. A natureza subjugada
Paradoxalmente e em um clássico exemplo da dissociação entre “hierarquia” e “poder” (DUMONT, 1992), nem o holismo, nem o fato de a natureza atuar como pilar da identidade nacional (dimensão mais englobante) foram suficientes para criar, no Brasil, uma cultura de cuidado com o meio ambiente. Postulamos que isso se deva ao lugar ocupado pela natureza no imaginário social brasileiro.
De acordo com Da Matta (1993), a natureza no Brasil não é apenas parte da hierarquia social, mas serva dos homens. Como tal, está disponível para a apropriação, pilhagem ou destruição, isto é, para o “extracionismo predador”. Nas palavras de Da Matta, entre os homens e a natureza estabeleceu-se uma lógica idêntica àquela que governava os homens entre si: a lógica da desigualdade” (DA MATTA, 1993, p. 140).
Informações históricas parecem confirmar a tese de Da Matta. O estatuto jurídico dos negros escravizados e libertos[3], por exemplo, fornece subsídios para defender o argumento de que, no Brasil, incluímos a natureza na hierarquia social em posição de menos-poder, e não em oposição à cultura ou à ordem social.
As Ordenações Afonsinas (PORTUGAL, 1984), Manuelinas (PORTUGAL, 1984) e Filipinas (PORTUGAL, 1985), cunhadas a partir das Guerras de Reconquista e, por séculos, principais normas jurídicas vigentes no Brasil colonial, admitiam textualmente a escravidão. De tradição latina, o sistema jurídico português se baseia na Civil Law romana e divide o mundo entre pessoas, coisas (ou bens) e fatos. Nessa classificação, escravos negros, grosso modo, eram juridicamente considerados bens (ou coisas) semoventes, ocupando o mesmo patamar dos animais em geral.
Diz-se “grosso modo”, porque o status dos escravos negros como bens semoventes — status sobre o qual os juristas do período discorriam com embaraços (REIS, 2013) — era incoerente e sequer se aplicava a todos os ramos do Direito. Discutindo a formação histórica da pena pública no Brasil, Reis (2013) demonstra que, conforme doutrina jurídica vigente nos séculos XVIII e XIX, no Direito Civil, o escravo ostentava natureza jurídica de bem ou coisa, motivo pelo qual era passível de uso, fruição, disposição e reivindicação. O mesmo status se aplicava ao escravo no âmbito criminal, desde que vítima (e não autor) de crime. Admitia-se, por exemplo, que o escravo pudesse ser a res furtiva do furto ou o objeto de uma alienação a non domino do estelionato. Entretanto, especificamente para integrar o polo ativo dos delitos, o escravo era considerado pessoa, situação que permitia ao Estado persegui-lo e condená-lo (REIS, 2013).
Sob outra perspectiva, no Brasil, o status de escravo não formal ou materialmente imutável. O escravo podia ser alforriado por um ato de liberalidade de seu senhor ou podia adquirir do dominus a própria liberdade ou a de terceiros. Nesses casos, ao menos sob a perspectiva normativa, o liberto se transmutava civilmente de coisa a pessoa; de objeto a titular de direitos. Por meio dessa operação, admitia-se a ascensão social do escravo alforriado, o que ocorria por meio de seu descolamento da natureza, isto é, do nível mais baixo na escala de prestígio. Essa nova situação lhe permitia, inclusive, possuir escravos (CARVALHO, 2011 e SILVA, 2011).
O fenômeno da ascensão social do liberto, isto é, a possibilidade de mutação da sua classificação jurídica, corrobora o argumento de que a ideologia majoritária na sociedade brasileira admite um continuum entre natureza e cultura. Corrobora também a tese de Da Matta, acerca da existência, no Brasil, de uma ideologia que privilegia a hierarquia e o holismo em detrimento da igualdade e do individualismo. A associação jurídico-normativa entre escravos e animais (bens semoventes), por fim, conduz à conclusão de que a natureza foi incluída na hierarquia social em situação de menos-poder. Em outros termos, aqui a natureza é, a um só tempo, a dimensão social mais englobante (superioridade hierárquica) e a de menor prestígio (inferioridade em poder).
