Universidade de Brasília - UnB
Centro de Desenvolvimento Sustentável - CDS
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável
Doutorado
Aluna: Juliana Capra Maia
Resenha: MAIA, Juliana Capra. Palavras
acerca de proteção e produção. Revista Sociedade e Estado – Volume 31 Número 3 Setembro/Dezembro 2016, p. 877 a 882.
Referência: DRUMMOND,
José Augusto Leitão. Proteção e produção: biodiversidade e agricultura no Brasil.
1ª Edição, Rio de Janeiro: Garamond, 2014.
Desde a década de 1980,
José Augusto Leitão Drummond, graduado em ciências sociais pela Universidade
Federal Fluminense, tem direcionado a sua formação para as ciências ambientais.
Nessa direção, cursou mestrado, doutorado e pós-doutorado em proeminentes universidades
norte-americanas, nominalmente no The Evergreen State College (TESC), na Universidade
de Wisconsin e na Universidade do Colorado. Professor do Centro de
Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS/UnB) e consultor
da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Drummond é autor ou coautor de vasta produção
nas ciências ambientais. Publicou ou organizou 25 livros, publicou 65 artigos
em periódicos e 31 capítulos de livros, sem que se mencionem as resenhas, as
traduções, as atuações como orientador, os trabalhos publicados em congressos ou
seminários. Dada a profícua produção, o autor tornou-se uma referência
brasileira das ciências ambientais.
Neste ano, a Garamond
Editora publicou uma das mais recentes obras de Drummond, o livro Proteção e produção: biodiversidade e
agricultura no Brasil, ora resenhado. O trabalho contém, nas palavras do
autor, dois ensaios “longos demais e pesquisados de menos para serem publicados
como artigos em revistas científicas” e que, por outro lado, “não caberiam bem
em publicações destinadas a não acadêmicos”
(p. 8 e 9). O primeiro ensaio, desenvolvido entre 2009 e 2013, intitula-se
“Áreas protegidas versus áreas
ocupadas por atividades produtivas e infraestrutura no Brasil – há espaço para
todos?”. Por sua vez, o segundo ensaio, desenvolvido entre 2010 e 2013,
intitula-se “A biodiversidade como patrimônio – uma discussão social e
cultural”.
Em ambos ensaios – cada
um, um capítulo do livro ora resenhado – Drummond apresenta alguns dos seus posicionamentos
políticos, teóricos e epistemológicos acerca de diversos temas afetos à
sustentabilidade, o que auxilia o leitor na compreensão adequada das suas
diversas publicações. Os textos trazem digressões acerca da justificativa e dos
objetivos das terras destinadas a indígenas e a quilombolas; apresentam
discussão acerca da relação entre natureza e cultura, ao tratar de temas como
“biodiversidade”, “agrobiodiversidade” e “sociobiodiversidade”; elucidam as
convicções do autor em relação à finalidade das unidades de conservação, ao
valor intrínseco da natureza e mesmo em relação aos saberes atualmente
denominados “conhecimentos tradicionais”.
No primeiro ensaio, o
autor discute os usos do território brasileiro a partir de críticas ao
relatório intitulado “Alcance Territorial da Legislação Ambiental e
Indigenista”, de autoria dos pesquisadores da Embrapa, Evaristo Eduardo Miranda
(coordenador), Carlos Alberto de Carvalho, Cláudio Aparecido Spadotto, Marcos Cicarini
Hott, Osvaldo Tadamoto Oshiro e Wilson Anderson Holler. O relatório discutido
por Drummond, cujas conclusões vêm sendo invocadas por defensores do
agronegócio, está disponível na internet desde 2008, e pode ser acessado no
site http://www.alcance.cnpm.embrapa.br.
Sinteticamente, o
relatório de Miranda e colaboradores sustenta que aproximadamente 70% do
território brasileiro está legalmente “fechado à agricultura”, dada a sua
destinação a indígenas, a quilombolas e à proteção ambiental (áreas de
preservação permanente, unidades de conservação, reservas legais). Esse
zoneamento do território, derivado da legislação vigente, seria, para os
pesquisadores da Embrapa, desproporcional, incompatível com as atividades já consolidadas
e limitaria sensivelmente o potencial de crescimento da agropecuária no Brasil,
motivo pelo qual defendem a sua urgente revisão.
Drummond desfere cinco
grandes críticas a esse trabalho de Miranda e colaboradores.
A primeira crítica reside
no fato de que os pesquisadores da Embrapa teriam se agarrado à defesa do
crescimento da fronteira da agropecuária (crescimento horizontal),
desconsiderando o potencial de aumento da produtividade ou a complexificação
das cadeias produtivas agropecuárias, providências que agregariam valor aos
produtos finais.
