Neste ano de 2017, Primavera Silenciosa (Silent Spring), escrito pela bióloga presbiteriana estadunidense Rachel Louise Carson, completará 55 (cinquenta e cinco) anos. O livro foi publicado pela primeira vez em 1962, no auge da Revolução Verde, da Guerra Fria, da crise nuclear e da descoberta dos efeitos teratogênicos da talidomida. Em linguagem acessível ao grande público, Primavera Silenciosa trata da “controvérsia dos pesticidas”, uma discussão ética, científica e política concernente aos riscos sanitários e ecológicos envolvidos na utilização de agroquímicos sintéticos (especialmente os pesticidas). Campeão de vendas no mundo inteiro, Primavera Silenciosa foi traduzido para 30 (trinta) idiomas e é apontado por diversos autores como livro fundador do ambientalismo contemporâneo.
Primavera Silenciosa foi escrito em tom de pesada crítica aos programas públicos de dedetização realizados, ao longo da década de 1950, em fazendas, unidades federadas e macrorregiões dos EUA. No texto, Rachel Carson relata que, em geral, os “programas de erradicação” ou de “controle de pragas” eram executados por meio de pulverização aérea indiscriminada de pesticidas organoclorados, não sendo incomum que tais produtos fossem laçados no meio ambiente em quantidades muitas vezes superiores àquelas recomendadas pelos próprios fabricantes.
No livro, a autora sugere a existência de nexo causal entre a pulverização aérea de aldrina, dieldrina, heptacloro, DDT, paratião e endrina (pesticidas mais usados na época) e os eventos inesperados e nefastos testemunhados por criadores de gado leiteiro, apicultores, criadores de cavalos, horticultores, pescadores, criadores de animais domésticos, ornitólogos e entomologistas atuantes nas regiões pulverizadas. Além da contaminação da carne e do leite consumidos por seres humanos, a autora menciona a indesejada mortandade mamíferos, aves, peixes, crustáceos, de insetos benéficos para a agricultura (tais como as abelhas) e a proliferação exponencial das pragas que os pesticidas se propuseram a eliminar.
Para fundamentar o seu trabalho, Carson valeu-se de uma boa diversidade de fontes. Consultou estudos e recomendações produzidos por diversos entes públicos dos EUA, por órgãos ambientais estaduais, consultou relatórios de entidades civis de proteção à vida selvagem, pesquisas em medicina (inclusive oncologia, saúde ocupacional e endocrinologia), medicina veterinária, farmacologia, agronomia, entomologia, genética, zoologia. Além disso, houve contato direto entre Rachel Carson, pesquisadores e cidadãos também preocupados com a relação desvantajosa entre os custos e os benefícios da pulverização aérea e indiscriminada de pesticidas.
As observações mais alardeadas de Primavera Silenciosa referiam-se aos possíveis efeitos carcinogênicos e teratogênicos dos pesticidas. Já na década de 1960, estudos médicos pioneiros, alguns confirmados vários anos depois, apontavam indícios da existência de relação causal entre determinados tipos de câncer e a exposição dos pacientes aos pesticidas. A exposição de humanos ao DDT, por exemplo, favoreceria o desenvolvimento de câncer de mama. Por sua vez, a exposição de humanos ao desfolhante conhecido como “Agente Laranja” (amplamente utilizado pelos EUA na Guerra do Vietnã), além de danos neurológicos, provocaria má-formação fetal.
Hoje, mesmo com todo o arcabouço científico e mesmo após a consagração de princípios do direito ambiental, a relação entre saúde humana e o uso de pesticidas na agricultura ainda gera grandes polêmicas e insegurança para agricultores, consumidores e órgãos de fiscalização. Uma das mais recentes diz respeito ao herbicida glifosato, comercializado pela multinacional Monsanto pelo nome Round up. Em março de 2015, a OMS declarara que o Round up seria potencialmente cancerígeno em humanos. Em maio de 2016, o organismo internacional voltou atrás. Em declaração conjunta com a FAO, a OMS declarou ser improvável que o herbicida da Monsanto provocasse câncer em humanos.
A discussão central trazida em Primavera Silenciosa é bastante sensível no Brasil, país que tem aumentado progressivamente a sua dependência econômica em relação a atividades do setor primário. Potência agroexportadora, o país ostenta, desde 2008, o incômodo título de maior consumidor mundial de pesticidas. E a questão não diz respeito exclusivamente ao modelo agrícola hegemônico, que é o da monocultura de commodities (milho, cana-de-açúcar, arroz, soja) produzidas em grandes propriedades rurais. Os produtos oriundos da agricultura familiar (pepino, abacaxi, morango, tomate, uva, pimentão) também apresentariam, após a colheita, resíduos de agrotóxicos em quantidades bem superiores àquelas estipuladas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa.
Não se diga que tais resultados se devam ao fato de a Anvisa ser excessivamente restritiva em relação ao uso ou ao registro de agrotóxicos em território nacional. Conforme dados obtidos no sítio da agência em 17/04/2017, a Anvisa autoriza o uso de 517 agrotóxicos e veta o de 97: a proporção é de 1 agrotóxico proibido para mais de 5 permitidos.
Mas não é só. É verdade que dentre os agrotóxicos atualmente proibidos pela Anvisa figuram os compostos citados em Primavera Silenciosa: DDT, endrina, heptacloro, paratião e aldrina. Entretanto, cabe ressalvar que o Brasil foi um dos últimos países do mundo a bani-los. Cite-se como exemplo o DDT. Se na maior parte do mundo o DDT restou abolido ao longo da década de 1970, no Brasil, a despeito dos conhecidos riscos do pesticida à saúde humana, o seu uso permaneceu autorizado na agricultura até 1985 e, nos programas sanitários de combate a vetores de doenças tropicais, até 1998.
A imprecisão das informações científicas referentes à segurança sanitária e ecológica dos pesticidas, assim como o consumo recorde de tais produtos pelo Brasil, recomendariam que tivéssemos, entre nós, mais debates políticos, sociais e científicos a respeito dessa temática. Recentemente, no entanto, após concluir uma monografia a respeito da autora, constatei que Rachel Carson, uma das principais referências sobre a controvérsia dos pesticidas, permanece, para o público brasileiro, uma ilustre desconhecida.
Texto publicado em: http://cliquebrasilia.com.br/index.php/2017/04/19/o-brasil-55-anos-depois-de-primavera-silenciosa/
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