Os Slave Codes, regulamentos que disciplinavam a escravidão em diversos Estados dos EUA, demonstram que a solução brasileira contrastava bastante com aquela adotada no hemisfério norte. Goodell (1853), estadunidense abolicionista nascido no final do século XVIII, salientou que normas e jurisprudência acerca dos escravos, nos Slave Codes, eram claras ao estabelecer o cativo negro como propriedade. Aparentemente, não havia maiores pudores para que operadores do direito afirmassem que aos escravos, semoventes perpétua e inteiramente submetidos à vontade dos senhores, era vedado constituir famílias, contratar, herdar, adquirir bens, receber educação, testemunhar, portar armas ou ajuizar demandas contra quaisquer pessoas (GOODELL, 1853). Observe-se que boa parte dessas restrições se mantinha mesmo após a obtenção da liberdade (GOODELL, 1853).
Visando à “proteção social”, os Slave Codes limitavam o direito de conceder alforrias, para evitar que a benevolência de alguns senhores colocasse em liberdade um grande número de “stupid, ignorant and vicious persons, to disturb its peace and endanger its permanency” (GOODELL, 1853, pp. 339). Portanto, os negros libertos nos EUA eram considerados seres integrantes de uma espécie diversa e indesejada que não podia ser considerada titular de direitos. Os negros estavam efetivamente excluídos da ordem social e sua mera existência em território estadunidense era considerada uma ameaça a ser controlada ou eliminada. Nesse contexto, faziam pleno sentido as políticas de emigração compulsória de negros livres, duramente criticadas por Goodell (1853).
Diante dos Slave Codes, concluiu-se que, nos EUA, nem os escravos, nem os libertos negros eram vistos como membros de menos prestígio de uma grande hierarquia social. Tomados como herdeiros consanguíneos de bestas, o reino da cultura lhes era alienígena, impenetrável. A “negritude” consistia uma nódoa que maculava sucessivas gerações, destituindo os seus portadores das possibilidades de inclusão social e da ulterior equiparação, em direitos e oportunidades, aos cidadãos brancos. Nos EUA, tal como a fronteira, o negro (e a natureza à qual ele era associado) eram “o outro”, o “não-eu”. 
Além do estatuto jurídico dos escravos e dos libertos negros no Brasil, os trabalhos de Oliveira (2000), Holanda (1995), Dean (1996) e Pádua (1998), também permitem a associação entre o status subalterno da natureza e o comportamento denominado por Da Matta (1993) como “extracionismo predador”.
Oliveira (2000) destacou a prodigalidade do bandeirante que, radicado principalmente em São Vicente/SP, percorreu enormes distâncias em busca de escravos e metais preciosos. Diversamente da figura do pioneiro dos EUA, o propósito do bandeirante não era a fixação no território por meio da agricultura ou da pecuária, mas a obtenção de lucro rápido via apropriação do capital natural disponível na colônia. A mentalidade do aventureiro ainda estaria presente em atividades econômicas típicas de regiões de fronteira e desenvolvidas na Região Norte do Brasil, tais como garimpos, biopirataria e a extração ilegal de madeira.
Holanda (1995), no início do século XX, já salientava que o termo “agricultura” só podia ser utilizado com reservas ao se discutir o ciclo do açúcar no Brasil. É que as técnicas produtivas utilizadas nos engenhos, focadas na rápida obtenção de grandes quantidades de melado, faziam com que a produção açucareira se parecesse mais com a atividade mineradora, exaurindo o solo em que era praticada. Desse modo, salientava Holanda, “raramente decorriam duas gerações sem que uma mesma fazenda mudasse de sítio, ou de dono” (1995, p. 50).
Também os achados de Dean (1996) corroboram a ocorrência, na história brasileira, do “extracionismo predador” (DA MATTA, 1993). Estudando os registros de doação de sesmarias ao longo do período colonial, Dean notou que a adoção e intensificação do regime indígena da coivara pelos colonos portugueses e mamelucos levaram ao exaurimento de solos em trechos da Mata Atlântica, cuja fertilidade em grande parte dependia da existência da floresta. Não se tratava de um comportamento irracional, mas de uma ação pragmática: como a terra era abundante e gratuita e podia ser facilmente substituída, não fazia sentido investir tecnologia ou trabalho para preservar a sua fertilidade (DEAN, 1996). Construía-se no Brasil, desse modo, “uma forma peculiar, extrativa de capitalismo, no qual o estoque de capital é totalmente in natura, preexistente à ocupação neo-européia e rapidamente dissipado, reduzindo a população ao nível da subsistência” (DEAN, 1996, p. 94).