A segunda crítica aponta a
circunstância de que Miranda e colaboradores enfatizaram sobremaneira determinados
conflitos no uso da terra e omitiram outros. É que o seu relatório chamaria
atenção apenas para a incompatibilidade entre agropecuária e áreas
ambientalmente protegidas, terras indígenas e terras de quilombolas. Por outro
lado, ignoraria as evidentes incompatibilidades entre atividades agropecuárias
e obras de infraestrutura (tais como portos, aeroportos, rodovias, linhas de
transmissão de energia elétrica, gasodutos, oleodutos e respectivas faixas de
domínio); entre atividades agropecuárias e áreas urbanas (tais como residências
ou distritos industriais) ou entre atividades agropecuárias e áreas de
mineração. Ora, obras de infraestrutura, atividades urbanas e minerárias seriam,
conforme contabiliza Drummond neste artigo, atividades com representativa
ocupação do território nacional. O fato de sequer terem sido mencionadas pelos
pesquisadores da Embrapa seria sintomático da sua aversão, ab initio, às áreas ambientalmente protegidas, às terras indígenas
às terras de quilombolas.
Como terceira crítica,
Drummond salienta que Miranda e colaboradores sequer mencionaram o fato de que
as atividades agropecuárias, no Brasil, ainda são praticadas mediante uso de técnicas
predatórias. Para confirmar esse argumento, recupera dados da Secretaria de
Assuntos Estratégicos da Presidência da República, que teria classificado cerca
de 200 milhões de hectares das terras brasileiras (isto é, cerca de 23% do
território nacional) como áreas abandonadas, sem uso ou subutilizadas. Com essa
ordem de práticas produtivas – há quase cem anos qualificadas, por Sérgio
Buarque de Holanda, como “mineração do solo” – a necessidade de expansão da
fronteira agropecuária tenderia ao infinito. Em outros termos, o dado da
Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, recuperado
pelo autor da obra ora resenhada colocaria em xeque o pressuposto de Miranda e
colaboradores, segundo o qual as atividades agropecuárias consistiriam a
principal variável estratégica de desenvolvimento do Brasil.
O subdimensionamento da
área disponível à atividade agropecuária, em decorrência da interpretação incorreta
de conceitos legais, é a quarta crítica de Drummond aos pesquisadores da
Embrapa. Primeiramente, o relatório não teria diferenciado as unidades de
conservação de proteção integral (em que não são permitidas atividades
agropecuárias) das unidades de conservação de uso sustentável (em que são
admitidas atividades agropecuárias além de residência, caça, pesca,
extrativismo). Desse modo, “as UCs fechadas para a agropecuária afetam apenas
um terço da área alegada por Miranda e coautores” (p. 29). Ademais, as terras de indígenas e de quilombolas teriam
sido equivocadamente classificadas, por Miranda e colaboradores, como “áreas fechadas
à agropecuária”, quando tais atividades são legalmente permitidas nessas áreas.
Por derradeiro, Drummond
salienta que as reservas legais e as áreas de preservação permanente –
largamente desrespeitadas em território nacional – foram concebidas como
mecanismos de viabilização, não como obstáculos para as atividades
agropecuárias. Mesmo assim, contabilizando reservas legais, áreas de
preservação permanente e unidades de conservação de proteção integral, o autor chegou
à cifra de 54,78% do território nacional abertos à agropecuária, não nos 22,98%
alegados por Miranda e colaboradores.
Finalmente, Drummond argumenta
que limitações administrativas às atividades agropecuárias são legítimas.
Afinal, limitações equivalentes já existiriam, há décadas, para as cidades e
indústrias: altura máxima de prédios, número máximo de andares, taxa máxima de
impermeabilização do solo, recuo obrigatório, número mínimo de vagas de
garagem, quantidade máxima de gases poluentes que podem ser emitidos e assim
por diante. Desse modo, seriam impertinentes as queixas de Miranda e
colaboradores contra as limitações à agropecuária, ligadas à defesa do
interesse público.
Vale salientar que Drummond
atribui méritos ao relatório de Miranda e colaboradores. Entende que se trata de
um trabalho de escopo original (macrozoneamento do território brasileiro), de metodologia
inovadora, com inferências ousadas e rico em dados. Não obstante, a pesquisa estaria
enviesada pelo pressuposto de que o Brasil ainda é um país eminentemente
agrário e de que, portanto, a agropecuária consiste na variável estratégica
mais relevante para economia e sociedade brasileiras. Sob essa ótica, unidades
de conservação, terras indígenas, terras de quilombolas, áreas de preservação
permanente, reservas legais, entre outras limitações administrativas garantidoras
do interesse público, são retratadas como vilãs que criam obstáculos para o desenvolvimento
da nação. Esse viés, argumenta Drummond, faria o relatório perder boa parte de
seu potencial científico e o reduziria a um pronunciamento intransigente em favor
da expansão perpétua da fronteira agropecuária no Brasil.