O “extracionismo predador” (DA MATTA, 1993) também era familiar a atores sociais do Brasil dos oitocentos. É o que demonstrou Pádua (1998) que, analisando registros da época do Império, encontrou clamores pela urgente modernização da agricultura do café e pelo uso racional dos recursos naturais brasileiros. Os clamores constavam de documentos escritos por políticos, intelectuais, aristocratas e agricultores, tais como José Bonifácio de Andrada e Silva, Manoel Ribeiro do Val, o Comendador Luiz Resende, Guilherme Capanema, Luiz Corrêa de Azevedo, Caetano da Rocha Pacova, José Saldanha da Gama, Nicolau Moreira e Dionísio Martins. Aliás, Nicolau Moreira (um dos editores da Revista Agrícola, publicada pelo Imperial Instituto Fluminense de Agricultura – IIFA) – referia-se às técnicas agrícolas até então empregadas no Brasil como “reinado de 375 anos de cultura esgotadora” (PÁDUA, 1998, p. 154), formulação que muito se assemelha a “extracionismo predador” (DA MATTA, 1993) e a “mineração do solo” (HOLANDA, 1995). 


4.3 As preocupações com a natureza no Brasil
A partir dos argumentos apresentados, espera-se que, no Brasil, as razões antropocêntricas e utilitárias para o cuidado com a natureza se sobressaiam às razões biocêntricas e éticas. Ou seja, se a natureza, nestas paragens, foi de fato incluída na hierarquia social e em posição de menos-poder, como serva, então os movimentos e políticas em prol do meio ambiente deverão enfatizar aspectos úteis (não aspectos éticos) da sua proteção. Pela mesma razão, espera-se que, entre nós, o conservacionismo encontre mais adeptos que o preservacionismo.
A comparação do número e das dimensões por categoria de unidade de conservação (UC) parece confirmar essas deduções. De acordo com dados do Cadastro Nacional de Unidades de Conservação do Ministério do Meio Ambiente (CNUC/MMA)[4] de fevereiro de 2015, o Brasil possui um total de 1940 UC, instituídas pelas diversas unidades da federação e por particulares, as quais ocupam 1.513.828 km2 e se distribuem pelo continente e pelo oceano. Dessas, 586 (30,2%) são UC de proteção integral e 1354 (69,8%), de uso sustentável. As UC de proteção integral ocupam 528.007 km2, as de uso sustentável ocupam 1.023.189 km2: respectivamente 34,9% e 65,1% do território de UC[5]. (BRASIL, 2015).   
A Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) define por UC de proteção integral aquela cujo principal objetivo é proteger a natureza, admitindo-se apenas o uso indireto (isto é, que não envolve consumo, coleta, dano ou destruição) dos respectivos recursos naturais. Por sua vez, as UC de uso sustentável são aquelas que se propõem a compatibilizar a conservação da natureza com a exploração de parte dos seus recursos naturais, de forma “socialmente justa e economicamente viável” (BRASIL, 2005). Pode-se afirmar que a instituição de UC de proteção integral atenda a plataforma preservacionista, dado o estabelecimento de espaços com pouca ou nenhuma intervenção humana. Por sua vez, também se pode afirmar que a instituição de UC de uso sustentável atenda diretrizes conservacionistas, dada a ênfase no manejo humano dos recursos naturais. Em consequência, considerando as já citadas informações do CNUC/MMA, forçoso concluir pela prevalência do conservacionismo sobre o preservacionismo na política brasileira de instituição de UC.
Além do número e das dimensões das UC, também a história dos movimentos e das políticas ambientalistas no Brasil labora em favor das hipóteses trazidas nesta seção. É que o cerne das preocupações da maior parte dos escritores que se preocupam com as questões ambientais no Brasil é mesmo o uso racional dos recursos naturais: manutenção da fertilidade do solo, preservação da integridade dos mananciais, manipulação de espécies da flora e da fauna para uso humano, críticas à imprevidência das lavouras e à poluição causada pelas queimadas. 