O segundo ensaio,
intitulado “A biodiversidade como patrimônio – uma discussão social e
cultural”, é construído ao redor da tese de que, em decorrência de fatores físicos,
socioeconômicos e históricos, o Brasil herdou, em seu território, enorme fração
da biodiversidade mundial. Essa biodiversidade (e no Brasil fala-se em
“megabiodiversidade”) consiste patrimônio natural, difuso e coletivo gerado
pelo processo evolutivo e cujo maior valor é a existência em si mesma. Cabe,
portanto, ao Estado e ao povo brasileiro atuarem como guardiães desse commons, mediante: i. usos moderados da
biodiversidade e das águas submetidas a atividades produtivas; ii.
investigações científicas intensivas acerca da biodiversidade existente em
território nacional; iii. preservação integral de porções de ecossistemas e
biomas; iv. recuperação de áreas degradadas.
Drummond inicia a defesa
desses argumentos por meio de distinções conceituais, de modo a evitar
confusões que ainda perduram quando se discute meio ambiente ou sustentabilidade.
Por isso, ele contextualiza o conceito de biodiversidade. Conforme informa o
autor, trata-se de um termo cunhado na década de 1980 na biologia, para denotar
a variedade de espécies de determinado ecossistema.
Ao longo dos anos,
“biodiversidade” teria se tornado um conceito mais complexo, que envolveria não
apenas: a) o número de espécies de
determinado ambiente (número que inclui vegetais, animais e micro-organismos),
mas ainda: b) o estado de
integridade dos ecossistemas nativos nos quais as espécies se movimentam (cuja
medição depende da apreensão das relações entre fatores abióticos e bióticos,
bem como das relações de competição, parasitismo, cooperação e predação entre
as diversas espécies); e c) o estado
genético das populações naturais (cuja medição depende de coleta de amostras pesquisáveis
e representativas das populações de plantas, animais e micro-organismos
presentes em determinado ecossistema).
Observando os elementos
do conceito, fica clara a distinção entre a biodiversidade natural e o que vem
sendo denominado “agrobiodiversidade”. Para o autor, a biodiversidade natural
equivale aos sistemas que nos foram legados pelo longo processo de evolução.
Trata-se de sistemas independentes, exteriores e anteriores ao Homo sapiens, que dispensam manejo ou
cuidados. A “agrobiodiversidade”, por outro lado, é formada de sistemas
desequilibrados, construídos, manejados e simplificados em número de espécies
(seleção sistemática das espécies “úteis”) de interesse do Homo sapiens. Da mesma forma, ao passo que a variedade genética da
biodiversidade natural remonta a dezenas de milhares de espécies,
majoritariamente desconhecidas, a variedade genética da “agrobiodiversidade”
envolve apenas cerca de uma centena: estudadas, aprimoradas, domesticadas e –
não raro – patenteadas. Daí se justifica o argumento de Drummond, para quem a
“agrobiodiversidade”, ou seja, os “conjuntos, formações e paisagens rurais
fabricadas pelo engenho humano [...] são tão naturais quanto um I-pad” (p.
100).
A avaliação da
biodiversidade de ecossistemas por meio de mera contagem de espécies existentes
em determinada localidade – forma comumente praticada por cientistas e por
leigos para quantificar a biodiversidade – é apontada pelo autor como causa de
grandes distorções. A título de exemplo, Drummond critica os inventários faunísticos
e florísticos que incluem, respectivamente, espécies exóticas de animais
domésticos (porcos, galinhas, vacas, jumentos, carneiros, coelhos) e de plantas
cultivadas (mangueira, jaqueira, macieira, cafezais, oliveiras, algodoeiros),
acidental ou propositalmente introduzidas por humanos nas localidades
estudadas, como parte da “biodiversidade” local. Esse tipo de tratamento conduz
à equivocada conclusão de que a introdução de espécies exóticas por meio da
agricultura ou da pecuária enriquece a biodiversidade.
Por derradeiro, Drummond
alerta que a restauração dos ecossistemas – o que não deve ser confundido com a
recuperação de áreas degradadas – é tarefa que ainda está fora do alcance do Homo sapiens. Descreve, como caso
paradigmático, as tentativas de restauração de ecossistemas temperados e de
biodiversidade pobre levadas a efeito ao longo de mais de 80 anos na Universidade
de Wisconsin, onde fez seu doutorado. Não obstante disporem de condições
praticamente ideais – longo lapso temporal, mão-de-obra abundante,
conhecimento, dinheiro e um número relativamente pequeno de espécies a
recuperar – os cientistas responsáveis pelo Arboretum
da Universidade consideram que obtiveram sucesso tão-somente moderado na
tarefa de restaurar os ecossistemas originais.
Em suma, não haveria
quaisquer motivos para acreditar que eventual recuperação da biodiversidade
natural brasileira, muito mais complexa e desconhecida do que aquela encontrada
nas pradarias geladas de Wisconsin, seja de mais fácil, rápida ou barata
operacionalização. Assim, Drummond aconselha cautela e humildade no trato com a
biodiversidade natural, especialmente com a -- riquíssima – biodiversidade tropical.
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