A geração de José Bonifácio, estudada por Pádua (1998), dedicava os seus esforços à crítica contra as técnicas agrícolas utilizadas nas lavouras de café, as quais vinham contribuindo para a destruição dos recursos naturais. Aqui, proteger a natureza tinha como finalidade garantir a integridade dos solos e das águas de modo a não comprometer a exploração agrícola futura. Noutros termos, a geração de José Bonifácio enfatizou os aspectos úteis, não os aspectos éticos da proteção à natureza.
Fenômeno similar ocorreu com a geração do “pensamento autoritário brasileiro”. De acordo com Franco e Drummond (2009), os intelectuais brasileiros engajados na questão ambiental ao longo das décadas de 1920/40 formavam um grupo razoavelmente coeso. Não havia entre eles ou seus seguidores a disputa típica dos EUA entre preservacionistas e conservacionistas. Mas a maior parte das preocupações do grupo focava o uso racional dos recursos naturais que, mais tarde, deveriam servir como substrato material do novo projeto brasileiro de nação. Motivações éticas para o cuidado com a natureza não eram estranhas ou antipáticas ao grupo mas, em seu argumento, mesmo parques aos moldes de Yellowstone deveriam atuar, no Brasil, como “fontes da nacionalidade”, e não só como áreas de excepcional beleza ou de preservação da biodiversidade. Esse projeto entendia a natureza como totalidade orgânica e a sociedade como a sua extensão. O Brasil era um país novo que precisava se conscientizar da íntima relação entre natureza e sociedade para que o progresso se baseasse no aproveitamento racional das riquezas naturais. A imprevidência e o esquecimento do vínculo entre o homem e o mundo natural gerariam pobreza e negariam recursos naturais aos futuros brasileiros. (FRANCO e DRUMMOND, 2009).
A agenda preservacionista ganha mais espaço com a atuação da Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN), fundada em 1958 com o propósito de promover o uso previdente dos recursos naturais e a instituição de áreas ambientalmente protegidas. A FBCN, a mais influente associação civil conservacionista de que se tem notícia na história do Brasil (FRANCO, 2009), apoiou a instituição de diversas UC em território brasileiro. Franco e Drummond (2009) relatam que, mesmo em seu período de dormência (1958/66), a FBCN influenciou a criação de 11 parques nacionais e a elaboração do anteprojeto de lei que instituiu o Código Florestal de 1965. No auge das suas atividades, entre 1966 e 1989, a FBCN atuou em parceria com o Poder Público, editou revistas científicas, organizou congressos, elaborou planos de manejo para UC, apoiou a criação de novas ONG de viés preservacionista e, é claro, apoiou a criação de novas UC.
A partir do final dos anos 1980, com a redemocratização do país, a FBCN passou a ser duramente criticada pelos intelectuais que se dedicavam à questão ambiental. Muitas dessas críticas se dirigiam contra a estratégia estatal (apoiada pela FBCN) de instituir UC em cujo interior fosse vedada a presença humana (FRANCO e DRUMMOND, 2009). Os trabalhos de Diegues (2000) e de Dowie (2006) representam satisfatoriamente esse tipo de crítica.
Desse modo, as décadas de 1980/90 testemunharam uma mudança de tendência: no lugar de privilegiar a criação de UC de proteção integral, o Brasil passaria a concentrar esforços na criação de UC de uso sustentável, com destaque para as reservas extrativistas, inicialmente concebidas para a Amazônia (DRUMMOND, FRANCO e OLIVEIRA, 2011).


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Seguindo o referencial teórico deste artigo, as sociedades podem ser tipicamente tradicionais (de ideologia predominantemente hierárquica e holista) ou tipicamente modernas (de ideologia predominantemente igualitária e individualista). Historicamente, o igualitarismo permitiu que sociedades modernas produzissem ideações que separam os reinos da natureza e da cultura e que, com a valorização da natureza, atribuem valor intrínseco ou cidadania a formas não humanas (águas, solos, fauna, flora, ar). Tal é o caso das abordagens biocêntricas em matéria de cuidado com a natureza. Essas mesmas ideações não são coerentes em sociedades predominantemente hierárquicas, a exemplo da brasileira.
No Brasil, a natureza foi inserida como dimensão mais englobante (porque a tudo influencia) e de menor prestígio na hierarquia social. Dado o lugar reservado à natureza, compreende-se a dificuldade do estabelecimento de políticas ou de teorias que favoreçam posturas biocêntricas. Também se compreende o sucesso do utilitarismo, do conservacionismo e das teses socioambientalistas todos marcadamente antropocêntricos, dado que priorizam as necessidades humanas face aos interesses da conservação.
Nesse caminho, presume-se que orientações restritivas em prol da proteção da biodiversidade tendam a encontrar, no Brasil, grandes opositores entre a população em geral e mesmo entre os próprios ambientalistas. Essa circunstância afeta diretamente disciplinas como a Biologia da Conservação, que parte de pressupostos individualistas, horizontalizando a relação entre os humanos e a natureza por meio da atribuição de cidadania às diversas formas de vida e aos variados ecossistemas (FRANCO, 2013).
Antes de promover a condenação às propostas preservacionistas que favoreçam a proteção da biodiversidade em UC desprovidas da presença humana, sugere-se refletir se o que orienta a crítica não é a insistência na velha representação social, herdada dos tempos da colônia, segundo a qual a natureza pertence à hierarquia social e está, antes de tudo, a serviço do homem.



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[1] Não se prolongará a discussão sobre o status dos indígenas nas Américas Inglesa e Portuguesa. Adota-se o entendimento de Henessy (1978), de que os indígenas no Brasil foram tratados como “súditos sui generis” da Coroa, até porque os portugueses não estavam em condições de excluí-los dos seus planos de colonização, tal qual ocorrera nos EUA. É que o contingente populacional de Portugal não era suficiente para assegurar o domínio sobre a sua enorme colônia. Assim, quer a catequese dos indígenas, quer a miscigenação, expressamente estimulada pelo Estado, funcionaram como estratégias geopolíticas para garantir o domínio luso sobre as terras sul-americanas (HENESSY, 1978). 
[2] De acordo com o dicionário especializado organizado por Brunel (1997), o mito de Lilith está associado à criação do mundo e remonta ao cativeiro dos hebreus na Babilônia. Lilith era considerada a fêmea demoníaca, uma força hostil da natureza, responsável pela morte de parturientes e nascituros. Às vezes, representada como ave noturna (mormente a coruja), Lilith, para fins destrutivos, seduzia os homens com sua beleza, seus longos cabelos e sua sensualidade animal. Em uma versão moderna, Lilith, também criada do barro, teria fugido do Éden e abandonado Adão, com quem não se entendia. Deus lhe teria convertido a fuga em expulsão e, desde então, Lilith tem voltado ao mundo dos homens para impingir males aos descendentes de Adão e Eva. Na literatura, Lilith aparece como feminino satanizado: a mulher revoltada que, na afirmação de seu direito à liberdade, à igualdade e ao prazer, perde a si própria e arrasta aqueles ao seu redor para o infortúnio, a desgraça e a morte.
[3] A escravidão constitui um dos principais pontos de comparação entre as culturas brasileira e estadunidense (OLIVEIRA, 2000), tomados como paradigmas das ideologias hierárquica e igualitária. São normalmente comparados, entre outros aspectos: ubiquidade ou limitação da escravidão a determinado espaço físico (CARVALHO, 2011); exclusão social versus inclusão social do liberto; abolição via guerra civil versus via norma jurídica; racismo de marca versus racismo de origem (DA MATTA, 1986).
[4] O CNUC é um sistema, administrado pelo MMA, que integra bancos de dados para fornecer informações padronizadas a respeito de UC de âmbito federal, estadual, municipal, distrital e particular. O fornecimento das informações a respeito das UC é de responsabilidade dos diversos órgãos integrantes do SISNAMA. Limitações de recursos físicos e humanos dos órgãos estaduais e municipais do SISNAMA podem enviesar os dados, que estão em constante atualização.
[5] O CNUC mapeou 37.368 km2 de sobreposição entre UC de proteção integral e de uso sustentável. Nos cálculos percentuais, subtraímos a área de sobreposição da área total ocupada pelas UC de uso sustentável.



[i] Socióloga da Companhia Imobiliária de Brasília. Mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília. Aluna da Pós-graduação Lato Sensu em Direitos Sociais, Ambiental e do Consumidor do Centro Universitário de Brasília. Doutoranda no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília. E-mail: capra.juliana@gmail.com.

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